quinta-feira, 20 de novembro de 2014

à toa



(segunda feira retrasada, como se diz)

passei o fim de semana vendo filme::: tempo sem fazer isto. deste jeito::: sem mais nada a não ser escolhas aleatórias. pensar nos filmes, fazer as relações, escolher entre muitos. a lista está aí do lado. Comecei com Palo alto e terminei com Terça-feira, depois do Natal. Ou melhor, finalizei com a metade de Tatuagem. O computador desligou repentinamente e fiquei com preguiça de baixar novamente. hoje, na segunda, havia ao menos uns três emails "de urgência". não sei onde nos perdemos. sei que agora tudo parece para ontem. ninguém dá mais prazo de uma semana. ninguém pede pra gente pensar e depois dá a resposta. é para agora como se "agora ou nunca" estivesse se tornado um eterno "agora ou agora". é muita solicitação - aquela palavra estranha e ao mesmo tempo simples da postagem passada. 

mas tem hora que empaco. tem hora que enjoo de tudo isto. enjoo das tarefas das obrigações das pessoas. fico com vontade de silêncio. fico com vontade de adentrar em mim. ir bem fundo - como a personagem de um conto de Veronica Stigger que adentra umbigo adentro. pois fico com esta vontade. adentrar e ir até às vísceras. sentir as minhas vísceras. e suas viscosidades. mas um adentrar que não seja mero "umbiguismo". seja um adentrar em mim pelo outro. 

e para mim, ver filmes, ou ler livros, tem muito disto. um estar em mim que não é um "morar na minha própria cabeça", nem um mero rodear na possível pequenez de minha existência - não me deixo enrolar por nenhum sentimento de pena. pensar o meu estar no mundo como "vítima" é algo que está fora de cogitação. prefiro a soberba de achar que sempre vou saber me virar. sempre vou achar uma saída, por mais que, às vezes, tudo fique turvo. e é um filme como Seguindo em frente/ Andando, de Hirokazu Koreeda, e todos os outros que eu vi dele neste ano - que me diz para ser assim. um "dizer" sempre pelo indireto, um aprendizado pelo baque e pela delicadeza. ou um filme como Duas, de Werner Schroeter, que me surpreende a cada cena, que não se parece com nada que eu já tenha visto. por duas horas, é em Isabelle Huppert que penso, é a força que sai dela que me prende e me espanta. 
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no filme Terça-feira, depois do Natal, de Radu Muntean, o último a que assisti, numa das cenas mais tristes de separação que já vi no cinema, num certo momento, o homem diz que sabe o que está perdendo. mesmo assim, ele escolhe "perder" para ganhar uma outra coisa ainda incerta, mas absolutamente poderosa. também é a mesma questão, porém mais indireta, mais indefinida, de Aos nossos amores, de Maurice Pialat.  A cena final, em que Suzanne fixa o olhar para o vazio, denunciando todo seu vazio interior, é de uma violência tamanha. deixar que essas imagens adentrem em mim é uma forma de acatar não exatamente este vazio, mas de acatar o exterior - que, de algum modo, diz sobre o meu interior.  
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cinema, arte, literatura, é pra isto, né? ou deveria ser. 

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

para vocês, sempre, meu amor mais imenso

nestes dias, penso muito em amizade. em amor. talvez porque estes dois meses sejam pródigos de aniversários, justamente, de pessoas que eu amo. e amo bastante. e eu que não sou boa de aniversários, fico sempre meio aflita. a cada ano, imagino me redimir:::: chegar de surpresa. enviar o presente mais a cara da pessoa. escrever a carta mais bonita - para que elas lembrem que ainda existem cartas. e de fato, fico sempre na mesma - com a pessoa no meu pensamento. no coração. 

já disse, aqui mesmo, no nenhum-lugar, que me parece meio mágico que quatro das mulheres que mais amo tenham seus nomes iniciados com a letra "M", como eu. está certo que dois destes nomes se explicam pela mania da minha mãe por esta letra, ela mesma com a inicial "M", ela mesma um amor imenso. mas o que dizer das outras? dizer nada. mas gosto::: gosto de ter uma Mácia, uma Marta-Maneca, uma Marinalva, uma Marie em minha vida. soa bem. é sonoro. mas fico aflita todo mês de novembro. porque todo mês de novembro eu queria ser outra. e assim, surpreendê-las. somente Marie não faz aniversário neste mês. 

não vale, eu sei, dizer-lhes como as amo. como elas me são. porque isso, ainda bem, parece que digo sempre. de um modo ou de outro, de uma forma também mágica, a cada uma delas devo a minha vida. em cada momento, uma delas me salvou, levantando o alicerce do que hoje, para mim, significa estar aqui. não há muito o que dizer quando há uma dívida deste tamanho. uma dívida que não custa. uma dívida que, para mim, é toda gratidão.

Maneca me deu uma outra vida, quando eu ainda não sabia que queria esta nova vida. e nunca, em nenhum momento, permitimos que houvesse entre nós a menor desdita - mesmo quando a possibilidade era grande, soubemos manter isso que simplesmente é amor. Mari pegou minha vida pela mão e disse:::: "é assim". não sem espernear, eu acatei. devo a ela as duas maiores "guinadas" de minha vida e, ainda, uma profissão, amor-próprio, coragem. pouco não. quase tudo. poderia dizer que ManaMácia me deu a vida. é quase certo que, não sendo ela enfermeira, eu tivesse morrido de guilain-barré. foi ela que teve a percepção, a intuição ou a certeza da gravidade, quando todos ao meu redor me diagnosticavam com uma doença que até agora nunca tive. mas ela me deu bem mais que isso. antes que eu lesse Derrida, ou lesse Barthes, foi ela que me apontou o que é ética, cuidado de si, cuidado com o outro. eu tinha quinze anos e desde lá suas palavras me soam como fundantes, originárias, decisivas. e meu anjo ruivo Marie me deu a palavra. e a delicadeza. um ser-outro que me fascina, uma calma que me acalma e, ao mesmo tempo, um turbilhão, ali, nos seus belos cabelos ruivos. pude sentir isto, de novo, quando a reencontrei este ano. quando a vi, bem ali, senti um amor tão intenso, tão generoso, como se todos os dias fossem dias de nos vermos. e é assim com cada uma delas. 

e é também assim que a cada novembro elas preenchem minha vida. todo dia 8, dia 15, dia 25, cada uma delas me preenche. me toca. não tem distância que tire isto. não tem silêncio que me faça esquecer. e na verdade, não tem dia que eu não agradeça por elas existirem - e por existirem em minha vida. 

"feliz aniversário, meninas! para vocês, sempre, meu amor mais imenso". 
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e se fosse a hora de alongar esta conversa, também poderia falar dos homens importantes em minha vida que começam com "M", e mais, com "Ma", como elas::: Marcos, Marcio... Melhor deixar esta prosa para depois. com eles tenho vergonha de me "derramar" deste jeito. mas eles sabem. sabem também de meu amor. porque dizer do amor não custa. custa não. 
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** e sim, eu sei que flores são sempre meio bregas. mas estas flores são especiais. são do jardim da Bisa. são de um momento bonito. Poeminha estava lá, como sempre está. lá é o seu jardim. lugar de pisar nas pedras, de sentir o cheiro do verde, sentir o amor da Bisa. são flores especiais, acreditem. vejam::: ele estava lá. e isso faz toda a diferença. faz a diferença existir no mundo pessoas como a Bisa, que cultivam um jardim. e cultivam um amor, assim, imenso, por um menino Poeminha. 
     

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

só isto mesmo

a Odisseia de Homero, edição especial publicada agora pela Cosac Naify, é uma obra de arte. enviaram enrolado em plástico bolha, como a dizer que sabem que produziram um livro-arte. fiquei assim::: com o livro nas mãos, folheando, imaginando um tanto de coisas. imaginando este fazer das belezas do mundo. e eu nem ia comprar. foi o Anderson que me incitou. e eu só preciso de um empurrãozinho para aumentar estas longas fileiras de livros que me oprimem, tamanha a responsabilidade que me solicitam. 

solicitar - é uma palavra tão estranha. e ao mesmo tempo, muito simples. domingo, estas meninas bonitas que eu tenho vontade de ser amiga, apesar dos seus vinte e poucos anos, e dos meus quarenta, vieram aqui em casa. e ficaram um tempão olhando os livros. e eu me dei conta que já são mais de vinte anos como consumidora de livros. nos dois sentidos. mas infelizmente, às vezes, mais consumidora do que leitora. o que me dá medo é empobrecer a minha experiência neste mundo. não é a pobreza do mundo que me apavora. é o risco que corro de que a pobreza do mundo adentre no meu vasto mundo. não pensei nestas coisas quando as meninas bonitas estavam aqui. mas tenho pensado constantemente.
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E o início de David Coperfield, de Charles Dickens, é tão poderoso (Poeminha lerá este livro ainda na adolescência? não ter certeza me faz ser hoje seus olhos de ler): "Nasço. /   Se serei o herói de minha própria vida, ou se essa posição será ocupada por alguma outra pessoa, é o que estas páginas devem mostrar. Para começar minha vida com o começo de minha vida, registro que nasci (conforme me informaram e acreditei) numa sexta-feira, à meia-noite. Notaram que o relógio começou a bater as horas e comecei a chorar simultaneamente".  
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por hoje, é só. eu queria dizer só isto mesmo. só dizer que me enchi de paz - se não bem isto - neste fim de noite em que o dia foi todo dedicado às atividades demenciais de escrita por contrato. para quem? e para quê? vou me perguntar não. vou me contentar de pensar que foi por querer. ninguém me obrigou, a não ser, talvez, a imagem que colei em mim. Poeminha fez trilhas de brinquedos pela casa. difícil até mesmo de andar. seria bom saber levitar. 


segunda-feira, 3 de novembro de 2014

4.0


é fácil não fazer 40 anos. e ao mesmo tempo é de uma inteireza. perdi aos 40 muito de tudo que eu tinha. perdi mesmo a petulância. é tudo que eu tinha aos 20 anos. e que eu tinha aos 30 no mais completo esplendor. agora, talvez me reste apenas o sorriso farto, a gargalhada no segundo inexato que aprendi com meu amigo Rivero. cheguei aos 40 anos com quase todas as marcas e - talvez - justo no momento em que achei que elas tinham desaparecido. quer saber o horror que é uma pessoa, pergunte se ela quase morreu.

o horror de ser uma sobrevivente que escreve bobagens nas longas noites é que isto - esta sobrevivência - acaba virando história. e se a pessoa escreve nas longas noites, mas não é escritora, nem mesmo de mentirinha, a história é quase sempre piegas. como a minha. cada vez que lembro da minha doença - como Barthes devia lembrar de sua tuberculose extemporânea - me vem esta frase cafona::: "eu vi a cara da morte. e ela estava viva". que nada tem de cafona em sua origem, mas que de tanta repetição só pode mesmo hoje ser cafona. mas se a repito, é porque viva é a cara da morte quando ela está muito perto. ou seja, cafona. e agora, esta morte-viva não me deixar sentir a dor que talvez eu devesse sentir. porque agora viva-viva eu não quero sentir dor alguma. porque a dor física, do que me lembro, é tão mais soberana. não é a memória do medo da morte que dói. é a dor do corpo que me fez perder o medo da morte. esta dor é tão mais violenta do que a morte deve ser. porque aí a morte se mostra como finitude daquela dor. "morro, logo deixo de sentir esta dor". é assim que é o guilain-barré::: "morro, deixo de sentir. está de bom tamanho. vivi bem. já li ulisses já li em busca do tempo perdido já morei em paris vou morrer segurando a mão de um amor". "quase posso morrer, se não fosse meu filho". até que, numa manhã, essa dor para de existir. e de novo dá vontade de viver.

e de novo. então, de novo, estou quase sem medo. e quem tiver memória, que lembre.
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e o que me faz  feliz, aos 40 anos? um tanto um tanto. mas digo duas, esta e uma outra - óbvia::: me faz feliz ter um blog. e poder escrever nele um pronome pessoal oblíquo no início da frase. e pode escrever só em minúscula, excetuando o nome de pessoas. e ignorar as vírgulas quando bem entender. me faz feliz, o oblíquo e também as minúsculas e ignorar as vírgulas porque é um exercício de liberdade este escrever para nada, este escrever narcísico que não é exercício algum. é só um escrever.

a óbvia. e me faz feliz Poeminha, que é minha obra. e uma obra inacabada. quase nada sei dele. e quase nada preciso antever, que é também um exercício de aprendizagem. um cuidar do outro que é, primordialmente, um cuidar de si. ontem, eu tive que dizer a ele que estava irritada porque era uma idiota que fazia trabalhos físicos por 10 horas seguidas::: como uma criança triste, dizer: "sabe, filho, quem faz isto com o próprio corpo só pode ser uma idiota". e ouvi-lo responder com um sorriso quase tímido, cabeça do lado:::  "então, mamãe, você deve se deitar aqui juntinho do meu lado que eu vou te cuidar".
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então, me lembrei de outra frase cafona. "eu fui sempre aquela meio poliana, quando não fazia sentido algum ser poliana".
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(o que eu queria dizer naquela noite ao Dariano, e acabei não dizendo, é que esta cidade tirou alguma parte de mim. eu era menos dura com o mundo. e com as pessoas. porque o mundo e as pessoas eram menos duras comigo. antes de vir para cá, eu conhecia muita gente "miolo mole", tão "miolo mole" que dava até susto de ver. e era um miolo mole de alma. eu era a menos miolo mole. só minha melhor amiga não era miolo mole. e a gente brigava feio para não perder a nossa essência. para continuarmos a ser o que éramos:::: o exato oposto. tão oposto que, no meio de tanto miolo mole, ela era a única que me colocava no prumo nas longas manhãs em que acordava enquanto eu dormia das longas noites. eu conhecia gente como o Bado, que inventava uma música em pleno Ibirapuera e não tinha medo de no dia seguinte apresentá-la ao mundo, no mesmo Ibirapuera em que Mano Chao reverenciava esta mesma música que eu havia visto nascer. eu conhecia o frio de Paris e jamais sentia meus olhos gelarem nas manhãs frias. eu acordava as 10h da manhã para as 10h40 ver o sorriso franco do bilheteiro a entregar o único bilhete de cinema daquela manhã. e passava a maior parte do tempo sozinha e quase nunca, quase nunca, a não ser naquele último metrô, eu me sentia sozinha. o que eu queria dizer ao Dariano, e não disse, ou disse, é que eu conhecia pessoas menos endurecidas. mais loucas, mais doces e mais insensatas. mas de um insensato nada perigoso. pessoas que tinham um olhar de viés para o mundo para só olharem as próprias belezas e as belezas do mundo. alguns chamam isso de narcisismo de alienação de alheamento. quanto a mim, chamo de amor. e se há algo que logo sabemos destas pessoas é que nunca temos que pedir perdão. e isto faz toda diferença.
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fazer 40 anos, então, é esta nebulosa (a parte que explicava a nebulosa eu apaguei). das frases mais bestas que disse nestes dias pré-pós-aniversário, nada se equivale a esta. alguém me pergunta se eu estou feliz. e eu digo que sim. a pessoa não acredita muito. e me pergunta por que estou feliz::: e eu digo::: "porque eu não morri, ora". eu poderia acrescentar agora::: "porque estou aqui. e Poeminha dorme tranquilo, enquanto me martirizo com estas dores que não querem me largar".


foto: na feira de San Telmo, em Buenos Aires.