terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Retrô 2019 - os dez livros mais amados e + 1



todo fim de ano, esta vontade de revisitar o que se passou no decorrer do ano --- como se fosse possível apreender o tempo. e daí extrair lições. me vem a vontade do diário e olho desanimada as poucas postagens, como se tivesse falhado com algo que me é tão importante. 

escrevi muito neste ano --- centenas de textos técnicos. mas quase nenhuma linha do que realmente me importa. não que essas centenas não tenham importado. aprendi muito neste lugar da técnica. muito mais do que em qualquer outro tempo julgaria capaz de aprender. e de gostar. pois foi assim. entretanto, isso não supre todo o resto que faz falta. 

antes de fazer minha lista de "livros do ano" (porque com tanta gente bacana fazendo as suas listas, é difícil resistir), preciso dizer que li muito menos do que achei que havia lido. li mais do que no ano passado, mas ainda tão pouco se comparado com a minha ambição de leitura.

começo, então, pelo fim::: pelo dia em que passei lendo O compromisso, de Herta Müller. na semana passada, em um daqueles dias de banzo, meio ressaca, meio cansaço, de férias finalmente, lá pelo meio da tarde, após passar a manhã toda lendo, resolvi que leria o livro até o fim. e assim foi. e foi tão impactante, porque me dei conta do tempo. deste de agora e daquele em que era tão comum passar o dia todo lendo.  

eu leio na van, a caminho do trabalho. foi assim que li a maioria dos livros deste ano. enquanto a maioria dormita, cochila, vê o celular, eu leio; às vezes, lutando contra o sono e o cansaço; outras, com a luz das lanternas de leitura, porque eu ainda leio livros de papel; e acho que sempre vai ser assim. isso dá duas horas diárias de leitura; nos dias de maior concentração, 2h40, que é o tempo da ida e da volta para a UFSB. 

leio também aos sábados pela manhã, na varanda do meu quarto::: a cada vez, um momento de muita plenitude. eu sempre me espanto como fiz, quase sem querer, desse lugar na varanda o meu melhor lugar no mundo nos últimos dois anos.

ainda assim, perto da minha ambição, da minha imensa biblioteca, foram poucos livros. daí que, neste dia de dezembro, em que li todo o livro de Herta Müller, eu tomei a decisão de que esta será uma das minhas promessas de  2020: tirar da loucura dos dias aqueles que serão dedicados apenas à leitura, escolhendo sempre livros que possam ser iniciados e finalizados em um único dia. daqui a um ano, se nenhum raio tiver me partido, eu digo aqui sobre o percurso dessa promessa. 

2019 foi o ano dos "inéditos" --- autores que jamais havia lido, seja porque não os conhecia, não tinha interesse ou não havia dado o tempo. daí, terem sido verdadeiros encontros. 

se eu tivesse que escolher um, escreveria Os detetives selvagens, de Bolaño.
dois, acrescentaria Os diários de Emilio Rizzi - os anos felizes, de Ricardo Piglia. 
três, não esqueceria de Bússola, de Mathias Enard. 
quatro, devotaria amor eterno a Mrs. Dalloway, de Virgínia Woolf. 
cinco, reservaria O quarto de Giovanni, de James Baldwin. 

desses cinco, apenas Piglia é meu velho conhecido. 

mas como esquecer de O amor de uma boa mulher, de Alice Munro?
Amada, de Toni Morrison? é preciso continuar: seis, sete. 

quando meu pai morreu, eu estava lendo Tristes trópicos, de Lévi Strauss. que eu tratei como ficção, de tão bem engendrado. por conta disso, deste acontecimento tão irreparável, ficaram faltando as últimas trinta páginas. não é fácil estar lendo um livro e, no minuto seguinte, estar descendo as escadas da sua casa, com o celular na mão, para ouvir daí a instantes que meu pai havia ido - passarinho. como voltar àquele instante anterior? não há como. Lévi Strauss entenderia. oito. 

na bagagem da longa viagem, levei Jane Eyre, de Charlotte Brontë, por conta do Leia mulheres Ilhéus, que me trouxe tão lindos encontros neste ano. quando a garganta deixa de ser comprimida, quando a cabeça para de martelar e entra num torpor indefinido, são os livros que me salvam. naquela rede da casa da tia Marlete, afastada da tagarelice da cozinha, em que tantas moralidades eram postas em jugo, eu me enterrei na rede, no mesmo local em que minha avó havia vivido os seus últimos anos. e dediquei algumas horas a essa história tão antiga, que, para subverter minimamente as histórias das heroínas entregues ao seu herói, iniciou pelo corpo, destituindo-os de beleza. 

depois, comentamos no Leia mulheres. e eu não lembro se contei ao quinteto as circunstâncias em que havia lido esse livro - tão antigo, como disse, mas ao mesmo tempo tão assombrosamente inadequado para a sua época. ah, as mulheres! que histórias bonitas estas mulheres me contaram: Alessandra, Daniele, Lu, Verena. se elas pudessem saber o tamanho da minha gratidão! é o nono. 

volto ao início::: Herta Müller --- A raposa já era o caçador. Nunca um livro havia me mostrado como eu havia deixado de lado algo tão essencial de outro livro. ao finalizá-lo, me deu vontade de reescrever de tantas outras formas o artigo que escrevi sobre o livro de Laura Erber, Esquilos de Pavlov, para preencher as lacunas que deixei ali de modo tão flagrante. é o décimo. 

ainda seria preciso falar das leituras inacabadas, para além de Tristes trópicos. porque toda história de leitura está repleta de hesitações, desejos frustrados, páginas pela metade::: conto nove aqui em cima de minha mesa, pelas mais variadas razões. há muito mais de volta aos seus lugares de chumbo à espera de um tempo que talvez nunca chegue.  é a primeira vez que, deliberadamente, me dou ao luxo de não me obrigar à leitura de um livro iniciado até às últimas páginas. 

foi um ano irrequieto. medonho --- se penso no coletivo, no papel social que é preciso exercer e estar atenta. foi o ano de maior revolta, sem dúvida. e foi, no íntimo, mais um ano tão triste -- o ano em que Chico se foi. e apesar de nunca serem suficientes, nunca serem um lugar de consolo, os livros lidos, inacabados, desejados, ignorados, comprados, folheados, foram um sossego da loucura e da dor. 

e é por isso que não posso prescindir desses hiatos em que me dou a chance de ler. prescindir seria arrancar de mim uma parte que considero bonita, embora, como outras partes, seja também conflitante, incompleta, imperfeita. 

Talvez seja como o personagem de Bússola:

Meu pobre Franz, você sempre se agarrando às ilusões, teria dito Mamãe em seu francês tão suave, você sempre foi assim, um sonhador, meu pobre menino. No entanto, você leu Tristão e Isolda, Vis e Ramin, Majnun e Laila, há forças a vencer, e a vida é muito longa, às vezes, a vida é muito longa, tão longa quanto a sombra sobre Alepo, a sombra da destruição. 

Pois.

De longe, o livro mais desencantado de todos esses. Se não existisse Desonra, de J. M. Coetzee, teria sido o livro mais desencantado. Mas existe. E quando um livro como Desonra existe, na verdade, ele paira sobre todos, como uma grande exceção --- único, medonho, grande, muito grande. 















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