enquanto
leio este livro de Mia Couto, mais o Brasil deixa de ser o que por um intervalo
curto demais imaginamos que ele poderia vir a ser --- ou era. nós, os que
acreditamos em presentes. e daí fico sem saber se todas as lágrimas são
por conta do livro --- da beleza das palavras, e não propriamente da história
--- ou por conta deste aborto chamado Brasil. talvez fosse melhor ser
desterrada do que estar ainda mais próxima das entranhas da minha terra, nesta Bahia, embora às vezes esta se sinta
mais próxima do Sudeste que lhe renega do que do Nordeste que lhe é. pois estar
fincada na própria terra é sentir mais forte quando ela treme debaixo de
nossos pés.
sei
que nestes dias me sinto mais que nunca cearense. ainda que uma
cearense-rondoniense. um travo orgulhoso me percorre. e eu misturo a minha dor
salivar do estômago com essa raiva surda por conta de todos estes
mortos-matados. o Brasil afunda como a barragem de Brumadinho::: de uma vez só,
sem dar tempo de nos colocarmos a salvo, ainda que os avisos tenham passado por
muitos ouvidos moucos; ainda que haja sempre um milagre a nos dar um rasteiro
alento – como a mulher que dirigia o trator e soube ter a coragem de
esperar a hora de sair dali, bem na parte da terra em que a lama deu a curva. a
mesma coragem da mulher que arrebentou o vidro do caminhão arrebatado pelo
helicóptero que caiu. ouço o
relato que Boechat pulou, na tentativa, certamente, de se manter vivo. não
tenho forças para conferir. é muita tristeza junta. havia acabado de ver corpos
estirados no chão de uma casa comum, no morro do fallet-fogueteiro, mortos em nome da guerra que faz arder o Rio de Janeiro. e também Fortaleza. porque as guerras são todas iguais, é o que
sempre nos dizem. e na mesma semana, já havia visto Fernanda chorando por conta
dos meninos do Flamengo ---. e agora o segurança mata um jovem já indefeso. MATA UMA PESSOA. e é nítido o prazer de matar. é a vida num estado de terror e revolta
enquanto
leio este livro de Mia Couto, eu tento me acertar; acertar as contas com o que
não me serve mais --- lembro da missa a que assisti ainda há pouco do meu irmão
padre – tão bonita e tão bonito. não aprenderei a dar glória, nem a usar a
hashtag gratidão, mas posso levantar da mesa para fugir das minhas implicâncias;
posso subir as escadas, meio trôpega, para não dizer mais nada sobre o que
certamente me arrependeria no dia seguinte, quando eu tivesse que me levantar e
roubar estes poucos minutos para olhar o que vejo da varanda de nosso quarto.
é porque a vida tem esta parte das fugas de si mesmo; do repisar o constante
para querer ser outra, ainda que todo tempo seja eu mesma que esteja aqui
comigo.
enquanto
leio este livro de Mia Couto, lembro que já faz dez dias da última fisioterapia
e acordo em desespero para ir. é um rompante para não me afastar das
promessas deste ano que mal começou e já poderia ter terminado, porque já parece
ter havido tragédias, crimes, mentiras, ignorâncias, burrices em excesso. é
muito. e talvez ainda seja pouco. engulo estes comprimidos contra a bactéria do
estômago e deixo ausentes a amargura da boca e a sonolência, só porque quero,
embora estejam aqui. tenho pressa, mas é porque persigo o vagar. me prometi ler
uma centena de livros neste ano, e ver mais de duas centenas de filmes nestas
horas em pé, enquanto faço algo muito antigo, que é este passar de roupa e,
agora, guardar no método marie kondo. nem que eu precise trapacear e ler
alguns muito finos, decidi que vou ler, sob pena de não mais poder dizer que
me constituo como leitora. nem que eu tenha que fazer como já faço há tanto
tempo: barrar o sono. Vicente e Tatupai riem quando me veem cochilando 1h da
manhã, tentando ler ou escrever, já não lembro. eu devolvo o riso, feliz, por
estar ali e não ter estado com eles, quando certamente me perderia e deixaria
de lado essas promessas tolas.
enquanto
leio este livro de Mia Couto, penso que não há razão alguma para temer. para me pôr a salvo, ainda que sob
perigo, é só não me afastar dessa grande coragem de me manter leal aos
meus princípios --- há quem diga que é arrogância, mas eu prefiro pensar que são as roupas e as armas de Jorge. um querer obstinado pelo trabalho moroso, porém dedicado. tenho horrores também, mas tenho amor,
sobretudo. amor, sim, ainda que lesado.
enquanto
leio este livro, eu me lembro que daqui a pouco estarei novamente em Angola. é por Angola que circundo estes livros negros, estes estudos, prenha destas vontades, agora
que já não dá mais para estar prenhe de algum irmão-porvir de Poeminha. é da
natureza do precoce vir cedo demais; daí ser necessário esse agarrar das
vontades outras. é o modo possível para suportar este Brasil que ora nos
castiga como o quê. talvez seja como rezar pra dentro, por falta de jeito de
rezar pra fora. quando eu esqueço que não sei, eu me ponho em estado de
oração, em que penso no meu irmão morto, no meu primo-sorriso, no meu pai e na minha mãe longes, no plural mesmo. nos desejos abortados, nas tristezas
fundas que não se curam senão não seriam tristezas fundas, em tantos outros que estão
longe, e nestes dois que amo e que estão perto, aqui comigo --- enquanto me deixo arrastar por Rosabela, que late faceira, nesta beira do pontal que
aprendi a amar e a chamar de casa.
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