terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Livros, livros, livros - e algumas saudades


"mi, só existem os seres de papel: nessa noite escura só resta literatura. vc ser arrastada pros lugares de barthes não surpreende nada. todos nós q temos um pouco de vida somos e seremos sempre arrastados pela literatura. aproveite ... veja a literatura nas paisagens, nos panoramas, nas transversais. proust vivo em cada memória; dumas e hugo estão colados em cada esquina; céline vive plenamente em todos os bairros pobres; camus está em todos os bares com sartre e, ao longe, baudelaire dança uma valsa negra com rimbauld e lautréamont, tudo isso assistido ao longe por malraux, ionesco, artaud (q está nu e planta bananeiras), duras e yourcenar (escondidos dentro das casas estão, rousseau, voltaire, diderot, sade [comendo literalmente alguém], balzac, nerval, stendhal, flaubert); e em todos os lugares sente-se a inveja mortal de heidegger. beijos felizes com sua felicidade". (Caldas, no meu orkut)


Quando eu estava em Paris, meu amigo Alberto me enviou a mensagem acima. Ainda hoje, é, para mim, uma das mais bonitas que já recebi. Conhecendo-o, sei que todos os autores citados foram lidos por ele. E sempre penso que esta é a relação próxima que devemos ter com os livros. Nós, que amamos os livros. Eu queria ter esta relação com a literatura produzida no Brasil e, nos últimos anos, tenho privilegiado este querer-conhecer. Porém, às vezes me angustia. E eu escapo. Kafka, Dostoiévski, Beckett, ainda são meus escritores essenciais (e Graciliano, claro). Daí que eu misturei os escapes e as vontades durante os "festejos" e as "folgas" de fim de ano e consegui ler alguns livros. Desde antes da ilha, na ilha e depois da ilha. A pilha que eu havia separado era bem maior, mas como o tempo é sempre mais avaro do que eu desejo, fiquei toda contente. A biografia de Derrida é fascinante e me encheu de saudades da época da tese. Me dei conta de que Derrida estará para sempre ligado à minha estadia em Paris. E haja rememorar e também ter vontade de voltar às leituras. E que figura inominável é composta na biografia! Passei a amá-lo ainda mais, certa de que quem estuda um filósofo como ele aprende muito mais do que algumas teorias (difíceis, voilà!), pois o que aprendi com Derrida foi um certo modo de se movimentar no mundo, que me permite tanto amar incondicionalmente quanto não me render facilmente ao ensejo de uma vida tola, embora a tolice, às vezes, cole como grude. Ou ainda: acho que Derrida completou meus ensinamentos de querer-prosseguir, mesmo quando tudo em volta é desesperança. Foi esse sentimento que guardei enquanto lia os outros livros. Adorei tanto o livro de Verônica Stigger quanto o de Carol Bensimon por razões totalmente distintas. E depois de acompanhar o blog do Michel Laub durante todo o ano, finalmente li alguns dos seus romances.  Espero consegui escrever depois sobre esta experiência. E Antonio Tabucchi, com Noturno indiano, me manteve suspensa por vários dias. Como é bonito o que escreve! Como é capaz de engendrar cada palavra e fazer com que o leitor perceba que tudo foi minuciosamente pensado. Daí, não ter sido difícil emendar O tempo envelhece depressa. E o que me emocionou, dessa vez, em valter hugo mãe foi a sua coragem de escrever uma história feliz, embora ache que nem todos veem O filho de mil homens como um história feliz. A única releitura que fiz foi Serafim Ponte Grande, pois me senti incomodada quando percebi que lembrava muito pouco do livro. Eu teria muito o que dizer sobre a diferença que esse livro tem em relação aos outros que li, mas aí teria que explicar muito. Arrisco, então, a dizer que boa parte desses livros serve mais à reflexão do que ao riso, conta mais histórias do que experimenta formas (com exceção, talvez, de Opisanie Swiata). E me parece que seja bom assim. Por ora. Uma nova pilha me aguarda. Aliás, uma biblioteca já suficientemente grande a ponto de incomodar. Maneca, quando veio, contou novamente os livros e chegou a uma soma inesperada de 2000 livros. Achei muito para quem mantém uma luta permanente com o tempo - sempre escasso.
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E a saudade é do Alberto, o melhor leitor que já tive o prazer de conhecer. E também de Paris, a cidade mais linda que já tive o prazer de morar (mas isso todo mundo que morou lá sabe).
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quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

"tranquilidade na clareira do caos"

tranquilidade na clareira do caos
otto




eu preciso desta tranquilidade terra-a-terra. desta tranquilidade que por vezes me vem nos momentos de mais ventania. e o que me dá isto é um olhar amoroso sobre o que acontece. sobre o que eu faço acontecer. e sobre o que circula independente de minha vontade, por mais ruim que às vezes seja. preciso desta segurança que me vem no meio da ventania, resultado de uma vontade de manter a vida com uma sentinela. estou atenta, e isto me alivia, por mais desatenta que esteja. deixo não. deixo não tirarem meu lugar no mundo. se me fizerem mal, se me disserem não, ainda terei meu lugar no mundo. é o que penso. só tenho que convencer ao Tatupai que pode ser assim. como ele mesmo diz, tudo conspira para o que seja melhor. tempo tempo tempo.

não sei por quê, hoje lembrei da escultura de louise bourgeois. uma figura entregue. totalmente exposta. e ao mesmo tempo alheia. fechada na sua própria entrega. preservar isso. é o que penso. preservar. reunir forças. forjar a alegria no que ela tem de mais irredutível, deixando para os outros o esforço do sofrimento, da incapacidade, da falta de generosidade. apegar-se ao que é bom. cortar com uma navalha muito afiada a flor cascuda do jardim. e admirar. convencer ao outro que é possível. o movimento é possível. sair da clausura do que nos foi imposto. ou do que nós mesmos impusemos, como consequência da desmedida.

sim, sim. nada de desespero. se o amigo nos deixa só, se o inimigo nos deixa só, se tudo em volta é deserto frio, lembrar. lembrar do que podemos. concentrar-se. retrair a mundaneidade e buscar o escape possível.  que está bem aqui, em nós.

(as fotos nada têm a ver com os sentidos da postagem, a não ser sobre o escape. enquanto a ventania corre lá fora, eu me decido - f-i-n-a-l-m-e-n-t-e - a aprender a técnica da fotografia. vídeos e mais vídeos. esta é a "lição" de desfocar o fundo e do foco).
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segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Arquivo::: Por que gosto de Jogo de cena, de Eduardo Coutinho


Penso que um modo bonito de se reportar à morte de alguém é poder dizer que ele já existia, em (na) vida,  para você. No meio da tristeza funda, fico feliz de pode dizer que foi com Eduardo Coutinho e o João Moreira Salles que aprendi a gostar de documentário. Deixo, então, aí embaixo, texto que escrevi no meu antigo blog, em dezembro de 2007, quando assisti a Jogo de cena. Desde lá, vi seus outros filmes, como Cabra marcado para morrer, O princípio e o fim, com o mesmo espanto, com a mesma certeza de que era sobre o humano e suas profundezas de que se falava. 

 Por que gosto de Jogo de cena, de Eduardo Coutinho

 
Eduardo Coutinho dispensa apresentações. É o mestre dos documentários. Eu vi poucos. Vi apenas Edifício master e Peões. E vi o Coutinho em um debate, na Unicamp.  Jogo de cena. Que título para o documentarista Coutinho. A partir de um anúncio colocado em um jornal, Coutinho escolhe mulheres para falar de suas vidas ao mesmo tempo em que convida atrizes famosas e não tão famosas para interpretar estas mesmas histórias. O cenário é nu, mas cheio de significados: o palco de um teatro vazio com a câmera praticamente fechada no rosto das depoentes. Parênteses: (sempre certo enfado ao fazer o resumo. Penso que ninguém lê isto aqui e que, por isso, não precisaria fazer o resumo. Por outro lado, sempre uma certa injunção de contextualização me faz pensar no resumo).
As histórias contadas por estas mulheres (não há homens e isso evoca muitos sentidos!) são de cortar o coração de qualquer vivente. Saí com a impressão de que ia morrer. E este transtorno é belamente interpretado e denunciado pelas atrizes. Marilia Pêra, Andréa Beltrão, Fernanda Torres e outra ou outras não reconhecidas por mim estão ali para nos dizer o quanto o real é não interpretável por ser dolorosamente intransponível. Aquelas que contam suas histórias parecem não ter noção da brutalidade do que contam, uma vez que sentiram a brutalidade no corpo. A narração é, talvez para elas, uma dor menor. É a naturalidade que nos desarma. E por outro lado, o jogo de cena (impossível resistir à facilidade de evocar o título) nos faz pensar o que ali é montado, é verdadeiro, é falso; quem conta, quem interpreta?. Daí o efeito de mal-estar vir acompanhado de muita emoção, muita ternura: ora sorrimos, ora choramos, ora gargalhamos.
 
Coutinho realiza um acontecimento a cada vez que deixa o outro falar. E aí reside toda a diferença: ele parece deixar que cada um fale, que cada um mostre o quinhão que lhe pertence. E, dessa vez, o fato de a câmera focalizar o tempo inteiro o rosto das mulheres, abrindo-se apenas quando elas sobem as escadas do teatro, deixa ainda mais forte a sensação de que se trata de fazer um filme sobre o outro, em que o diretor, quando interfere, é para melhor deixar falar.  Embora esteja claro desde o princípio que ele tem controle sobre o dito (até certo ponto), Coutinho parece agarrar como ninguém o dizer do humano; parece acreditar no ser humano; no fato besta de que quem quer que seja tem uma história a ser contada; e uma história que pode fazer torcer as tripas.
 
Não se trata de transparência, nem de verdade, nem de real (está tudo desde o início marcado pela encenação, afinal é no teatro, no próprio templo da representação, que tudo se passa); mas trata-se de algo muito mais forte que transcende a ideia de depoimentos. São confissões. As mulheres parecem esquecer que estão sendo filmadas, que aquilo é um filme, e se confessam para Coutinho, despem suas dores mais comezinhas, mais terrificantes. Para comprovar isto, basta ver como algumas põem em xeque a existência de Deus. Dizem mesmo não acreditar em Deus. Não é todo dia que se têm tantas ateias sob o mesmo foco.
 
Talvez o façam porque Coutinho escolhe mulheres que não têm certezas (não se esconde que houve uma seleção). Todas elas deixam mover os sentidos da  perplexidade ocasionada por algum acontecimento, seja a morte ou o nascimento de um filho; seja o tapa na cara dado em uma filha sem que a mãe tenha noção das consequências; seja o marido que transava com outro homem; seja a jovem que fica grávida depois de uma trepadinha na Sé; seja a mãe do filho morto que o trata como se estivesse vivo. Trata-se de um melodrama? Para mim, mais do que isto, trata-se, sobretudo, do drama da existência. 
 
O documentário é tão rico que me vem a vontade de falar muitas coisas, de revê-lo, certa de que vou encontrar outros sentidos ainda mais fortes. Incrível esta relação humana com Deus... Incrível a jovem que confessa a burrice de ter engravidado jovem... Inominável a mulher que passa anos sem poder sair de casa depois da morte do filho. Tudo tão cru e ao mesmo tempo tão interpretado, interpretável. 
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domingo, 2 de fevereiro de 2014

"Me poupem!". Ou ainda: "Meu cu!"

Aconteceu de assistir ao capítulo final da novela de uma forma tão irreal que merece, sem dúvida, um registro. Nada mais nada menos do que com uma das mais importantes estudiosas de poesia brasileira, aquelas pessoas que a gente só se convence que é gente como a gente depois que ela demonstra de variadas formas que é mesmo. Quando ela for embora, começaremos a duvidar de novo, tamanha a sua autoridade intelectual sobre nós, mas por ora ela está por aqui, e juntos procuramos o que fazer, que se restringe a procurar um lugar para comer, comer, tagarelar e tal. E ontem, vimos a novela "Amor à vida".

O fim da novela e o tão falado beijo. Beijo exatamente não foi. Foi uma bitoquinha mais demorada, daquelas que tasco no Poeminha a toda hora. Até Poeminha saberia, pois já expliquei a ele a diferença entre os beijos que dou nele e os que dou no Tatupai. Poeminha sabe, a vizinha sabe, meus alunos sabem, os que assistem à novela também sabem, mas insistem em dizer que foi beijo mesmo.

Primeiro, quem viu, e mesmo eu que vi um e outro capítulo, sabe o quanto Nico era uma das únicas personagens que reunia características tais como lindo, íntegro, doce, sensível, trabalhador. Uma miragem, enfim. E sobre Félix, a queda por cafajestes que se regeneram vem de longa data na tradição folhetinesca. Em resumo, o que foi mesmo aquele beijo? Para que ele serviu? Quem mesmo se beijava no quintal daquela casa de praia lindíssima, carésima, paradisíaca, vindos da mais doméstica das partes de uma casa (a cozinha, para quem não lembra ou não sabe), depois da mais comum das cenas familiares (a ida das crianças à escola)? Será que faltou o guardanapo na mão ou fui eu que não prestei atenção? Como diz meu amigoirmão Celso: "Me poupem!". Ou ainda: "Meu cu". Agora, é esperar a nova campanha para que o "primeiro beijo de língua gay" aconteça nas novelas da rede Globo. E ver quanto merchandising, quanta audiência, quanto produto, isso vai gerar. Enquanto isso, gays se beijam de verdade, como devem ser todos os beijos, beijam muito, e travam as suas verdadeiras batalhas, num país grotesco que espera com ardor um beijo insosso, enquanto repele com o mesmo ardor não apenas os gays, mas a diferença, esta palavra tão batida, mas tão pouco compreendida. Em suma, a ideia parece ser apenas esta: quem não se enquadra nesta união familiar cristã, materna e fraterna, ou ainda nas palavras militantes de meu amigo Emerson, quem não pertence a esta classe média branca, à toda força, deve tentar furar o bloqueio, nem que seja à custa de pó de arroz. Pois os guetos, ao que tudo indica, continuarão aí, erigidos pela nossa ignorância e cegueira habituais. E viva a homogeneização. A unanimidade, para sempre burra. Parece-me tudo tão brega quanto a abertura desta novela. Ainda bem que o mundo é mais colorido e diversificado do que esta cor sépia e chapada.
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