(todo dia 26 do mês, escrevo aqui. a postagem deste mês foi esta. e foi especial, porque era o dia do meu niver).
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Num dia raro, meu irmão me disse: “Um dia, será assim: eu arrastanto os pés; você
segurando nas paredes. Tavarim e Tia Elita. Ou vó Adauta.
Ou tio Delbrando e tia Mariah”. Fui longe
com esse dizer. Eu tinha 11 anos e uma imagem forte de amor: a do pai. Talvez duas: a da
madrinha. Todo o resto eu sentia como uma nebulosa – até minha família mudar de
cidade e eu estreitar os laços com meus avós e
meus tios-avós
paternos. Naquela época, a menina triste e alegre que eu era finalmente
encontrou um lugar no mundo, o que é o mesmo que dizer que encontrei pessoas para
amar. A família do meu pai sempre foi silenciosa. Entretanto um silêncio que
acolhe. E tenho a impressão de que toda minha noção de família está contida nesses
silêncios e naqueles poucos anos de convivência diária com eles, quando
tive que partir aos
15 anos. Desde o princípio, um
acolhimento mútuo: eles aprenderam a
gostar de criança; eu aprendi a gostar de velhos. Velhos, sim, que,
naquela
época, ainda podíamos usar as palavras. Idosos seriam uma ofensa. Para
mim,
eles já haviam nascido velhos. Uma vez, espantei-me quando ouvi dizerem
que
minha avó havia
sido enérgica e brava. Eu só
conheci a delicadeza, os pés arrastando, as mãos amassando os farelos de
pão,
antes de levá-los à boca, sentada naquele velho fogão de lenha onde ela
comeu
até morrer.O único instante de morte que presenciei até hoje. Um longo
minuto triste, logo depois daquela correria que passou pelo átrio da
igreja.
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Com
minha voz estridente, eu corrompia os seus silêncios, até mesmo o de tio
Manuel, um dos mais silenciosos, que às vezes vinha do sítio com balas
no bolso. Nunca esqueci a
última vez que o vi já despedida; ele montado em sua bicicleta, e eu, ao
lado,
em um equilíbrio precário. Nos abraçamos num soluço conjunto e ele
disse:
“Agora vá. E não esqueça este velho”. Talvez seja por isso que, apesar
de estar
sempre indo desde aquela época, eu nunca esqueço. E havia tia Expedita,
casada
com tio Sebastião, um dos homens mais delicados que já conheci. E dos que mais amei, daquele amor que adentra. Ainda hoje lembro de cada recanto da casa no fundo da igreja. Dela e dele. Ela
tinha os
pés tortos e pequenos e era engraçado vê-la equilibrando-se como que por
magia. Era uma das mais falantes. Eu a ouvia contando suas histórias
sempre com aquele pente na mão até
deixá-lo na cabeça num equilíbrio também misterioso. Ela nunca foi capaz
de me
ver como a magrela que eu fui na adolescência. Guardava nela meu corpo de
bebê: tão gorda a ponto de me dar o apelido de um bicho nada bonito. Na última vez que a vi, ela já não se levantava
da rede, mas continuava a fazer a pergunta que me presenteava a cada vez que eu
voltava: “É Pebinha, é?” Os nomes e seus múltiplos. Para eles, nunca fui Milena.
Tia Mariah me anunciava com a memória voltada para longe: “Ah, Delbrando, é Cláudia”.
E ele respondia: “É mesmo, é Claudinha”. E da casa de tio Delbrando e tia
Mariah, nunca saí sem
algum trocado no bolso. Por mais que explicasse que não precisava mais, eles
não entendiam. Se nunca deixei de estudar, então nunca deixei de precisar de
dinheiro; é a lógica do cuidado que não ousava ferir quando já adulta e professora universitária.
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De
todos, a mais próxima foi tia Elita. Conversávamos horas a fio,
sentadas em uma calçada alta que havia no fundo da casa e de onde eu via o pé de
goiabeira do vizinho. E ela sempre respondia: “Eh, Cláudia, é você que tem que
saber”. O que eu tinha que saber naquela idade já não lembro. Herdo seus
gestos estranhos que ainda nos mantêm próximas, apesar da longa distância: ela
com o lençol na cabeça; e eu, com ele na boca. As senhas com que
ela me anunciava: “Lá vem bode velho arrastando os pés, igual à avó”. Depois,
cuidávamos da casa dos meus avós onde ela sempre morou; uma casa estreita cheia
de portas que ainda está lá, mas que não mais pertence à família. Jogávamos baldes e mais baldes de água que escorriam pelo longo
corredor e desciam como cascata para a cozinha de piso inferior. Eu ainda esfregava
com esponja um a um os fitilhos de plástico das cadeiras para tirar a sujeira
das moscas. Em troca, ganhava amor, gorjetas e um prato de comida vez ou
outra. Em suas casas, eu podia assaltar os potes de bolacha. Por isso, bolachas
salgadas são minha madeleine. Elas trazem até a mim esses senhores e senhoras que
me ensinaram e me ajudaram em um tanto de coisas. E assim como eu pensava que
já nasceram velhos, ainda hoje costumo pensar que todos ainda estão lá e que a qualquer hora eu terei novamente
11-15 anos.
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