sábado, 10 de novembro de 2012

acordada

ainda estou acordada. não dormi. deveria estar dormindo. sei que deveria. mas agora que comecei a escrever, não consigo mais parar. não sei onde foi parar aquela Milena. ela era tão doce. tão doidivana. tão alheia a tudo isso. eu amava aquela moça que se espreguiçava naquele lugar tão pequeno com cortinas de tecido cru. e aquela moça que acordava às 11h da manhã, depois de ter dormido três horas, só para sair correndo para ver um filme. matinê. ainda existe? agora, onde estou? hoje gritei com meu filho. ou melhor, ontem. raro, isso. mas saber da raridade do gesto não me consola. queria nunca ser uma ausência para ele. e é o que tenho sido. ele me vê, mas não estou com ele. aí ele vem aqui, onde trabalho, e diz: "sai daí", como se dissesse: "não saia daqui de perto de mim".

mas não posso negar que também amo esta Milena. esta de agora - tão enclausurada nas suas determinações. sem me afastar um só milímetro do que tracei. nos planos. mas está doendo. está doendo de verdade. me sinto só. muito, muito só. desterrada neste lugar tão árido. e para dar um pouco de humor, me agarro à fantasia de que posso me cobrir de outra::: e Mariflor me vem na lembrança::: ela, que conseguiu sair de perto desta gente sem alma e agora está no mundo do supérfluo - no que isso contém de beleza. ela, espalhando cores pelas casas afora. eu poderia fazer o mesmo. cuidar da casa dos outros como cuido da minha. poderia?

por ora, eu apenas fujo. suporto a presença dos ódios porque, bem aqui, o que tenho é uma paixão. a paixão pela escrita. a paixão pelo fazer. aqui, rodeada dos meus livros, imersa na minha escrita, toda aridez desaparece. e é por isso que estou ainda acordada, enquanto meus dois homens dormem - e dão uma pausa na falta que sentem de mim. a minha falta deles só cabe a mim pagar. acordada, sem dormir.
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domingo, 4 de novembro de 2012

Das memórias da infância

(todo dia 26 do mês, escrevo aqui. a postagem deste mês foi esta. e foi especial, porque era o dia do meu niver).
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Num dia raro, meu irmão me disse: “Um dia, será assim: eu arrastanto os pés; você segurando nas paredes. Tavarim e Tia Elita. Ou vó Adauta. Ou tio Delbrando e tia Mariah”. Fui longe com esse dizer. Eu tinha 11 anos e uma imagem forte de amor: a do pai. Talvez duas: a da madrinha. Todo o resto eu sentia como uma nebulosa – até minha família mudar de cidade e eu estreitar os laços com meus avós e meus tios-avós paternos. Naquela época, a menina triste e alegre que eu era finalmente encontrou um lugar no mundo, o que é o mesmo que dizer que encontrei pessoas para amar. A família do meu pai sempre foi silenciosa. Entretanto um silêncio que acolhe. E tenho a impressão de que toda minha noção de família está contida nesses silêncios e naqueles poucos anos de convivência diária com eles, quando tive que partir aos 15 anos. Desde o princípio, um acolhimento mútuo: eles aprenderam a gostar de criança; eu aprendi a gostar de velhos. Velhos, sim, que, naquela época, ainda podíamos usar as palavras. Idosos seriam uma ofensa. Para mim, eles já haviam nascido velhos. Uma vez, espantei-me quando ouvi dizerem que minha avó havia sido enérgica e brava. Eu só conheci a delicadeza, os pés arrastando, as mãos amassando os farelos de pão, antes de levá-los à boca, sentada naquele velho fogão de lenha onde ela comeu até morrer.O único instante de morte que presenciei até hoje. Um longo minuto triste,  logo depois daquela correria que passou pelo átrio da igreja.
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Com minha voz estridente, eu corrompia os seus silêncios, até mesmo o de tio Manuel, um dos mais silenciosos, que às vezes vinha do sítio com balas no bolso. Nunca esqueci a última vez que o vi já despedida; ele montado em sua bicicleta, e eu, ao lado, em um equilíbrio precário. Nos abraçamos num soluço conjunto e ele disse: “Agora vá. E não esqueça este velho”. Talvez seja por isso que, apesar de estar sempre indo desde aquela época, eu nunca esqueço. E havia tia Expedita, casada com tio Sebastião, um dos homens mais delicados que já conheci. E dos que mais amei, daquele amor que adentra. Ainda hoje lembro de cada recanto da casa no fundo da igreja. Dela e dele. Ela tinha os pés tortos e pequenos e era engraçado vê-la equilibrando-se como que por magia. Era uma das mais falantes. Eu a ouvia contando suas histórias sempre com aquele pente na mão até deixá-lo na cabeça num equilíbrio também misterioso. Ela nunca foi capaz de me ver  como a magrela que eu fui na adolescência. Guardava nela meu corpo de bebê: tão gorda a ponto de me dar o apelido de um bicho nada bonito. Na última vez que a vi, ela já não se levantava da rede, mas continuava a fazer a pergunta que me presenteava a cada vez que eu voltava: “É Pebinha, é?” Os nomes e seus múltiplos. Para eles, nunca fui Milena. Tia Mariah me anunciava com a memória voltada para longe: “Ah, Delbrando, é Cláudia”. E ele respondia: “É mesmo, é Claudinha”. E da casa de tio Delbrando e tia Mariah, nunca saí sem algum trocado no bolso. Por mais que explicasse que não precisava mais, eles não entendiam. Se nunca deixei de estudar, então nunca deixei de precisar de dinheiro; é a lógica do cuidado que não ousava ferir quando já adulta e professora universitária. 
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De todos, a mais próxima foi tia Elita. Conversávamos horas a fio, sentadas em uma calçada alta que havia no fundo da casa e de onde eu via o pé de goiabeira do vizinho. E ela sempre respondia: “Eh, Cláudia, é você que tem que saber”. O que eu tinha que saber naquela idade já não lembro. Herdo seus gestos estranhos que ainda nos mantêm próximas, apesar da longa distância: ela com o lençol na cabeça; e eu, com ele na boca. As senhas com que ela me anunciava: “Lá vem bode velho arrastando os pés, igual à avó”. Depois, cuidávamos da casa dos meus avós onde ela sempre morou; uma casa estreita cheia de portas que ainda está lá, mas que não mais pertence à família. Jogávamos baldes e mais baldes de água que escorriam pelo longo corredor e desciam como cascata para a cozinha de piso inferior. Eu ainda esfregava com esponja um a um os fitilhos de plástico das cadeiras para tirar a sujeira das moscas. Em troca, ganhava amor, gorjetas e um prato de comida vez ou outra. Em suas casas, eu podia assaltar os potes de bolacha. Por isso, bolachas salgadas são minha madeleine. Elas trazem até a mim esses senhores e senhoras que me ensinaram e me ajudaram em um tanto de coisas. E assim como eu pensava que já nasceram velhos, ainda hoje costumo pensar que todos ainda estão lá e que a qualquer hora eu terei novamente 11-15 anos. 
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