segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

o menino-sorriso Luan




mana Mácia, em um de seus momentos de braveza - e com aquela dor do irmão que havia morrido -, me disse que quando morresse não ia querer nada::: nem choro em vão nem texto bonito na internet. há pouco eu havia escrito sobre e para meu irmão morto. o que são as palavras senão monstros para nos apaziguar?  talvez a gente escreva porque a parte escrita seja a parte de uma humanidade perdida --- um jeito de estar com o outro, ainda que a presença, aí, fique rarefeita. é assim que hoje escrevo sobre Luan, o menino bonito de tantos amores que partiu como passarinho --- a atrapalhar as alegrias das festas de fim de ano, meio como naquela música de Chico Buarque.

há tanto a dizer sobre Luan. e não há nada que não tenha sido já dito. eu o vi bebê, menino, adolescente, rapaz e moço inteiro. ou seja, eu deveria ter morrido primeiro para seguir a ordem da natureza. um jovem quando morre - seja de morte matada seja de morte morrida - é um tanto de dor sem fim. já disseram tudo::: morre um passarinho livre. pego de surpresa bem no meio de seu voo.

Luan viveu sua doença de tal modo que nos ensinou a viver como se ele não fosse morrer tão cedo. ainda que sua vida nos últimos anos tenha sido vivida boa parte em hospitais. e agora, quando escrevo, parece estar fora de ordem isso que digo::: suas fotos públicas são todas de um viva ao estar junto, ao sentir e querer estar entre pessoas. com câncer reinventou sua vida um sem fim de vezes. namorou, passeou, foi pai. pai! talvez soubesse que tudo seria breve. ou não::: acho mesmo que acreditava no estar-aqui da eternidade. e com tal sorriso::: não há uma única foto em que ele esteja sério. nem se via ele sério::: é a vida que pulsa. em uma daquelas sortes grandes, faz um mês apenas que pude estar uma hora com ele, apesar de nossos muitos quilômetros de distância::: e não ouvi dele uma única palavra de desalento. era todo fé, era todo alegria. era todo vontade de estar no mundo.

um dia, tentando convencer minha amiga Rosana de que a vida era muito poderosa e não deveria ser vivida senão com alegria, eu lhe disse que a hora é sempre o agora::: ou vivemos ou esperamos o tempo em que viver será ainda mais difícil, pois a morte vem, as dores nos arrastam e já é o fim. 

e agora me parece isto::: tem uma ferradura bem no meio de nós, de mim. a morte de meu irmão é como um antes e um depois --- a tristeza dessa morte lambe meus dias mais felizes, retirando parte das alegrias tantas. ---- ainda que eu persevere na alegria. pois Luan, como meu irmão, também perseverava na alegria. e agora temos mais esta prova para viver os dias. mais um se foi cedo demais. e como sobreviventes temos que viver as provas dos dias. como estar à altura da vida? desnorteada, penso dia e noite nisso. como honrar a chance de estar viva, quando tanta gente bonita morre como se fosse antes da hora?

certamente, Luan sofreu. teve medo, sentiu muita dor, fraquejou no meio das noites, que é quando mais fraquejamos, longe dos olhos. mas nada disso quis compartilhar conosco. o que quis foi espalhar seu sorriso e sua fé. e por isso, apesar desse tempo todo doente, nos parece agora que foi rápido demais. assim:::: num repente --- vestido de branco, vermelho e flor. no meio das festas, da família que ele tanto amava.

penso agora na tia Fá, a mãe de Luan. --- da geração de mães que conheço, ela sempre me pareceu ser das mais ternas, mais entregue a esta aventura de ser mãe. sempre me impressionou a sua falta de sono quando uma de suas crias estava longe de casa --- prova de que ela as queria todas próximas, a salvo sob suas asas. só consigo imaginar a sua dor; jamais senti-la. mas eu sei que ela sabe o que Luan faria e diria::: amor.

então, neste último dia do ano, o que posso desejar a todos que conheço, e ainda mais aos que amo, é que tenham em si a alegria, a coragem e a fé de Luan --- o menino-luz, o menino-flor, o menino-sorriso, o menino-abraço, o menino-gargalhada.

vamos precisar de sua alegria, de sua fé, de sua gargalhada, para enfrentar os dias duros que virão --- e sem perder a ternura, o amor, os desejos --- estes sentimentos moventes::: que eram dele e estavam nele até o fim. que nunca parece ser o fim. porque está aqui -- em nós. 

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