domingo, 15 de julho de 2018

Sumbe, Angola - parte 1











eu queria ter feito como Danilo, que escreveu um diário. havia decidido fazer, mas os dias se foram sem que o diário existisse. de todo modo, os dias existiram. e são passado e o porvir. volto logo mais. dos dias ficaram um tanto de surpresas, constatações, encantamentos, tantos e tantos pensamentos. alegrias e alegrias.

eu lembrei de uma música que agora não quero nomear, porque me parece um chavão sobre o qual é preciso sempre trapacear. é porque sou cearense. e cearense insiste que já viu de tudo, mesmo quando não viu. esse "ver de tudo" deixa o olho calejado e menos afeito ao espanto, o que não deixa de ser uma maneira de não se deixar afetar. deveríamos fugir da aridez do olho como o diabo talvez fuja da cruz. é o que tento, pois. a cada vez que meu olho arrisca secar eu me arrisco nas alegrias grandes.

espanto de verdade, que mais pareceu tristeza, foi apenas um dia. uma manhã. andar na praia ao lado de Mari é quase como estar de mãos dadas de tão bonito que é. é uma espécie de oração ao tempo que nem tudo pode levar. mas a praia pode ser moradia. extensas áreas de construções cobertas de lonas, como que em cima umas das outras, me deixaram com um oco de tristeza que demorou a passar. foi o sol. ou calha de ter sido mesmo o nunca-visto. dali vem o peixe que depois nos é servido. teimei que devia voltar e olhar com menos espanto === buscar ali o normal de todo dia: gente das mais variadas. e me misturar com aquele alarido todo::: os peixes grandes na bacia, as mulheres de cócoras, os homens a beberem, conversarem e repararem em nós também com espanto. as mulheres, não. as mulheres não têm tempo para olhar forasteiras que chegam. estão ocupadas demais com os afazeres que compõem suas vidas.

as mulheres carregam seus filhos nas costas e as vendas na cabeça. parece ser um equilíbrio precário, é o que pensam meus olhos desacostumados. até que um dia Mari cai no mesmo lugar em que uma dessas mulheres havia descido com um enorme tambor na cabeça: altiva, uma timidez sorridente quando nos viu, braços soltos a seguir viagem. quis de todo jeito registrar uma mulher tal como ela me parece ser: com aquele olhar fixo em quem a observa. será que doem as costas das mulheres que colocam seus filhos nas costas? dói a cabeça com aquele peso todo? será que doem as costas das mulheres que varrem as ruas com as vassouras sem cabo? a mesma vassoura que trouxe para casa com a vontade de transformá-la em objeto de memória? e onde vivem as mulheres que passam o dia a vender com seus filhos nas costas? quem cuida da casa quando elas estão nas ruas? não sei por que fazemos tantas perguntas. não basta apenas ver. a cabeça não para de fazer perguntas.

parece que os angolanos não param nunca de caminhar. percorrem longas distâncias dia e noite, dia e noite. sobe uma poeira fina que deixa tudo avermelhado; e eu teimo em caminhar na beirada da noite, como faço aqui, agora, em Ihéus. tenho medo das mãos dormentes. as ruas ficam vazias - como aqui - apenas aos domingos. nesse dia, as crianças estão na praia. nessa época, somente elas estão na praia. quando eu pergunto a razão, me dizem que ainda está frio. nessa época a água está sempre fria, mas as crianças não se importam. estão na praia, estão na cachoeira, estão no rio, estão nas ruas e querem porque querem que eu as fotografe. não adianta dizer que não quero "pose" ===  e que gosto de imagens que surgem por acaso, que pegam a pessoa distraída. as crianças do Sumbe não escutam. querem fotos e querem ver as fotos. eu tanto me espanto como obedeço quase sem perceber. e fotografo aqueles olhos fixos em mim --- um mais lindo que o outro - abertos abertos abertos, até que de repente um está fechado. e outro está ainda mais aberto a me inquirir. como poderia velar por estas crianças que carregam suas cadeiras da escola na cabeça? por que pensamentos assim enraízam e me deixam no deserto?

uma escola sem merenda me parece tão fora de propósito. como eu teria sobrevivido em uma escola sem merenda, lá pelos seis, sete anos de idade? eu sentiria ainda mais fome do que sinto hoje? a natureza não existe. e a cultura é uma velha senhora. ouço com firmeza que a merenda talvez até atrapalhe a concentração, a disciplina --- essas palavras tão ligadas ao ensino. e antes que eu proteste, a merenda está sendo posta em outra escola. as crianças estão em volta das mesas e eu quase peço para me sentar ali no meio delas para matar a minha fome de criança. mas quando saio dali o protesto cresce dentro de mim, se avoluma, e para que eu possa suportá-lo, leio ou durmo === dormito muito, naquele hotel em que um ou outro rato vem nos visitar enquanto eu, Mari e Danilo comungamos nossas vidas que - insisto - devem ser povoadas de nódoas, senão o que seriam? eles protestam e são felizes. eu também. mas tenho um oco e não sei como mandá-lo embora. nem posso. acabo por me render e admitir que encrenco porque tenho uma alma do avesso. e me apaixono novamente pela Mari. ou lembro e lembro dessa paixão por ela que nunca passa. e Danilo, tão bonito. fico perscrutando suas inteirezas, enquanto ele diz para mim e para Mari que tem um bocado de receio delas. um trio tão bonito surgiu naquelas conversas todas === parece que a vida toda é isto mesmo::: é este pensamento sobre o mundo, a universidade, as pessoas, o casamento, o estar com os outros, o estar aberta aos outros. como é bom sentir que não há nenhuma rivalidade, nenhum temor:: há dúvidas e alegrias permeadas por uma confiança grande no que agora é feito. 

e há um olhar pousado sobre a cidade de poeira fina. um olhar amoroso, sobretudo. e com o por do sol mais lindo que já vi na  vida. por isso, carrego Mari para ver o por do sol, como fazia antes em nossas tantas viagens. ela insiste que não dá para fazer as duas coisas. e eu ignoro; não por displicência, mas porque quero crer que dá. e ali, naquele por do sol, está o menino. faz o quê, o menino? o menino estuda. a onda bate. o casal de namorados se molha. e se beija. o amor é quase palpável naquele fim de tarde. por que ninguém nos diz para arregalar os olhos? para não deixar nada escapar? e pegar tudo que importa e fazer durar. como aquela missa. na última vez que havia estado em uma missa havia sido para rememorar a vida e a morte de meu irmão. naquele dia, meu pai, eu e minhas irmãs sofríamos como o diabo. uma solidão tão sem medida que não passa nunca. na missa de Angola, havia também solidão, mas, sim, alegria, uma espécie de contentamento, por estar ali e reconhecer aqueles passos nos corpos que celebravam.  
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escrevo este texto por conta de e para Aline --- que me diz ser uma pena que eu tenha perdido a alegria de escrever aqui.
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e escrevo por conta daqueles dias === os mais amorosos de muito tempo.