quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Para o filho, na Marcha das Margaridas.












"Brasília está florida. estão chegando as decididas".

Poeminha, os últimos três dias têm sido de muita emoção. sinto-me fazendo parte da História - da história em tempos sombrios, como me disseram dois amigos dos mais amados. são tempos sombrios, filho, mas tenho convicção de estar no lado certo. vão dizer muita coisa sobre o que vim ver e viver aqui em Brasília, a capital do país. mas não acredite, filho, se um dia você topar com a miséria da nossa mídia nacional. 

dirão que as quase cem mil mulheres que vieram do Brasil inteiro para a 5ª Marcha das Margaridas só vieram porque foram financiadas pelos sindicatos (que por sua vez foram financiados pelo poder público). e vão fazer esta afirmação para denegrir a imagem da longa viagem destas mulheres em direção à Marcha. mas não acredite, filho. estas margaridas (mulheres e homens trabalhadorxs do campo, da floresta e das águas, mais mulheres do que homens), de fato, não pagaram suas passagens para virem até aqui. e boa parte delas nunca havia viajado. e isso porque vivemos num país absurdamente desigual --- e elas por mais que quisessem não teriam dinheiro para vir até aqui. mas não há nada de errado nisto::: é função dos sindicatos organizar e garantir condições para a  realização de manifestações como essas -- e de captar recursos para isso.

as mulheres trabalhadoras vieram porque acreditam nas causas que defendem. porque há um movimento (invisível para boa parte da população) que transformou a vida dessas mulheres trabalhadoras nos últimos anos. isso se chama políticas públicas voltadas para as populações necessitadas, filho. e políticas públicas que não existiam antes do governo popular do PT ter chegado ao poder. e você corre o risco de nunca saber que elas existem porque essas políticas - mesmo agora, no momento mesmo em que acontecem - não aparecem na mídia, sempre interessada em mostrar mais os escândalos do que as realizações. 

nos últimos três dias, estive muito próxima dessas mulheres que acamparam desde segunda no estádio Mané Garrincha e hoje atravessaram as grandes avenidas de Brasília para dar um "acocho" no congresso nacional::: e eu te garanto, Poeminha::: a imprensa mente e age de má-fé quando trata a marcha por meio dessa visão estreita e deturpadora: essas mulheres sabem que antes não tinham visibilidade alguma. e visibilidade onde é importante que tenham: no lugar onde vivem. e agora têm. elas têm brilho no olho. elas sabem dizer o que de bom acontece e o que esperam que ainda aconteça. e estou falando de um aprendizado bonito e persistente de empoderamento (uma palavrinha que eu encrenco, mas que agora existe no nosso vocabulário para sinalizar mudanças nas relações de poder daqueles que batalham por reversão nos lugares de poder).      

hoje há um ódio generalizado, Poeminha. e eu fico feliz de não fazer parte dele. o sistema político do Brasil sempre foi corrupto; algo como "todo político é milionário", mesmo que tenha nascido pobre de marré-marré. e nunca  se questionou de onde se anoitecia pobre e se acordava milionário. pelo contrário: nossos "grandes políticos" nunca esconderam a sua face abastada. o ícone da nossa democracia desapareceu no mar em um helicóptero - e nunca questionaram como era pago um helicóptero para sobrevoar os mares. mas agora, todos viraram justiceiros. todos querem acabar com a farra instituída há centenas de anos. 

e sim, Poeminha. eu também fico indignada porque essa patifaria continua aí como sempre esteve. mas eu já era indignada antes. e daí eu posso começar a te responder por que continuo apoiando um partido como o PT no poder, apesar de ele ter compactuado com esse sistema político corrupto. e por que aprendi a amar a Dilma mais do que ao Lula -- embora ontem eu tenha chorado do início ao fim de seu discurso::: o discurso de alguém que sabe mexer com nossas emoções mais primitivas -- e hoje tenha reconhecido em Dilma uma limitação na sua capacidade de emocionar pela palavra. mas acredito quando ela diz que enverga, mas não quebra. acredito muito mais nela do que naqueles que a rodeiam. e mil vezes mais do que naqueles que bradam a sua ingerência. e se acredito é porque minha indignação com as injustiças, com as patifarias, vem de muito antes. desde sempre reconheci os abismos e sempre me levantei contra eles. e como você já tantas vezes comprovou, Poeminha, eu sou uma leitora --- não apenas dos livros, mas também do mundo. 

nunca fui uma militante, filho. hoje foi a primeira grande passeata da minha vida (e tenho que agradecer sobretudo a nossa amada Lili por estar aqui), mas sempre estive próxima da militância. sempre soube ler o mundo e por isso estar próxima dos grupos que defendem micropolíticas de empoderamento - muito antes dessa tal palavrinha existir. e quem fez isso no Brasil, filho, foram os sindicatos, os movimentos estudantis (no meu tempo de juventude, antes de ser corrompido por uma ideia de Deus do merecimento, até o movimento católico, onde conheci uma das pessoas mais lindas que já passou pela minha vida) e  os partidos políticos como  o PT, que se constituíram pela defesa de um estado utópico de participação popular.

é por isso, Poeminha, que não farei "panelaço" nem sairei às ruas no dia 16 -- o dia que se planeja mais uma vez pedir o impeachment da presidenta. tenho vergonha alheia dessas pessoas --- que vivem num país que conheceu a ditadura e agora querem aplicar um golpe na democracia. por ódio. por puro ódio. por que não elevaram suas vozes contra a corrupção antes, filho? eu arrisco uma resposta: porque não estão levantando suas vozes, de fato, contra a corrupção, mas pelo incômodo do aparecimento dessas micropolíticas que começam a afetar suas parcas vidas, suas alienantes vidas.
 
este não pode ser o nosso lado, Poeminha. nunca foi. e nunca será. podemos viajar de avião como eles, podemos comer filé e picanha como eles, podemos morar numa casa boa como a deles. você pode e vai estudar nas escolas de seus filhos, mas não será um deles. não queira ser, Poeminha. faça como sua mãe. adentre os seus covis e mantenha a sua diferença. a sua soberba. saiba ser de outra linhagem. porque minha herança é esta::: eu vim dessas mulheres e homens que estão nas imagens que flagrei hoje --- desses rostos marcados, desses pés rotos, desses sorrisos soltos e soberanos.    

e não se preocupe, Poeminha. eu vou te mostrar nas formas mais bonitas esta nossa herança. como agora --- agora que eu escrevo estas linhas como uma promessa para o seu porvir. você confia em mim? pois confie. eu confio bastante. em mim. em você. nas pessoas todas que vi nesses últimos três dias.
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# O nome da Marcha é uma homenagem:: Margarida Alves, sindicalista no Sindicato dos trabalhadores rurais de Alagoa Grande, na Paraíba, dizia que "É melhor morrer na luta do que morrer de fome". E foi morta pelos latifundiários por causa da força de suas ideias e suas lutas. mas virou semente. hoje são muitas margaridas. e se elas escolhem de que lado estão, não é à toa. a primeira vez que estiveram em Brasília foi em 2000. não foram recebidas pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. não teve ninguém para ouvir suas pautas de reivindicação. nos anos seguintes, quem as atendeu foi Lula. e foi Dilma. de que lado poderiam estar elas, senão dele e dela? e como poderiam estar ao lado dos que estarão nas ruas domingo, se nenhum deles sabe de suas existências? veja. são respostas fáceis. 

4 Palavrinhas:

Rosana Rogeri disse...

Obrigada pelo texto, Milena. Não faz ideia do alento que ele me trouxe.

Renato Domingues Diniz disse...

Oi, Milena! Lendo você me lembrei de passagens da minha infância. E acho que o que nos diferencia é justamente ter o orgulho de ter passado pelo que passamos, mas não ter raiva do passado e da nossa origem. Afinal, penso que é poético, talvez sublime, lembrar de quando eu morei em uma casa de pé-a-pique e chão de terra, não me envergonha em nada! O que brinquei lá é indescritível!Seu texto me remeteu minhas lembranças porque acho que é exatamente o quanto a gente valoriza as nossas vidas e como se vive que proporciona estar do lado de quem estamos- do povão! Tem um menino negrinho na rua de casa que empina pipa direto. Quando o pipa dele cai no terreno de casa ou se enrosca na cerca elétrica, vou lá e tiro e devolvo. Acho que a criança vai exercitar seus aprendizados, também, brincando, e não serei eu que vou quebrar o barato dele! Abraço!

Unknown disse...

Adorei o texto... muito sincero e emocionante!!!

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.