paulistano não dá carona nem que esteja uma chuva de cair mundo e seja apenas por dois quilômetros e alguma coisa (mesmo que tenha acabado de beber umas cervejas com você). francês beija seu rosto numa distância de passo largo. e se retrai diante de qualquer gesto que esboce alguma intimidade. para nordestino, mocinha de bermuda curta e batom vermelho é puta e negro é preto, e se benze quando vê um logo de manhã. e todo vilhenense é evangélico e homofóbico.
meu ex-namorado nascido e criado em são paulo desviava mais de duas horas e meia do seu caminho para dar carona a todos os seus amigos num fiatzinho que cabiam até oito pessoas. minha amiga ruiva parisiense com seu namorado dá a cama deles para eu dormir por uma semana, alojando-se, eles, na sua sala minúscula. minha madrinha que se benzia de manhã só guardava um prato de comida para o "nego Dedé" e que ninguém botasse a mão porque era dele. e, por lá, ai de quem disser que alguém conhecido é puta. e preto. mesmo que sejam preto e puta, como se é e não se é. no bar de maior movimentação em Vilhena, onde vai toda a moçada jovem, hetero, branca e bem nascida, como se poderia dizer, e se diz, os gays se agarram, se beijam, começam e terminam relacionamentos, assim como deve ser. e meu filho é vilhenense e vai sempre ser. e "marca X" de desaprovação pra bisavó que diz que tatuado não vai pro céu. e esta mesma bisa acha tão bonito o moço tatuado. e tão bom. e este mundo pequeno, que é o de todos nós, desmente qualquer verdade que possa ser verdade nas "grandes linhas" mal escritas acima.
e são paulo é cinza e feia. e tem os espetáculos mais "fodas" que eu já tive o prazer de ver com assombro no olho. porto velho é também suja e feia, se comparada a vilhena e mesmo sem comparação, e foi lá que vivi os anos mais doidos e lindos da minha vida e conheci as pessoas mais fantásticas. campinas já foi a cidade mais perigosa do Brasil. e quando era, eu e minha melhor amiga entrançávamos as pernas alta madrugada bem no seu centro, onde morávamos, e nunca recebemos nem cantada, quanto mais assalto. e paris é uma cidade super segura. e o ladrão levou minha mochila - com todos os meus equipamentos - mal eu pus os pés lá. e é também uma cidade fria e cinza, e lá me sinto em casa, como se minha casa fosse. e vilhena é um grande condomínio de casas luxuosas. e nossa casa é amarelo desbotado, cheia de vida dentro dela, onde um menino Poeminha aprende a crescer.
que sentidos podem ter os atributos em grande escala, se o que vivenciamos e guardamos em nós é o micro, o pequeno, a miudeza, o gesto mais bonito, mais doce? se, de fato, o que se tem é o que se vive? pra que me interessariam o sujo, o feio, o cinza, se o que guardo em mim é o que vivi e vivo em cada uma dessas cidades, com cada uma destas pessoas?
que sentidos podem ter os atributos em grande escala, se o que vivenciamos e guardamos em nós é o micro, o pequeno, a miudeza, o gesto mais bonito, mais doce? se, de fato, o que se tem é o que se vive? pra que me interessariam o sujo, o feio, o cinza, se o que guardo em mim é o que vivi e vivo em cada uma dessas cidades, com cada uma destas pessoas?
é por estas e outras que levar a sério os estereótipos, alimentá-los, vociferá-los nas redes sociais, não me faz sentido algum. quem faz sentido é soldado, não é mesmo assim que diz o poeta?. o que interessa, o que deveria interessar, é o mano a mano, o olho no olho. o que estabelecemos de afeto - e de desafeto - com o outro. o outro igual. e o outro diferente de nós. nestas eleições, é verdade, a prova foi dura. chegamos nela como o país cordial que fez da copa do mundo, contra todos os diagnósticos, um sucesso de gente alegre, sorridente e hospitaleira e saímos dela como um país dividido e retumbantemente preconceituoso. mas será mesmo? que povo somos::: o da copa do mundo ou o das eleições presidenciais 2014? e se formos os dois? e se não formos nenhum? e se formos esta contradição? nem anjos nem demônios? este gesto impróprio e tão próprio de se benzer de manhã e guardar o prato de comida à tarde? será que já fomos um país de povo cordial? ou deixamos mesmo de sê-lo? inventamos o ódio e o desamor em pouco mais de três meses? ou misturamos o amor, o ódio, o desamor, em pouco mais de três meses? eu não tenho resposta alguma. eu estou meio assustada, meio como todo mundo. ainda mais porque acabei de fazer quarenta anos. e fazer quarenta anos é quando é preciso admitir que a juventude ficou definitivamente pra trás há muito tempo.
mas sei que a vida não cansa de me dizer que é o um, é o sujeito, com suas contradições, que deveria nos apetecer. que povo eu vou querer ser, é a grande questão; com que povo eu vou querer me acompanhar. e é com este mesmo. este nem anjo nem demônio, porque o céu e o inferno são o solo que pisamos todos os dias. é só o que sei. o brasil que sou, e que quero comigo, é esta face tranquila do meu filho. é a parte que me cabe. e agora, que a juventude já passou há muito tempo, só me resta cuidar desta parte antes que a morte venha e me leve tudo.
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dedico esta postagem as minhas amigas Lili e Rô, que me deram uma bonita festa de 40 anos, de onde, mais uma vez, eu não queria sair, embora já passasse, há muito, da hora.
Milena, gostei demais! Posso até sentir seus pensamentos se revirando em reflexões! Não é para todos a percepção do imperceptível, é dom de poucos e você o tem. Concordo com quaaaaase tudo, só não que o céu e o inferno é onde pisamos....a menos que você esteja metaforizando! rsrsrs Grande abraço, Professora e que Deus a abençoe nessa nova etapa da sua vida. Quarenta anos também não é para muitos, então festeje e os celebre! Abraços.
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