se eu tivesse que escolher entre as experiências culturais mais marcantes
dos últimos vinte e cinco dias - e foram muitas -, eu destacaria três. sobre
uma, pretendo falar depois, quando "resgatar" minhas fotos que, após
o assalto, estão a quilômetros daqui, mais exatamente com Mariamada, que,
peloscéus, as havia transferido um dia antes para seu computador.
desde que eu vi o filme "Praia do futuro", do Karim Aïnouz, sábado passado, constantemente, algumas das cenas retornam na minha parca
memória. digo o mesmo sobre algumas das imagens da exposição do videoartista
Bill Viola, no Grand Palais, em Paris. Ao contrário de Karim, eu não conhecia
nada de Bill Viola. fui levada pelas mãos da minha ruiva Marie. ficamos umas
seis horas nos espaços monumentais do Grand Palais, sem sentirmos o tempo
passar. na penumbra que os vídeos exigem. as sensações foram tantas, que - mais
uma vez - me será impossível dizê-las corretamente.
porém, após ver o filme de Karim, compreendi melhor o que tanto me
impressionou no trabalho desse artista até então desconhecido para mim
(mundialmente famoso, explico para minha pobre ignorância). e é simples [e
Marie já havia me falado]::: de algum modo, o que vemos tem que nos dizer algo.
não falo de beleza propriamente dita, embora eu possa dizer que são belas as
imagens dos dois trabalhos. nunca estou falando apenas de beleza. nem apenas de
emoção. ou de alguma associação com o que penso ou vivo ou desejo. é um pouco
disso tudo, mas é primordialmente outra coisa que tem a ver com o arrancar-me
da indiferença e instalar a fórceps uma espécie de incômodo que me obriga a
pensar a partir do que vi.
foi assim nessas experiências. Bill Viola, primeiro, exige de nós outra relação com o tempo e
aceitamos essa exigência quase sem nenhuma resistência. em boa parte dos vídeos
quase nada acontece, mas é por este quase
nada que permanecemos à espera. em estado de espera. dez, quinze ou trinta e cinco minutos para cada vídeo de cenas aparentemente imóveis. uma conversa
entre mãe e filho de uns quatro anos, diante de quatro tvs que reproduziam
lentamente o cotidiano de uma mulher, explica bem esse movimento. a criança pergunta
por que nada acontece e a mãe responde: “acontece, sim, preste atenção. veja como
as imagens mudam lentamente”. essa atenção demanda um outro tempo. e é nesse
outro tempo que a vida requer um pensamento sobre a vida e a morte, sobre a
passagem do tempo [e as perdas que vêm com ela]. num mundo quase sempre aquático
ou subaquático, vemos e intuímos a morte, o além da morte, os encontros quase
sempre fugazes; como no vídeo em que dois homens andam paralelamente numa mesma
direção e se encontram por meros instantes para logo em seguida se separarem. ou
nos véus de imagens, em que de um lado vemos um homem perdido numa floresta e, de
outro, uma mulher, até que as imagens se fundem para vermos os dois juntos por
poucos instantes, até a separação. ou no resgate de um afogado que dá errado, em que vemos uma mulher em pé, inconsolável, os gestos lentos dos bombeiros, até que a chuva vem e todos se vão. o afogado, então, ascende em direção ao infinito. é também sobre o mistério do além-vida um dos vídeos mais bonitos, o Ascensão de Tristão. nesse mundo, é quase tudo frágil e violento, diante da iminência do que acontece e está para acontecer.
O que Praia do futuro faz
não é diferente. o mundo também é aquático ou quase. e também é sobre o tempo e o que acontece no seu decorrer. é sobre afeto e perda - o que se explica e o que não tem explicação. é sobre a fragilidade diante do que ocorre e a violência das nossas decisões. e é sobre o amor. até karim diz que o filme não explica muito. e eu concordo. mas para mim Donato se torna um estrangeiro, tendo em seu país uma família para sustentar e um emprego, por amor a Konrad. e é por amor que seu irmão Airton vai atrás dele muitos anos depois. E é também por amor que Konrad age muito antes de Donato saber fazê-lo.
jesuscristinho, é bonito demais. dá um nó nas tripas. uma vontade de chorar, embora nada tenha de melodramático. e a música vem no momento exato, mesmo quando parece clichê. e o final ainda nos dá outra imagem sobre o mar. é o mar a névoa da Alemanha, é o que vemos. e como em Bill Viola, fiquei imersa num tanto de emoções, de dizeres, de não dizeres. fiquei pensando que nada precisa ser pela violência. contra os discursos da intransigência, do preconceito, cada vez mais desavergonhados, que a outra via seja a poesia, a imagem. as imagens belas do encontro entre Konrad e Donato - Wagner Moura mais uma vez soberbo -, as cenas de sexo e de nudez infinitamente fortes entre os dois. são imagens não apenas magnificamente fotografadas, mas exigentes, como disse Didi-Huberman na conversa que assisti dele. exigem de nós outra forma de contemplação, outra forma de pensamento. e de maneira simples. muito simples.
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como tudo que é indizível.
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como tudo que é indizível.
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