nos tantos anos que escrevo neste blog, algumas postagens causaram polêmica. e geraram tantos
outros discursos. e sempre optei por não responder. um
texto que gera outros textos a ponto de se perder é o que deseja todos que
escrevem. mas quebrarei um pouco essa “regra” em razão do cuidado com algumas pessoas a quem respeito e que me interpelaram de modo igualmente cuidadoso, mostrando-me outros pontos de vista que
me escaparam. e não pretendo que esse texto se configure
como resposta aos que me detrataram em suas páginas pessoais ou mesmo na página coletiva da UFSB em rede social. ainda que me cheguem as notícias, não me interesso por esse tipo de contenda. meu esforço, desde sempre, tem sido pela construção do pensamento. por isso, tal texto é sobre o mesmo assunto em outro registro de linguagem.
minha crítica dirige-se à concepção que norteia a
organização das reuniões anuais da SBPC, e não apenas a esta; reuniões que, dada a sua importância, recebem um alto valor do governo federal, devidamente registrado
no Diário Oficial da União. não são recursos escusos nem indevidos, assim como seus usos também
estão à mostra, seguindo a publicidade obrigatória referente a esses tipos de recursos. tanto o repasse como o seu uso são de
conhecimento público. é só buscar no Diário oficial, no portal da transparência,
que está tudo lá. fica a dica.
antes de tecer a minha crítica, analisei a programação
científica da SBPC, comparando-a com outros eventos de grande porte da grande
área de Letras/ Linguística; eventos com mais
de uma dezena de conferências simultâneas, mais de uma dezena de mesas-redondas simultâneas,
com programação cultural, sessões de comunicação e de pôsteres etc.. e concluí que, embora a programação
científica da SBPC pareça gigantesca e diversificada e sua composição advenha de diversas associações, não é maior do que a
desses outros eventos, que são igualmente problemáticos no tocante à espetacularização e à monumentalização, mas que, nem de longe, recebem o mesmo apoio financeiro da SBPC. e além disso, fiz uma conta simples: quantos eventos poderiam ser realizados, em diversas universidades brasileiras, inclusive aqui, se pensarmos que a média de apoio de um órgão como o CNPq no custeio de eventos de pequeno/médio porte é de 20.000,00 e de grande porte, 100.000,00. é só fazer as contas.
o que denominei de espanto não se refere, portanto, ao valor em si, como
uma espécie de defesa do não uso do dinheiro público, mas trata-se
de repensar as suas formas de uso. refiro-me, portanto, ao que chamei de “indefinição”
do que seja, de fato, a questão primordial da reunião da SBPC, se crermos no que
está dito na página do evento: “a Reunião Anual da SBPC é um importante fórum
para a difusão dos avanços da ciência nas diversas áreas do conhecimento e um
fórum de debates de políticas públicas para a ciência e tecnologia”. a meu ver,
essa falta de indefinição notória entre o que se propõe a ser e o que, de fato, é gera um descompasso visível entre o que se gasta para erguer a sua
estrutura de megaevento (grandes tendas, praças de alimentação, construções
etc..) e o que se gasta com a programação científica (hospedagem, alimentação,
diárias para conferencistas etc..).
em outras palavras, minha reflexão parte de um
posicionamento político de quem acredita que é preciso questionar essas
estruturas de megaevento acadêmico, científico e mesmo artístico-cultural, não
apenas pelo fato de ser dispendiosa, mas porque não atinge seus propósitos no
alcance devido. a comparação com a Bienal de Artes e com a Flip não foi por
acaso. são também megaeventos, ainda que cada um tenha propósitos distintos, imprescindíveis
para suas áreas; importância que não oblitera – pelo contrário, deveria enfatizar
– os questionamentos feitos, muitas vezes, por aqueles envolvidos em sua
concepção e construção, em busca do redimensionamento de seus traços
composicionais.
não se trata de requerer as suas extinções, e sim de
reformular suas políticas. minha crítica não coteja o fim de nenhum desses
eventos, embora partilhe pontos em comum com quem defende tal posicionamento. o
que está na base de minha crítica é o desejo de reconfiguração do que está
posto como modelo de megaevento acadêmico-científico e, se esmiuçada, chegaria,
sim, aos modos de recepção dos estudantes da educação básica. o que se apresenta
como inclusão – ainda que absolutamente necessária e proveitosa – é, a meu ver,
apenas um “roçar” de corpos que não se juntam de fato. explico para não
enveredar pela linguagem metafórica: diálogo, discursividades em trânsito, trocas
aconteceriam se professores e estudantes da educação básica estivessem, por
exemplo, inseridos nas discussões da programação científica, e não apenas como
ouvintes, mas, sim, com cadeira garantida nas grandes mesas de discussão. ou se
estivessem ali para serem ouvidos, ou para escutarem, a respeito das políticas
públicas destinadas às ciências e tecnologias. enquanto forem apenas visitantes
a interagirem com o que parecem ser “brinquedos tecnológicos”, quando são,
muitas vezes, objetos manipuláveis resultado de pesquisas sérias e substanciais,
aparentemente será apenas isto: um parque de diversões onde meu filho de seis
anos se divertiria muito. e sim, meu filho tem seis anos e, por inúmeras vezes,
pensei no quanto ele se divertiria ali (só não o levei porque coincidiu com a
sua viagem de visita à bisavó).
ao contrário do que normalmente se diz, sessão de pôsteres é uma forma muito
questionável de inclusão, pois é óbvio que o modelo de “exposição”, de
“apresentação” não funciona no que deveria ser espaço de debate, de
diálogo. há centenas de artigos
científicos que questionam esse modelo. fica a dica. é um meio, sempre incompleto
e imperfeito, criado, justamente, quando os eventos acadêmicos foram
ficando cada vez maiores, para supostamente dar voz àqueles que iniciam
pesquisas ou aos pesquisadores a quem nunca darão assento nas conferências
e mesas-redondas. ou seja, foram pensados para propiciar um espaço, ainda que exíguo, aos que,
de fato, pagam parte da estrutura do evento por meio das inscrições. não deixa
de ser, assim, apenas uma das estratégias para garantia de público. e os estudantes, os pesquisadores, devem saber
disso não para se sentirem diminuídos pela participação nessa modalidade, mas para
batalhar por outros espaços de participação em vez de ficarem apenas agradecidos e
acomodados com aquele ter-lugar. o nome disso é consciência política.
nos campos de força constitutivos de eventos acadêmicos, sessão
de pôsteres é menos do que sessões de comunicação e, estas, menos do que
conferências e mesas-redondas. e não fui eu que atribuí essa carga valorativa
precária e injusta; pelo contrário, desde o primeiro evento que organizei, há
mais de vinte anos, como estudante de Letras, rompi com esse modelo. guardo até
hoje as fotos que mostram que quem teve assento na mesa de abertura fomos nós, então
estudantes, organizadores do evento. não havia uma única “autoridade”
acadêmico-administrativa, embora o financiamento tenha vindo da instituição. e
também guardo as fotos em que os estudantes falavam sobre suas pesquisas no
mesmo auditório, na mesma mesa, em que os professores convidados palestravam. e
não foram ações por acaso. eram, então, decisões políticas, que faziam muito
sentido naquele momento de reivindicação de direitos. e como organizadora de
eventos acadêmicos, avancei sempre mais na ruptura desses modelos
preestabelecidos de eventos, misturando, por exemplo, numa mesma mesa-redonda convidado
estrangeiro e aluno de graduação, e não apenas como apresentador, mas como
debatedor; pondo aluno de graduação como conferencista e tantos outros gestos
de tentativa de ruptura da engrenagem maquinal que compõe os eventos
acadêmicos-científicos.
acato as opiniões dos que disseram que fechei o meu texto
apenas na crítica, não abrindo espaço para o que foi relevante e, mesmo,
distinto. com isso, deixei de proteger as pessoas que trabalharam para erguer a SBPC. e
talvez não o fiz, justamente porque eu era uma dessas pessoas e não achei que
precisava de defesa, porque minha crítica não se dirigia a elas, que, em última
instância, eram também eu. se eu dirigisse uma crítica a mim, só poderia ser
uma: o fato de ter participado, se tenho tantas críticas ao modelo do
megaevento acadêmico-científico. sei exatamente por que me envolvi na
organização: porque, desde o primeiro momento, achei de
uma importância fundante e simbólica que a SBPC se realizasse aqui, numa
universidade recém-criada devido à política de interiorização do ensino
superior. parecia-me então um movimento de resistência muito bonito para que eu
abdicasse de fazer parte dele.
porém, creio agora que não aproveitamos tanto quanto
poderíamos. a SBPC deveria ter sido pensada, por nós da UFSB, como um grande
fórum de resistência ao golpe democrático que sofremos. vem daí também meu
espanto com o ar festivo de comemoração. não poderíamos ter feito do nosso solo
acadêmico um espaço de comemoração nesse momento histórico que atravessamos:
deveria ter sido um solo de resistência, de provocação, de luta, de
reivindicação. não tínhamos nada a perder e muita dignidade a ganhar, se assim
tivesse sido, pois reforçariam as construções discursivas que
sustentam algo como a Formação Geral desta Universidade, como espaçotempo de
construção de pensamento crítico em relação ao estado de coisas contemporâneo. essas lutas,
reivindicações, resistências, podem, sim, estarem entranhadas numa grande
festa. tanto melhor, se estiverem. mas é preciso proferir essa resistência, senão
resta apenas a festa. é preciso dizer por que se festeja, como fizeram as
mulheres do bate-barriga de Helvécia ou o grupo de boi-bumbá, de Eunápolis, que localizaram politicamente seus festejos como atos políticos de resistência ao apagamento de suas histórias. provavelmente, tantos outros a que não assisti fizeram o mesmo. em gestos assim, estão as grandes lições. e nós, festejamos por qual
razão? somente por que a SBPC veio para nossa recém-construída universidade? para
mim, é pouco, muito pouco.
e não. os movimentos de resistência que aconteceram não
foram criados por nós, mas por alguns daqueles que vieram de fora. uma
professora convidada, espantada, disse: “achei que chegaria aqui e haveria
faixas contra o golpe em todo lugar”. e estendeu sua faixa solitária bem à
vista dos nossos olhos aparentemente acometidos de cegueira histórica. e presenciar isso, como professora da UFSB,
reforça ainda mais minhas convicções que, tantas vezes, têm entrado em confronto
com outras convicções. igualmente válidas, indubitavelmente, mas com as quais
não posso compartilhar, senão dialogar, se for possível a criação de um espaço
dialógico ético.
apesar de não me considerar avara em elogios, aclamações,
confirmações, não acredito que políticas públicas substanciais advenham daí. por exemplo, toda e
qualquer mudança nas políticas públicas de educação é resultado da luta, da
vigilância atenta aos mecanismos dos micropoderes que trabalham para a
supressão desses direitos. nesse sentido, teríamos muito a aprender com um
movimento como o do MST, sempre atento à própria formação política. é o fato de
estar na UFSB, e acreditar no seu projeto, que me leva a atentar para os seus
pontos críticos. é o fato de ter participado da SBPC que me permite lê-la do
modo como eu a li. engana-se quem pensa que o não-questionamento edifica
qualquer construção; serve tão somente para a monumentalização. perseguir a diferença
entre construção e monumentalização talvez
seja o caminho para que as discussões não descambem para os personalismos, o
deboche e a desclassificação dos sujeitos que falam. e acrescento: não tenho nada contra o kitsch na sua potência de subversão, de crítica, mas tudo contra quando perde essa potência e resta apenas o modelo desfigurado.
era a algo assim que me referia quando falei, logo no início
do meu texto, sobre o fechamento da UFSB, o qual sua hospitalidade festiva não
escondeu. sempre quando me deparo com alguma ação de extrema incoerência, eu sinto
falta da presença do conselheiro, no sentido lato da palavra. quem me conhece,
já me ouviu com cara de espanto, muitas vezes, a perguntar: “não tinha ninguém
do lado destas pessoas para aconselhar a não fazer isto?”. foi
exatamente isso que pensei quando vi toda a programação paralela construída
pela UFSB para tratar tão somente da sua atual situação política. não sou
contrária a esses fóruns de discussão, mas, no meio da SBPC, sendo a
anfitriã, pareceu-me inapropriado e oportunista, uma
vez que estávamos ali, ou deveríamos estar, para tratar das questões propostas
pela SBPC – propostas nas quais a UFSB teve participação, se
acreditarmos no que disseram os organizadores em diversas ocasiões. ao invés
disso, propuseram, intempestivamente, uma
programação extensa para tratar de nossas questões internas, a ponto de gerar
um documento de conciliação com o governo ilegítimo, ainda que transmudado de reivindicação. é só ler para averiguar.
e para mim, o virar às costas simbólico (porque
evidentemente eu sei que muitos professores e estudantes participaram também da
programação oficial da SBPC) advém de um discurso que se tem difundido na UFSB
e tem causado muitos danos e equívocos; que é o discurso que, ao traçar uma
linha histórica da universidade brasileira, coloca a UFSB como um marco
divisório, muito à frente de qualquer outra. é um discurso tão sedutor quanto falso. e o seu equívoco advém, sobretudo, desse traçado linear, quando
todo o esforço da História, como disciplina, tem sido negar essa ideia de
linearidade. somos, sim, uma universidade com um projeto instigante de ruptura a alguns dos paradigmas que construíram não apenas as Universidades
brasileiras, mas a ideia de Universidade que as sustenta, porém não estamos à parte dessas
Universidades, nem rompemos, ainda, com muitas dessas ideias. E as provas
pululam por toda parte ante nossos olhos espantados. e esse lugar distinto da
UFSB, ainda que exista como porvir, não deveria nos levar a desprezar todo o
saber agregado até aqui por essas outras instituições. reconhecer isso não nos
diminuirá em nada como instituição e negar tampouco nos engrandecerá. muitas das
ações que buscam construir nosso projeto diferenciado de universidade já foram
pensadas e testadas em outros espaços educacionais, resultam de lutas travadas e avanços alcançados em outras arenas. não se originaram
de um único ser demiurgo e visionário, mas, sim, são resultado de uma série
de outros espaços de luta, de reivindicações que germinaram no interior das
universidades públicas brasileiras.
por isso, eu me pergunto constantemente a quem serve esse
discurso de originalidade e vanguardismo. e fazer essas perguntas não deveriam
me colocar num lugar caricatural de inimiga. é também um construto discursivo
que interessa, ou deveria interessar, tão somente àqueles a quem o
questionamento incomoda. a quem interessa a não crítica à SBPC? certamente,
a sua presidente, que diante da discordância armou o circo que
inevitavelmente só poderia reposicioná-la ainda mais forte no lugar que ela
provavelmente nunca pretendeu abandonar. circo noticiado na página da SBPC de uma maneira que deveria nos causar indignação. compreender essas sutilezas talvez nos
ajudasse a perceber que a crítica que teci talvez devesse interessar a toda universidade anfitriã da
SBPC, que recebe um modelo pronto no qual tem muito pouco espaço de
representatividade.
lembrei-me, agora, da expressão ouvida do
conselheiro Joelson, quando ele afirmou que ia “arrombar as portas”, e não ficar
indefinidamente agradecendo porque supostamente a Universidade resolveu abrir as portas para seu povo. e isso advém da sua consciência de
que ter-lugar não é algo dado; é construído por meio de gestos de luta. e
ainda na sua lógica, sei que isso exige tempo. e é preciso considerar esse
tempo. no entanto, é preciso construir esse tempo no agora. resta saber quantos de nós estamos preparados para tamanha responsabilidade e tamanha percepção histórica.
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