quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Chico, Chico




antes, quero dizer que, embora este blog esteja parecendo um obituário, há muita vida por aqui --- na vida. nem sempre fácil, algumas vezes muito difícil --- mas vida. aqui, em torno. 

meu pai foi embora em um sábado --- o dia que ele mais amava, o dia que elegeu, durante toda sua vida, como o dia para sair de si, para estar na rua, para ficar tonto. --- como se alguém que, gostando muito de carnaval, morresse em plena avenida, entregue à alegria da batucada. foi assim --- num repente. 

talvez tenha dado tempo para sentir um pouco de medo, mas não muito --- é o que espero. pois ele tinha muito medo da morte. sempre que atentou para alguma mudança em sua vida foi na tentativa de burlar a morte, de enviá-la para longe de si. gostava de imaginar que viveria tanto tempo como seu pai, como seus antepassados --- com vidas tão longevas. seu neto Emanuel,que esteve com ele todos os dias nos últimos seis anos, disse que ele viveu sua vida todinha --- e me deu uma pequena alegria esse pensamento. porque para nós, os ainda vivos, parece sempre pouco. é sempre um ainda não. 81 anos é mesmo uma vida todinha::: deu para engendrar outras vidas que o amavam, que tinham nele a maior referência de amor e de delicadeza. 

meu pai não era um homem comum. com isso não quero dizer que era extraordinário. quero dizer que ele tinha os dois pés fincados no imaginário. ele falava com os bichos, falava com as crianças. mas principalmente falava sozinho --- numa peleja grande com suas tantas histórias pra dentro - sussurradas, ligeiras, secretas. isso lhe dá pelo menos duas existências::: a que vivia com as gentes de fora e a que vivia com as gentes de dentro dele -- inventadas, recriadas, contadas e recontadas.

[e eu sou a sua herdeira direta desse viver para fora e para dentro --- pelo menos, até onde sei. pois se é a primeira vez que confesso minhas outras vidas, talvez outra das minhas irmãs também tenha herdado esse inventar histórias, criar outras paisagens e outros fins para dentro --- dentro de si. fim da confissão].

por muito tempo, meu pai foi o menos silencioso de sua família silenciosa. agora, que eu estou mais próxima da velhice do que da juventude, é ainda mais bonito reafirmar o que essa família representou na minha formação::: o que enxergo nela como o que me constituiu e o que eu gostaria que tivesse me constituído --- que passa por nomes como dignidade, altivez, que sempre impressionaram o meu eu-menina. dessas heranças que valem uma vida toda. digo "por muito tempo", porque, nos últimos anos, meu pai havia finalmente incorporado o silêncio de sua família. e plantava seus olhinhos calados sobre nós a perguntar, sim, pela sua vida -- o que havia sido das terras? da casa deteriorada? do pobrezinho de seu filho que havia ido tão cedo? o que havia sido dela com quem não podia mais se encontrar? E menino de vô, cadê? E Ney, como vai? -- era assim sua vida de fora. a de dentro era, por vezes, assombros e batalhas. 

ter um pai aluado é, desde menina, conhecer um menino-deus. é ter que desde cedo reconfigurar a imagem de pai e de homem, de sucesso e fracasso, de poder e saber. pois foi assim que carreguei em mim meu pai a vida toda --- sabendo ser ele diferente. um homem-menino com toda a carga de beleza advinda daí::: o melhor abraço, o beijo mais bem dado, o sorriso meio de lado, quase que envergonhado, a timidez, as poucas palavras, o jeito doce, o cheiro mais reconhecido.

meu pai gostava de perfumes. de camisas azuis  --- jamais o vi de camiseta. de calças em vez de bermudas. de relógio. de chapéu preto de feltro, de sandálias de couro. de botas - que deixou de usá-las nos últimos anos. 

meu pai gostava de presentear perfumes e sabonetes.

meu pai gostava de pentear os cabelos. de escovar os dentes. de tomar banho. de beber pinga. de cheirar as filhas, os filhos e os netos. e as mulheres, quando elas deixavam. 

meu pai gostava de deitar em rede.

meu pai gostava de crianças. e as crianças gostavam demasiadamente de meu pai.

meu pai amava minha mãe. amor grande medonho desmedido desalmado. era riobaldo, baltazar e serapião. sim, serapião. nos últimos anos, serapião. 

meu pai me bateu uma única vez. e chorou porque me bateu, agarrado a mim, me dando beijos, com gosto do café que eu não soube fazer. e eu, que fui tão surrada, nunca mais tive gosto pelo café. pela cozinha.  e ganhei gosto por pedir desculpas. por beijar os que amo. 

meu pai comia de um jeito diferente. esmagava toda a comida antes de colocá-la na boca, fazendo uma dança com a colher que era antes de tudo método --- e gostava dos pés da galinha e do pescoço, satisfeito de sobrar para ele as piores partes. as partes da galinha dizem muito sobre a nossa história familiar de faltas. até hoje me é excessivo ver uma galinha assada, daquelas que se vendem para os sábados preguiçosos, e imaginar que posso pegar dali qualquer pedaço. me restam sempre as asas, como para meu pai restavam os pés e o pescoço. de restos, como nossa história.

meu pai comprava queijo e rapadura a cada vez que íamos visitá-lo. e nos fazia trazer esse fardo pesado nas malas. queríamos dizer que não queríamos. mas ele ignorava. e chegava com queijos gordos e rapaduras pesadas. e agora, com gastrite e colesterol alto, não paro de comer queijo e rapadura. desde a volta do cemitério. um primo fez um lanche com muito pão, frutas, sucos. e queijo. comi e comi. e ri e ri. ali, abraçada com Verinha, ouvindo as histórias de Ferdin. Vamos para a Europa, num tour, todos nós. e eu queria ter dito: vamos, Verinha, porque Paris com você seria um sonho dos mais grandiosos, como meu amor por você também desmedido. e nunca soube como dizê-lo do tanto que queria saber dizer. mas você sabe, ali, agarrada na minha mão, na igreja em que o corpo do meu pai foi velado. ali, no cemitério, em que você olha para mim, com ela na frente, e diz: "quem diria?"
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as imagens aí acima parecem expressar meu pai como um homem triste. era não. era só em instantes. talvez tenha sido por isso que, quando as tirei ou logo depois, eu pensei que meu pai estava se preparando para ir. as fotos dizem mais sobre um pai que ama seus filhos. eu as tirei de tão longe quanto a minha câmera permite. e sabia por que ele chorava. era pelo meu irmão morto. também chorei pelo meu irmão no meio desta grande festa e, por isso, pude chegar perto dele, logo depois, e dizer: "chore não, Chico, se tiver uma brecha, ele está aqui se divertindo e bebendo essas cervejas todas". 

pois era assim Chico. 
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um homem que não nos deixava esquecer que os afetos nos esgarçam e nos inteiram. um homem que nos doou - às filhas e aos filhos - um amor delicado, distinto, poderoso inteiro feliz leve passarinho. 

... eu tenho em mim uma memória. guardo-a. é minha. a essa memória de afeto, acrescento esta::: no pequeno corredor que há na casa de Maneca, separando a sala e a cozinha, meu pai está lá, saindo do banheiro, e eu o agarro e digo::: "Chico, Chico, você está tão calado. Chico, Chico, eu te amo". E ele responde, quase em silêncio::: "Tô não, minha filha". 

e agora que estamos sozinhas, sem esse afeto vivo, peço a ele como uma prece:::...........................................................................................................................................

eu não sou de pedir ajuda a ninguém. quando tenho desesperos, são desesperos orgulhosos, solitários, medonhos. estava assim, e a razão de estar assim já se perdeu, há cerca de um ano, e no calçadão que caminho algumas vezes por semana, eu invoquei meu irmão morto e lhe pedi ajuda:::: "me diz, mano, me diz o que fazer, me diz como fazer o certo, me diz, mano".

agora, não estou dormindo. as mortes levam meu sono. e me põem num frenesi absurdo. não sei se é narrativa ou se foi assim mesmo, mas só voltei a dormir depois que meu irmão morreu quando sonhei com ele. um sonho tão rápido e tão bonito. agora, talvez eu espere que meu pai me venha em sonho. e me diga que está tudo bem. enquanto ele não vem, durmo pouco e sonho sonhos. 

merci, Chico. não poderia ter sido mais bonita nossa história. e poderia. a história que manaMácia e a Morg viveram com você foi infinitamente mais bela do que a minha. Por isso, eu as reverencio e agradeço. que os deuses me deixem pronta para a minha morte, mas principalmente para a vida. porque a vida é mesmo esse conto ligeiro, esse fio atado a nada. --- como disseram as minhas irmãs. 
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chamava pai de pai. mas muitas vezes eu o chamava ou me referia a ele --- de Chico, Chico, como se estivesse falando com ele, mesmo se não estivesse, imitando o seu tom de voz, que era - e não poderia deixar de ser - muito peculiar. como um rumor do que ele era. 

quando éramos:::::::::::::::




 de frente, nós.