quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

O que ainda é preciso dizer sobre as marcas da UFSB



“A difamação tem sempre algo de pegajoso e, por consequência, por mais desejo de silêncio e de trabalho que se tenha, é preciso cortá-la” (Roland Barthes)

Desde a criação da Universidade Federal do Sul da Bahia, a ideia de inovação funcionou como um signo de distinção. Extraímos daí uma concepção de universidade que buscava distinguir-se do modelo universitário brasileiro, num momento em que as políticas nacionais educacionais impulsionavam esse desejo de mudanças, com programas voltados para a relação com a educação básica, a abertura para grupos minorizados por intermédio da Lei de cotas etc. A impressão de que a UFSB estava na vanguarda nos propiciou uma visão de universidade que constitui, ainda hoje, a nossa identidade. Nada disso é novidade para quem está aqui desde 2014 e mesmo para quem chegou depois e estabeleceu sua visão a partir das diversas narrativas, por vezes conflitantes, que cercam a criação e consolidação de nossa universidade.

Neste momento em que ocorre a segunda consulta pública para reitoria, é natural que essas narrativas retornem, funcionando ora como rastros de uma história da qual nos orgulhamos, ora como formas de desqualificação, de modo que é sem surpresa quando nos deparamos com textos cujos títulos conjugam autoritarismo e UFSB numa mesma frase, como uma marca-mácula. Para qualquer pessoa que acompanha a política nacional, é sabido que a palavra democracia, e também suas antíteses, como autoritarismo, funcionam hoje como palavras-maná, alimentando todo tipo de discurso, do mais crível ao mais rasteiro.

O espectro do personalismo e do autoritarismo sempre fez parte da história da UFSB. Eu mesma já gastei muita tinta para falar sobre isso. Porém, quase uma década depois do seu marco fundacional, sinto que precisamos perguntar o quanto há de autoritário nos discursos que denunciam o autoritarismo. É certo que não sou a mesma de quatro anos atrás, nem ocupo o mesmo lugar, antes tão mais libertário. Hoje estou mais interessada em fazer uma leitura compassiva sobre as diversas visões que permeiam a vida acadêmica do que defender minha própria leitura. Se o faço agora, como uma pessoa que participa desde o início da atual gestão da Universidade - sim, é sempre preciso explicitar nosso lugar de fala -, é porque me parece haver um escamoteamento da historicidade das mudanças ocorridas nesses últimos quatro anos para que assim seja possível delimitá-las apenas como “marcas performáticas de autoritarismo”, o que eu discordo. Pergunto-me a que propósito serve relacionar identidade racial e de gênero a personalismo e a (mau) uso político, quando elegemos naquele pleito a primeira reitora negra de uma universidade brasileira, como se isso não denotasse de forma poderosa o que então ansiávamos como universidade. 

O que se segue, então, é um exercício de leitura que, embora parta da leitura de um outro discurso com o qual discordo largamente, tem muito mais a intenção de refletir sobre os processos ocorridos nesse período, por alguém que participou da maioria deles, buscando analisá-los a partir de um trabalho de pensamento e de crítica, como costumeiramente faço:

i)       apesar de ter como marco inicial a identidade forte da inovação, parte da comunidade acadêmica da UFSB, bem antes da primeira consulta pública para reitoria, já pleiteava mudanças no modelo de Universidade proposto no Plano Orientador da UFSB. Essa era a tônica de muitas das inúmeras reuniões que ocorriam em meados de 2016-2017. A atual gestão foi eleita tendo como propostas-base a operacionalização dessas mudanças. E por isso, eu a apoiei. 

ii)            Dentre as várias propostas, uma delas foi a criação de novas pró-reitorias. Ao se atribuir a existência dessas pró-reitorias exclusivamente à vontade de mais poder no Conselho Universitário, vejo se repetir a expressão de soberba que já foi muito comum na UFSB, em que se ignorava o lastro histórico das outras universidades brasileiras, instituindo como modelo uma “super Pró-reitoria”, que centralizava todas as atribuições relacionadas a ensino, pesquisa e extensão. O que ocorreu era previsível: acúmulo e concentração de poderes e, sobretudo, inoperância nos processos e fluxos que causava enormes distorções, a exemplo do fato de propagarmos ser uma universidade extensionista e praticamente não haver políticas de extensão institucionais. Em outras palavras, não havia um ter-lugar para a pesquisa e a extensão, com a Pró-reitoria de gestão acadêmica mal dando conta da organização dos fluxos referentes ao ensino. Para entendermos a dimensão do problema, é importante saber/relembrar que toda a organização de ensino, inclusive a distribuição de componentes curriculares/docentes, era encargo da PROGEAC, não tendo as Unidades Acadêmicas autonomia para realizá-la. Cabe, pois, perguntar qual é a proposição que está implícita quando se faz a crítica: seria o retorno desta super pró-reitoria, com a extinção das quatro novas criadas, retomando a centralização?

iii)           A ideia de que há uma superestrutura de poder montada no Conselho Universitário demonstra desconhecimento dos processos debatidos no referido conselho, cujas decisões, incluindo-se aquelas de maior vulto, como o Plano de Desenvolvimento Institucional, o Regimento geral, foram aprovadas ora por unanimidade, ora por larga maioria de votos, de modo que, mesmo se fossem subtraídos os votos dos/as pró-reitores/as, as proposições feitas pela reitoria teriam votos suficientes para aprovação. É só fazer a conta.

iv)              Além disso, cabe uma reflexão de como se constituem processos democráticos no âmbito acadêmico, o que também se ignorava na criação da UFSB, quando não havia previsão de órgãos colegiados vinculados às pró-reitorias, de modo que as políticas estabelecidas eram apreciadas apenas no CONSUNI, órgão máximo de deliberação. É da atual gestão a proposição das câmaras de graduação, de pesquisa, de extensão, bem como de outras instâncias colegiadas de debate e deliberação, como o Comitê de Acompanhamento da Política de Cotas, o Fórum interdisciplinar das Licenciaturas, entre outros. Também acentuou-se a consulta acadêmica, com o envio à comunidade de inúmeras normativas institucionais em elaboração para serem debatidas pelas vozes sociais que compõem a UFSB. Eu mesma, que defendo a existência de outros conselhos na Universidade, proposta rejeitada pelo CONSUNI, participei ativamente da criação de duas dessas instâncias: a Câmara de graduação e o Fórum interdisciplinar das Licienciaturas. 

v)               Reduzir a reorganização das unidades acadêmicas a um projeto personalista e autocrático é ignorar as demandas da própria comunidade e o seu engajamento durante o processo de reestruturação, no qual, a partir da proposta inicial da reitoria, coube às congregações de cada campus redefinir a sua estrutura, com a criação de novas unidades acadêmicas, a descontinuidade e a criação de novos cursos. Afora os vários debates públicos, importante ressaltar que tudo foi apreciado e aprovado pelo CONSUNI.

vi)              A criação de novos cursos, apesar das restrições orçamentárias e de contratação de novos/as servidores/as docentes e técnicos/as, possivelmente seja o que demonstra de modo mais contundente a insatisfação com o projeto original da UFSB. Os novos cursos de segundo ciclo são resultado de demandas feitas pelas Unidades Acadêmicas, a partir de processos de discussão que apontaram o sentimento de não pertença dos/as professores/as e estudantes aos cursos já existentes. E esse sentimento foi considerado, ao invés de ser menosprezado. Quanto de imprudência há no desejo? Fortalecer cursos profissionalizantes seria mesmo uma imprudência, um desejo de mão única ou a soma de muitos desejos da comunidade acadêmica da UFSB? As respostas a essas questões não são fáceis. Ao mesmo tempo que sabemos das dificuldades para organizar e consolidar os cursos, devido à política de contenção que impede a contratação de novos/as docentes e técnicos/as, é um alívio saber que existe hoje abertura para a coexistência de cursos de primeiro e segundo ciclos, sem que o preceito da interdisciplinaridade sirva de pretexto para a demonização da disciplinaridade e da profissionalização. Garantimos o distanciamento da desqualificação recorrente feita aos/às professores/as, cuja demanda para a docência se efetivar em sua área de formação era comumente taxada de conservadora, anacrônica e incapacidade de "sair da caixinha”, uma dentre as tantas expressões pejorativas para depreciar o/a professor/a na UFSB, cuja autonomia docente era negada, atrelando-nos a uma ideia generalista e neoliberal de universidade.  

vii)            Para refletirmos sobre os nossos impasses, também a reformulação da Formação Geral é imprescindível, fazendo parte de um debate maior acerca de concepções de currículo universitário. Qual é o papel de uma Formação Geral de 900 horas, que ocupava um terço da duração dos cursos? O que a FG impedia de existir? O quanto ela suprimia de conhecimentos específicos essenciais para a formação do/a estudante? É provável que tenha sido no processo de reformulação da FG que a comunidade acadêmica tenha feito as perguntas mais difíceis e, por sua vez, as tenha respondido de modo mais corajoso e atento, concebendo a FG como parte de um currículo acadêmico comprometido com o desenvolvimento de múltiplos saberes. Ter que reformular os PPCs, “rasurá-los”, para criar novos caminhos, diz respeito à disposição da comunidade acadêmica de avaliar continuamente o seu projeto curricular, rejeitando o menosprezo ao conhecimento das áreas e à “ciência” que há em cada curso.

viii)    Também é preciso avaliar as formas como se instituiu o Conselho Estratégico Social da UFSB como Conselho Superior, e as mudanças necessárias que deveriam ser efetuadas para que sua participação seja efetiva e plural, expressiva da diversidade de nossos territórios. A atual gestão entende que essa relação com a sociedade deve se constituir com cuidado, com diálogo permanente, e que o CES precisa ser amplo, garantindo a presença e a participação de múltiplos grupos, segmentos, coletivos e entidades. Foi por essa razão que a reitoria lançou uma chamada pública com 20 perfis de vagas diferentes para recompor o CES a partir do novo Estatuto e do Regimento Geral. Por outro lado, várias outras ações criaram, mantiveram e fortaleceram a presença da comunidade na UFSB e da UFSB na comunidade, a exemplo das ações de extensão que têm sido realizadas pela nossa comunidade acadêmica a partir da estrutuação da Pró-reitoria de extensão - que, para alguns, sequer deveria existir

Enumerar alguns contrapontos é menos um jogo de pingue-ponte - cuja imagem do bate-rebate me enche de tédio -  do que uma tentativa de identificar as muitas fissuras provocadas pelo discurso generalizador. Generalizar é se negar a analisar as camadas de sentidos, as bordas, os contrapontos, o que geralmente produz uma leitura rasa dos acontecimentos. Avaliar todas as experiências ocorridas nos últimos quatro anos na UFSB como resultantes de “marcas performáticas de autoritarismo” é uma violência, porque sucumbe ao desejo de apagamento da história composta pelos rastros de quem dela participou. É menosprezar as marcas da comunidade acadêmica na efetivação das mudanças; é desprezar as muitas horas de trabalho de pensamento que cada professor/a, estudante e técnico/a da UFSB dedicou para analisar as proposições feitas tanto pela gestão como pelas congregações. Não deixa de ser uma tentativa de apagar os rastros dos/as estudantes na constituição da nova Formação Geral, as marcas dos/as docentes e gestores/as na criação das novas Unidades Acadêmicas, o sentimento de pertença dos/as estudantes e docentes aos novos cursos, as políticas originadas devido à criação das novas pró-reitorias.

Com isso não estou dizendo que não houve dificuldades. Houve dissensos, contrariedades, enganos, divergências. Isso não deveria impedir o reconhecimento de todo um trabalho coletivo de reconstrução do projeto institucional da UFSB, expressão do desejo da maior parte da comunidade acadêmica, antes subjugada ao perigo de um modelo único. Não custa lembrar que, antes da gestão Joana-Mesquita, tínhamos um modelo em que qualquer discordância significava demissão sumária dos cargos, perseguição individual das dissidências, total apagamento das discordâncias, silenciamentos e mesmo não obtenção de respostas a questionamentos, por mais simples que fossem --- a herança do espectro que se tenta hoje manter vivo pela via da transferência para a atual gestão, esquecendo-se que aquilo que definia esse espectro na UFSB cessou de acontecer com a ruptura da lei da mordaça do consenso

Não é que hoje não ocorram ruídos na comunicação – há ainda percursos a serem feitos, rotas a serem revistas. Porém, reduzir nossa história, nossas lutas coletivas à performatividade significa apagar a participação da comunidade acadêmica. Parece apontar para uma vontade de retrocesso, de cristalização de modelos antigos já avaliados e rejeitados. Nesse sentido, a chapa Unidiversidade, encabeçada pelaprofessora Joana e o professor Mesquita, atuais reitores, continua sendo a via aberta para a consolidação do projeto institucional da UFSB, aberto ao devir, comprometido com a efetuação das mudanças.

Pensei agora nos sentidos de "recuo", apontado tantas vezes como fraqueza. A proposição inicial de fechamento dos IHACs, e o posterior "recuo",  é um bom exemplo. A meu ver, uma das maiores qualidades de um gestor é saber quando uma proposta não reflete a vontade da comunidade e, ao invés de articular conchavos para fazer valer a sua vontade, tem a coragem e a inteligência de reformular o que foi proposto anteriormente. Não há exemplo melhor de escuta qualificada do que esse. Se ainda há muito a ser feito, saber que a via está aberta para que o fazer se efetive sem o esmagamento da opressão é já uma pequena alegria.

A história da UFSB já demonstrou que a ideia de inovação, de renovação, para não se tornar  signo vazio de distinção, deve vir acompanhada de um plano de gestão comprometido com a contínua reavaliação dos seus sentidos.