domingo, 17 de fevereiro de 2019

enquanto leio este livro de Mia Couto



enquanto leio este livro de Mia Couto, mais o Brasil deixa de ser o que por um intervalo curto demais imaginamos que ele poderia vir a ser --- ou era. nós, os que acreditamos em presentes. e daí fico sem saber se todas as lágrimas são por conta do livro --- da beleza das palavras, e não propriamente da história --- ou por conta deste aborto chamado Brasil. talvez fosse melhor ser desterrada do que estar ainda mais próxima das entranhas da minha terra, nesta Bahia, embora às vezes esta se sinta mais próxima do Sudeste que lhe renega do que do Nordeste que lhe é. pois estar fincada na própria terra é sentir mais forte quando ela treme debaixo de nossos pés.

sei que nestes dias me sinto mais que nunca cearense. ainda que uma cearense-rondoniense. um travo orgulhoso me percorre. e eu misturo a minha dor salivar do estômago com essa raiva surda por conta de todos estes mortos-matados. o Brasil afunda como a barragem de Brumadinho::: de uma vez só, sem dar tempo de nos colocarmos a salvo, ainda que os avisos tenham passado por muitos ouvidos moucos; ainda que haja sempre um milagre a nos dar um rasteiro alento – como a mulher que dirigia o trator e soube ter a coragem de esperar a hora de sair dali, bem na parte da terra em que a lama deu a curva. a mesma coragem da mulher que arrebentou o vidro do caminhão arrebatado pelo helicóptero que caiu. ouço o relato que Boechat pulou, na tentativa, certamente, de se manter vivo. não tenho forças para conferir. é muita tristeza junta. havia acabado de ver corpos estirados no chão de uma casa comum, no morro do fallet-fogueteiro, mortos em nome da guerra que faz arder o Rio de Janeiro. e também Fortaleza. porque as guerras são todas iguais, é o que sempre nos dizem. e na mesma semana, já havia visto Fernanda chorando por conta dos meninos do Flamengo ---. e agora o segurança mata um jovem já indefeso. MATA UMA PESSOA. e é nítido o prazer de matar. é a vida num estado de terror e revolta 

enquanto leio este livro de Mia Couto, eu tento me acertar; acertar as contas com o que não me serve mais --- lembro da missa a que assisti ainda há pouco do meu irmão padre – tão bonita e tão bonito. não aprenderei a dar glória, nem a usar a hashtag gratidão, mas posso levantar da mesa para fugir das minhas implicâncias; posso subir as escadas, meio trôpega, para não dizer mais nada sobre o que certamente me arrependeria no dia seguinte, quando eu tivesse que me levantar e roubar estes poucos minutos para olhar o que vejo da varanda de nosso quarto. é porque a vida tem esta parte das fugas de si mesmo; do repisar o constante para querer ser outra, ainda que todo tempo seja eu mesma que esteja aqui comigo.

enquanto leio este livro de Mia Couto, lembro que já faz dez dias da última fisioterapia e acordo em desespero para ir. é um rompante para não me afastar das promessas deste ano que mal começou e já poderia ter terminado, porque já parece ter havido tragédias, crimes, mentiras, ignorâncias, burrices em excesso. é muito. e talvez ainda seja pouco. engulo estes comprimidos contra a bactéria do estômago e deixo ausentes a amargura da boca e a sonolência, só porque quero, embora estejam aqui. tenho pressa, mas é porque persigo o vagar. me prometi ler uma centena de livros neste ano, e ver mais de duas centenas de filmes nestas horas em pé, enquanto faço algo muito antigo, que é este passar de roupa e, agora, guardar no método marie kondo. nem que eu precise trapacear e ler alguns muito finos, decidi que vou ler, sob pena de não mais poder dizer que me constituo como leitora. nem que eu tenha que fazer como já faço há tanto tempo: barrar o sono. Vicente e Tatupai riem quando me veem cochilando 1h da manhã, tentando ler ou escrever, já não lembro. eu devolvo o riso, feliz, por estar ali e não ter estado com eles, quando certamente me perderia e deixaria de lado essas promessas tolas.

enquanto leio este livro de Mia Couto, penso que não há razão alguma para temer. para me pôr a salvo, ainda que sob perigo, é só não me afastar dessa grande coragem de me manter leal aos meus princípios --- há quem diga que é arrogância, mas eu prefiro pensar que são as roupas e as armas de Jorge. um querer obstinado pelo trabalho moroso, porém dedicado. tenho horrores também, mas tenho amor, sobretudo. amor, sim, ainda que lesado.   

enquanto leio este livro, eu me lembro que daqui a pouco estarei novamente em Angola. é por Angola que circundo estes livros negros, estes estudos, prenha destas vontades, agora que já não dá mais para estar prenhe de algum irmão-porvir de Poeminha. é da natureza do precoce vir cedo demais; daí ser necessário esse agarrar das vontades outras. é o modo possível para suportar este Brasil que ora nos castiga como o quê. talvez seja como rezar pra dentro, por falta de jeito de rezar pra fora. quando eu esqueço que não sei, eu me ponho em estado de oração, em que penso no meu irmão morto, no meu primo-sorriso, no meu pai e na minha mãe longes, no plural mesmo. nos desejos abortados, nas tristezas fundas que não se curam senão não seriam tristezas fundas, em tantos outros que estão longe, e nestes dois que amo e que estão perto, aqui comigo --- enquanto me deixo arrastar por Rosabela, que late faceira, nesta beira do pontal que aprendi a amar e a chamar de casa.

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