sábado, 27 de maio de 2023


 

que saudade deu de escrever no blog. que saudade deu de escrever. percebo nestes dias que sou igual ao Tatupai. Gosto que as pessoas comam a minha comida enquanto ainda está quente. Gosto que comam na mesa --- ou ao redor dela, enquanto ainda não há mesa em que caibam todos. 

minha comida não é boa como a do Tatupai, mas é boa o suficiente para ser comida sem desprazer. isso me alegra, porque aprendo que sou capaz de me dedicar mesmo ao que não gosto --- como um:::: lembro de Juju, e de tudo que ela foi capaz de fazer naqueles dias marcados pela perda de Bibi, enquanto ela ainda estava ali ---. 

nunca serei como ela, Juju, porque não tenho a sua tranquilidade. e carrego muita dor, ainda que seja elaborada, calculada e teorizada. passei tantos anos criando afetos com os meus próximos que me abismam todos esses distanciamentos. eu me pergunto constantemente se a literatura pode me salvar, e com isso, casulo  

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

O que ainda é preciso dizer sobre as marcas da UFSB



“A difamação tem sempre algo de pegajoso e, por consequência, por mais desejo de silêncio e de trabalho que se tenha, é preciso cortá-la” (Roland Barthes)

Desde a criação da Universidade Federal do Sul da Bahia, a ideia de inovação funcionou como um signo de distinção. Extraímos daí uma concepção de universidade que buscava distinguir-se do modelo universitário brasileiro, num momento em que as políticas nacionais educacionais impulsionavam esse desejo de mudanças, com programas voltados para a relação com a educação básica, a abertura para grupos minorizados por intermédio da Lei de cotas etc. A impressão de que a UFSB estava na vanguarda nos propiciou uma visão de universidade que constitui, ainda hoje, a nossa identidade. Nada disso é novidade para quem está aqui desde 2014 e mesmo para quem chegou depois e estabeleceu sua visão a partir das diversas narrativas, por vezes conflitantes, que cercam a criação e consolidação de nossa universidade.

Neste momento em que ocorre a segunda consulta pública para reitoria, é natural que essas narrativas retornem, funcionando ora como rastros de uma história da qual nos orgulhamos, ora como formas de desqualificação, de modo que é sem surpresa quando nos deparamos com textos cujos títulos conjugam autoritarismo e UFSB numa mesma frase, como uma marca-mácula. Para qualquer pessoa que acompanha a política nacional, é sabido que a palavra democracia, e também suas antíteses, como autoritarismo, funcionam hoje como palavras-maná, alimentando todo tipo de discurso, do mais crível ao mais rasteiro.

O espectro do personalismo e do autoritarismo sempre fez parte da história da UFSB. Eu mesma já gastei muita tinta para falar sobre isso. Porém, quase uma década depois do seu marco fundacional, sinto que precisamos perguntar o quanto há de autoritário nos discursos que denunciam o autoritarismo. É certo que não sou a mesma de quatro anos atrás, nem ocupo o mesmo lugar, antes tão mais libertário. Hoje estou mais interessada em fazer uma leitura compassiva sobre as diversas visões que permeiam a vida acadêmica do que defender minha própria leitura. Se o faço agora, como uma pessoa que participa desde o início da atual gestão da Universidade - sim, é sempre preciso explicitar nosso lugar de fala -, é porque me parece haver um escamoteamento da historicidade das mudanças ocorridas nesses últimos quatro anos para que assim seja possível delimitá-las apenas como “marcas performáticas de autoritarismo”, o que eu discordo. Pergunto-me a que propósito serve relacionar identidade racial e de gênero a personalismo e a (mau) uso político, quando elegemos naquele pleito a primeira reitora negra de uma universidade brasileira, como se isso não denotasse de forma poderosa o que então ansiávamos como universidade. 

O que se segue, então, é um exercício de leitura que, embora parta da leitura de um outro discurso com o qual discordo largamente, tem muito mais a intenção de refletir sobre os processos ocorridos nesse período, por alguém que participou da maioria deles, buscando analisá-los a partir de um trabalho de pensamento e de crítica, como costumeiramente faço:

i)       apesar de ter como marco inicial a identidade forte da inovação, parte da comunidade acadêmica da UFSB, bem antes da primeira consulta pública para reitoria, já pleiteava mudanças no modelo de Universidade proposto no Plano Orientador da UFSB. Essa era a tônica de muitas das inúmeras reuniões que ocorriam em meados de 2016-2017. A atual gestão foi eleita tendo como propostas-base a operacionalização dessas mudanças. E por isso, eu a apoiei. 

ii)            Dentre as várias propostas, uma delas foi a criação de novas pró-reitorias. Ao se atribuir a existência dessas pró-reitorias exclusivamente à vontade de mais poder no Conselho Universitário, vejo se repetir a expressão de soberba que já foi muito comum na UFSB, em que se ignorava o lastro histórico das outras universidades brasileiras, instituindo como modelo uma “super Pró-reitoria”, que centralizava todas as atribuições relacionadas a ensino, pesquisa e extensão. O que ocorreu era previsível: acúmulo e concentração de poderes e, sobretudo, inoperância nos processos e fluxos que causava enormes distorções, a exemplo do fato de propagarmos ser uma universidade extensionista e praticamente não haver políticas de extensão institucionais. Em outras palavras, não havia um ter-lugar para a pesquisa e a extensão, com a Pró-reitoria de gestão acadêmica mal dando conta da organização dos fluxos referentes ao ensino. Para entendermos a dimensão do problema, é importante saber/relembrar que toda a organização de ensino, inclusive a distribuição de componentes curriculares/docentes, era encargo da PROGEAC, não tendo as Unidades Acadêmicas autonomia para realizá-la. Cabe, pois, perguntar qual é a proposição que está implícita quando se faz a crítica: seria o retorno desta super pró-reitoria, com a extinção das quatro novas criadas, retomando a centralização?

iii)           A ideia de que há uma superestrutura de poder montada no Conselho Universitário demonstra desconhecimento dos processos debatidos no referido conselho, cujas decisões, incluindo-se aquelas de maior vulto, como o Plano de Desenvolvimento Institucional, o Regimento geral, foram aprovadas ora por unanimidade, ora por larga maioria de votos, de modo que, mesmo se fossem subtraídos os votos dos/as pró-reitores/as, as proposições feitas pela reitoria teriam votos suficientes para aprovação. É só fazer a conta.

iv)              Além disso, cabe uma reflexão de como se constituem processos democráticos no âmbito acadêmico, o que também se ignorava na criação da UFSB, quando não havia previsão de órgãos colegiados vinculados às pró-reitorias, de modo que as políticas estabelecidas eram apreciadas apenas no CONSUNI, órgão máximo de deliberação. É da atual gestão a proposição das câmaras de graduação, de pesquisa, de extensão, bem como de outras instâncias colegiadas de debate e deliberação, como o Comitê de Acompanhamento da Política de Cotas, o Fórum interdisciplinar das Licenciaturas, entre outros. Também acentuou-se a consulta acadêmica, com o envio à comunidade de inúmeras normativas institucionais em elaboração para serem debatidas pelas vozes sociais que compõem a UFSB. Eu mesma, que defendo a existência de outros conselhos na Universidade, proposta rejeitada pelo CONSUNI, participei ativamente da criação de duas dessas instâncias: a Câmara de graduação e o Fórum interdisciplinar das Licienciaturas. 

v)               Reduzir a reorganização das unidades acadêmicas a um projeto personalista e autocrático é ignorar as demandas da própria comunidade e o seu engajamento durante o processo de reestruturação, no qual, a partir da proposta inicial da reitoria, coube às congregações de cada campus redefinir a sua estrutura, com a criação de novas unidades acadêmicas, a descontinuidade e a criação de novos cursos. Afora os vários debates públicos, importante ressaltar que tudo foi apreciado e aprovado pelo CONSUNI.

vi)              A criação de novos cursos, apesar das restrições orçamentárias e de contratação de novos/as servidores/as docentes e técnicos/as, possivelmente seja o que demonstra de modo mais contundente a insatisfação com o projeto original da UFSB. Os novos cursos de segundo ciclo são resultado de demandas feitas pelas Unidades Acadêmicas, a partir de processos de discussão que apontaram o sentimento de não pertença dos/as professores/as e estudantes aos cursos já existentes. E esse sentimento foi considerado, ao invés de ser menosprezado. Quanto de imprudência há no desejo? Fortalecer cursos profissionalizantes seria mesmo uma imprudência, um desejo de mão única ou a soma de muitos desejos da comunidade acadêmica da UFSB? As respostas a essas questões não são fáceis. Ao mesmo tempo que sabemos das dificuldades para organizar e consolidar os cursos, devido à política de contenção que impede a contratação de novos/as docentes e técnicos/as, é um alívio saber que existe hoje abertura para a coexistência de cursos de primeiro e segundo ciclos, sem que o preceito da interdisciplinaridade sirva de pretexto para a demonização da disciplinaridade e da profissionalização. Garantimos o distanciamento da desqualificação recorrente feita aos/às professores/as, cuja demanda para a docência se efetivar em sua área de formação era comumente taxada de conservadora, anacrônica e incapacidade de "sair da caixinha”, uma dentre as tantas expressões pejorativas para depreciar o/a professor/a na UFSB, cuja autonomia docente era negada, atrelando-nos a uma ideia generalista e neoliberal de universidade.  

vii)            Para refletirmos sobre os nossos impasses, também a reformulação da Formação Geral é imprescindível, fazendo parte de um debate maior acerca de concepções de currículo universitário. Qual é o papel de uma Formação Geral de 900 horas, que ocupava um terço da duração dos cursos? O que a FG impedia de existir? O quanto ela suprimia de conhecimentos específicos essenciais para a formação do/a estudante? É provável que tenha sido no processo de reformulação da FG que a comunidade acadêmica tenha feito as perguntas mais difíceis e, por sua vez, as tenha respondido de modo mais corajoso e atento, concebendo a FG como parte de um currículo acadêmico comprometido com o desenvolvimento de múltiplos saberes. Ter que reformular os PPCs, “rasurá-los”, para criar novos caminhos, diz respeito à disposição da comunidade acadêmica de avaliar continuamente o seu projeto curricular, rejeitando o menosprezo ao conhecimento das áreas e à “ciência” que há em cada curso.

viii)    Também é preciso avaliar as formas como se instituiu o Conselho Estratégico Social da UFSB como Conselho Superior, e as mudanças necessárias que deveriam ser efetuadas para que sua participação seja efetiva e plural, expressiva da diversidade de nossos territórios. A atual gestão entende que essa relação com a sociedade deve se constituir com cuidado, com diálogo permanente, e que o CES precisa ser amplo, garantindo a presença e a participação de múltiplos grupos, segmentos, coletivos e entidades. Foi por essa razão que a reitoria lançou uma chamada pública com 20 perfis de vagas diferentes para recompor o CES a partir do novo Estatuto e do Regimento Geral. Por outro lado, várias outras ações criaram, mantiveram e fortaleceram a presença da comunidade na UFSB e da UFSB na comunidade, a exemplo das ações de extensão que têm sido realizadas pela nossa comunidade acadêmica a partir da estrutuação da Pró-reitoria de extensão - que, para alguns, sequer deveria existir

Enumerar alguns contrapontos é menos um jogo de pingue-ponte - cuja imagem do bate-rebate me enche de tédio -  do que uma tentativa de identificar as muitas fissuras provocadas pelo discurso generalizador. Generalizar é se negar a analisar as camadas de sentidos, as bordas, os contrapontos, o que geralmente produz uma leitura rasa dos acontecimentos. Avaliar todas as experiências ocorridas nos últimos quatro anos na UFSB como resultantes de “marcas performáticas de autoritarismo” é uma violência, porque sucumbe ao desejo de apagamento da história composta pelos rastros de quem dela participou. É menosprezar as marcas da comunidade acadêmica na efetivação das mudanças; é desprezar as muitas horas de trabalho de pensamento que cada professor/a, estudante e técnico/a da UFSB dedicou para analisar as proposições feitas tanto pela gestão como pelas congregações. Não deixa de ser uma tentativa de apagar os rastros dos/as estudantes na constituição da nova Formação Geral, as marcas dos/as docentes e gestores/as na criação das novas Unidades Acadêmicas, o sentimento de pertença dos/as estudantes e docentes aos novos cursos, as políticas originadas devido à criação das novas pró-reitorias.

Com isso não estou dizendo que não houve dificuldades. Houve dissensos, contrariedades, enganos, divergências. Isso não deveria impedir o reconhecimento de todo um trabalho coletivo de reconstrução do projeto institucional da UFSB, expressão do desejo da maior parte da comunidade acadêmica, antes subjugada ao perigo de um modelo único. Não custa lembrar que, antes da gestão Joana-Mesquita, tínhamos um modelo em que qualquer discordância significava demissão sumária dos cargos, perseguição individual das dissidências, total apagamento das discordâncias, silenciamentos e mesmo não obtenção de respostas a questionamentos, por mais simples que fossem --- a herança do espectro que se tenta hoje manter vivo pela via da transferência para a atual gestão, esquecendo-se que aquilo que definia esse espectro na UFSB cessou de acontecer com a ruptura da lei da mordaça do consenso

Não é que hoje não ocorram ruídos na comunicação – há ainda percursos a serem feitos, rotas a serem revistas. Porém, reduzir nossa história, nossas lutas coletivas à performatividade significa apagar a participação da comunidade acadêmica. Parece apontar para uma vontade de retrocesso, de cristalização de modelos antigos já avaliados e rejeitados. Nesse sentido, a chapa Unidiversidade, encabeçada pelaprofessora Joana e o professor Mesquita, atuais reitores, continua sendo a via aberta para a consolidação do projeto institucional da UFSB, aberto ao devir, comprometido com a efetuação das mudanças.

Pensei agora nos sentidos de "recuo", apontado tantas vezes como fraqueza. A proposição inicial de fechamento dos IHACs, e o posterior "recuo",  é um bom exemplo. A meu ver, uma das maiores qualidades de um gestor é saber quando uma proposta não reflete a vontade da comunidade e, ao invés de articular conchavos para fazer valer a sua vontade, tem a coragem e a inteligência de reformular o que foi proposto anteriormente. Não há exemplo melhor de escuta qualificada do que esse. Se ainda há muito a ser feito, saber que a via está aberta para que o fazer se efetive sem o esmagamento da opressão é já uma pequena alegria.

A história da UFSB já demonstrou que a ideia de inovação, de renovação, para não se tornar  signo vazio de distinção, deve vir acompanhada de um plano de gestão comprometido com a contínua reavaliação dos seus sentidos.


sexta-feira, 2 de outubro de 2020

do que agora me importa

 



tenho estado em silêncios. ainda não tanto como planejo em mim, mas ainda assim silêncios. me preparo para voltar a mim. por isso, escrevo agora no blog. hoje. não sei se vai durar. se haverá outras postagens. tenho escrito quase todos os dias, no instagram e facebook, um diário de quarentena. às vezes, gosto; outras, me arrependo. algumas vezes, sinto meio que vergonha, porque parece um diário retardado de adolescente. e algumas raras vezes, fico com aquela alegria de quem pensa que criou involuntariamente uma imagem bonita. mas cumpro a cada dia que acordo uma decisão::: não apagar, seja qual for o sentimento que me domine sobre a tal postagem do dia, geralmente escrita nas madrugadas.

gosto da escrita. me preparo para voltar a escrever meus artigos tortos sobre o que me interessa. não escrevo para ter uma produção científica --- é para mim. para forçar o trabalho do pensamento. para deixar registrado. foi Marcos quem me disse que eu podia. e que devia fazê-lo. ainda hoje me parece que tudo que escrevo é pela metade, porque vagueio por interesses tantos. porque minha memória brinca com campos vazios. mas não vou mentir::: danço quando escrevo. sou feliz. o corpo vagueia, os dedos bailam, a mente devaneia. como que me embriago. e gozo. gozo.

é por isso que vou voltar a escrever artigos tortos. a-científicos::: porque não devemos nos afastar do que nos tira do sério. do siso. da normalidade vil. não me importo com o valor que possam dar. não me importo que não valha um tostão. e somente muito longe penso o quanto a pesquisa nas universidades é escandalosamente sinônimo de ciências. das ditas ciências exatas. o tempo é sempre muito velho, é o que penso. por isto, Nietzsche ainda hoje está aí::: para que a gente não esqueça da gaia ciência. não esqueça que há outra via::: à revelia, à contrapelo, na cara dos caretas. e que esse estado de coisas tacanho, pequeno, feio, pobre, não deve nos impedir de dançarmos como bailarinas. 

se eu escrevesse da forma como falo - bruta, amarga, irônica, exigente, atrevida -, eu me arriscaria a tentar alguma ficção. mas escrevo assim::: nesta forma que me parece meio lírica, meio poética no mal sentido do sentido; numa linguagem que, para ser bem sincera, tento fugir, em vão, como o diabo foge da cruz. tenho em mente dois ou três nomes bem estrelados com os quais identifico parecenças com isso que pode ser identificado como minha escritura ---- e por isso desisto de perder tempo na ficção. 

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e a imagem que recobre este texto? somos nós::: eu, o menino e o pai do menino. coloquei porque é tão rara. o pai do menino não gosta de fotos de família. talvez porque perceba a precariedade da pose. talvez porque não goste de se ver rodeado. não sei. não insisto. mas gosto de nos ver assim juntos ---- esta família são como meus artigos tortos::: profundo amor. e do mesmo modo, penso muitas vezes que cuido pela metade. porque não sei como ser de outro modo. li hoje que "o amor atual, em toda a sua vivacidade, 'ensaia' o momento da ruptura ou antecipa o seu próprio fim". Deleuze é foda. dá é ódio ler uma frase assim, pois, se eu pudesse, estacionava naquele momento em que se acredita na eternidade::: nós três inteiros e juntos. 



  

domingo, 20 de setembro de 2020

Meu festival In-edit Brasil I

 

foi assim. paixão à primeira notícia. meu ouvido não presta. mas meu corpo sente. sempre que me afasto - e às vezes me afasto por longo tempo - é porque algo me falta de sossego, de lugar. queria ter tido tempo de ver tudo. mas a pequena imersão já foi bonita. ainda estou carregada destas histórias.  e vou estendê-las buscando suas músicas.  





















sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Sobre as promessas



Não há nada mais difícil do que desmontar situações estabelecidas.                         Sandor Marai, em De verdade

para 2020, eu prometo --- na tentativa de apanhar os sonhos:

--- ler mais;
--- fazer exercícios regularmente; consequentemente, cuidar mais da saúde;
--- beber menos;
--- gastar menos ainda;
--- estar mais com meus dois homens;
--- ser menos intransigente no trabalho. 
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eu pensava sobre essa lista de boas intenções, enquanto caminhava indolente, no início da noite morna, quando me veio o pensamento de que toda promessa é um sair-de-si. 

eu não preciso fazer promessas do tipo:

--- cuidar mais da casa;
--- ser mais dedicada ao trabalho;
--- ter mais coragem de discordar.

é o contrário. para cumprir a lista de promessas, é preciso abandonar o que constitui a nossa identidade, o ethos, as perfomances visíveis e invisíveis. no meu caso, é preciso desabituar meu corpo do imenso corpo de trabalho e disciplina que adquiri ao longo da vida. e não é pouco::: 45 anos adestrada para em todas as qualidades e defeitos que me compõem, que evidentemente não surgiram todas de uma vez, mas são suficientemente sedimentadas a ponto de parecerem ter assinado pacto de longevidade. 

é verdade que, principalmente nos últimos dois anos, tenho conseguido fazer torções bem significativas em relação a essa identidade - talvez porque eu não me identifique com uma porção de gestos que teimosamente constituem meus dias.
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será preciso um mata-borrão? como borrar isto que sou? como borrar este olhar duro, quase sempre certeiro, sobre o outro? é bem difícil, porque há aí involuntariedade, perspicácia, percepção. ainda assim eu me pego pensando que, neste ano, eu quero olhar menos para o outro. não que eu faça propositalmente. de modo geral, a vida dos outros me interessa quase nada. mas me interessam os gestos, as falas, o modo como a pessoa respira quando fala e revela se ela está nervosa, cansada, em paz, em pose. tenho essa facilidade de radiografar o outro --- de observar o outro como que nu.

mas hoje eu penso que não há outro modo de viver a não ser acatar o modo de vida de cada um que está próximo. e buscar aí alguma beleza, alguma verdade. porque há muita fragilidade nesse momento. todos estamos afetados por modos de vida que não são exatamente os nossos. daí, talvez o desafio quase sempre seja este::: cultuar promessas e vê-las se desfazendo no decorrer do ano, mas restando princípios, centelhas.

mas não é sobre isso. é sobre mim. sobre as injunções. não que as promessas sejam injunções. promessas são uma tentativa de domar o porvir::: eu vou fazer issoeu vou fazer aquilo --- vou fazer o que eu ainda não fizou fiz de modo incipiente. e vou transformar em hábito, modo de vida, estilo, todo dia. por isso, elas resultam quase sempre em nada. porque não há nada mais difícil do que movimentar o que se comporta com um estar-aí.

um pouco do nosso horror diante dos nossos anseios vem da incapacidade de nos retorcer de outro modo que não aquele de todos os dias. como é que alguém que penteia os cabelos todos os dias de um mesmo jeito, de repente, vai fazer diferente? a contrapelo? não é que não tentamos. é que, no momento mesmo que tentamos, vem a dúvida: será que não é melhor deixar como está? é um apego que é diferente do apego do querer-bem. porque deve existir, no mínimo, duas vontades: aquela que condiz com a imagem que fazemos de nós mesmas e aquela que resiste porque é o que fazemos desde sempre.

ou nem é mesmo dúvida. é porque continuar a ser o que somos --- mesmo que não seja o que queremos ou pensamos ser --- não dá trabalho. só dá trabalho de manhã, quando acordamos e vem na mente que é aquilo mesmo::: é mais um dia sem cumprir as promessas.

de tudo que ainda poderia dizer, o que há de mais aparente que ainda pode ser dito:::

aos trancos e barrancos, eu faço caminhadas desde que vim para a Bahia. quando vejo que já faz semanas que não caminho, me chicoteio horrores. Rosabela é minha fiel companheira, que me cobra todas as noites para eu me por em movimento. quando consegue, ela me arrasta pelo calçadão, serelepe, pronta pra latir por qualquer cachorro que passe. parte dos dias, não rola. mas quando me perguntam que exercício faço, respondo sem titubear: eu faço caminhada. e é verdade. jamais poderia dizer isso antes. lá para outubro, nesse mês de tantas promessas que se configura como "meu", eu comecei a fazer pilates. parei em dezembro e retomei agora, ainda nas férias --- a promessa é não parar mais.

não sei quando eu desisti dos cabelos longos ou meio longos, mas hoje não consigo imaginar como é que passei a vida toda com um cabelo que não tinha nada a ver comigo. gosto demais dessa coisa esfiapada, curta, desarrumada, que agora é meu cabelo.

passei boa parte de minha vida usando calças jeans e camisetas. depois, passei para calças jeans folgadas e estranhas. se eu tivesse boa memória, lembraria quando foi que praticamente as abandonei e enchi um guarda-roupa de vestidos, saias e blusas estampadas ---- sei quais foram as razões. e tenho imenso orgulho do que me tornei depois daqueles longos dias tristes --- adquiri um amor pelo meu corpo que transcende  a questão do vestiário. não é fácil abandonar a estética da magreza, que sempre me constituiu. às vezes, sinto um espanto enorme com o que vejo como decadência mesmo da estrutura do corpo, que vai se enchendo de volumes, de pesos, de dobras, mas esse espanto nunca barra a minha disposição de deixar o corpo livre, de amá-lo, de cuidá-lo. dá trabalho, porque a(s) doença(s) faz(em) parte de sua composição, mas eu sigo --- feliz.

nos últimos dois anos, por imposição do tempo, eu tive que largar a casa. Tatupai disse que nem percebeu, porque ele usa do artifício da não-visão para fazer de conta que a casa existe por si só, sem necessidade de mãos humanas para mantê-la limpa e organizada --- mas  a verdade é que já não cuido dela como antes. há recaídas, é vero. e continuo apegada a um senso de organização e de limpeza. e o fato de ter que ter que passar a ignorar um dos seus cômodos trouxe muitas revelações sobre mim ---. seria preciso uma longa reflexão sobre a hospitalidade que talvez não caiba aqui. apesar disso, hoje consegui roubar muito tempo que antes era da casa --- nesse tempo, leio, sobretudo.

sobre as leituras. sem querer voltar a postagem anterior, eu faço uma última promessa::: ler com mais critério, a partir do que estou definindo como objeto de trabalho, sem deixar de lado livros que me fazem um bem danado ler pelo puro prazer de leitura; quase como um roubo, uma insubordinação, um hiato:::

porque talvez seja este meu defeito mais antigo:::: a capacidade de abrir hiatos diante das clareiras do caos. tudo ao meu redor pega fogo e me vem a certeza de que nada me diz respeito. o que me diz respeito são estas promessas sempre a cumprir.
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terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Retrô 2019 - os dez livros mais amados e + 1



todo fim de ano, esta vontade de revisitar o que se passou no decorrer do ano --- como se fosse possível apreender o tempo. e daí extrair lições. me vem a vontade do diário e olho desanimada as poucas postagens, como se tivesse falhado com algo que me é tão importante. 

escrevi muito neste ano --- centenas de textos técnicos. mas quase nenhuma linha do que realmente me importa. não que essas centenas não tenham importado. aprendi muito neste lugar da técnica. muito mais do que em qualquer outro tempo julgaria capaz de aprender. e de gostar. pois foi assim. entretanto, isso não supre todo o resto que faz falta. 

antes de fazer minha lista de "livros do ano" (porque com tanta gente bacana fazendo as suas listas, é difícil resistir), preciso dizer que li muito menos do que achei que havia lido. li mais do que no ano passado, mas ainda tão pouco se comparado com a minha ambição de leitura.

começo, então, pelo fim::: pelo dia em que passei lendo O compromisso, de Herta Müller. na semana passada, em um daqueles dias de banzo, meio ressaca, meio cansaço, de férias finalmente, lá pelo meio da tarde, após passar a manhã toda lendo, resolvi que leria o livro até o fim. e assim foi. e foi tão impactante, porque me dei conta do tempo. deste de agora e daquele em que era tão comum passar o dia todo lendo.  

eu leio na van, a caminho do trabalho. foi assim que li a maioria dos livros deste ano. enquanto a maioria dormita, cochila, vê o celular, eu leio; às vezes, lutando contra o sono e o cansaço; outras, com a luz das lanternas de leitura, porque eu ainda leio livros de papel; e acho que sempre vai ser assim. isso dá duas horas diárias de leitura; nos dias de maior concentração, 2h40, que é o tempo da ida e da volta para a UFSB. 

leio também aos sábados pela manhã, na varanda do meu quarto::: a cada vez, um momento de muita plenitude. eu sempre me espanto como fiz, quase sem querer, desse lugar na varanda o meu melhor lugar no mundo nos últimos dois anos.

ainda assim, perto da minha ambição, da minha imensa biblioteca, foram poucos livros. daí que, neste dia de dezembro, em que li todo o livro de Herta Müller, eu tomei a decisão de que esta será uma das minhas promessas de  2020: tirar da loucura dos dias aqueles que serão dedicados apenas à leitura, escolhendo sempre livros que possam ser iniciados e finalizados em um único dia. daqui a um ano, se nenhum raio tiver me partido, eu digo aqui sobre o percurso dessa promessa. 

2019 foi o ano dos "inéditos" --- autores que jamais havia lido, seja porque não os conhecia, não tinha interesse ou não havia dado o tempo. daí, terem sido verdadeiros encontros. 

se eu tivesse que escolher um, escreveria Os detetives selvagens, de Bolaño.
dois, acrescentaria Os diários de Emilio Rizzi - os anos felizes, de Ricardo Piglia. 
três, não esqueceria de Bússola, de Mathias Enard. 
quatro, devotaria amor eterno a Mrs. Dalloway, de Virgínia Woolf. 
cinco, reservaria O quarto de Giovanni, de James Baldwin. 

desses cinco, apenas Piglia é meu velho conhecido. 

mas como esquecer de O amor de uma boa mulher, de Alice Munro?
Amada, de Toni Morrison? é preciso continuar: seis, sete. 

quando meu pai morreu, eu estava lendo Tristes trópicos, de Lévi Strauss. que eu tratei como ficção, de tão bem engendrado. por conta disso, deste acontecimento tão irreparável, ficaram faltando as últimas trinta páginas. não é fácil estar lendo um livro e, no minuto seguinte, estar descendo as escadas da sua casa, com o celular na mão, para ouvir daí a instantes que meu pai havia ido - passarinho. como voltar àquele instante anterior? não há como. Lévi Strauss entenderia. oito. 

na bagagem da longa viagem, levei Jane Eyre, de Charlotte Brontë, por conta do Leia mulheres Ilhéus, que me trouxe tão lindos encontros neste ano. quando a garganta deixa de ser comprimida, quando a cabeça para de martelar e entra num torpor indefinido, são os livros que me salvam. naquela rede da casa da tia Marlete, afastada da tagarelice da cozinha, em que tantas moralidades eram postas em jugo, eu me enterrei na rede, no mesmo local em que minha avó havia vivido os seus últimos anos. e dediquei algumas horas a essa história tão antiga, que, para subverter minimamente as histórias das heroínas entregues ao seu herói, iniciou pelo corpo, destituindo-os de beleza. 

depois, comentamos no Leia mulheres. e eu não lembro se contei ao quinteto as circunstâncias em que havia lido esse livro - tão antigo, como disse, mas ao mesmo tempo tão assombrosamente inadequado para a sua época. ah, as mulheres! que histórias bonitas estas mulheres me contaram: Alessandra, Daniele, Lu, Verena. se elas pudessem saber o tamanho da minha gratidão! é o nono. 

volto ao início::: Herta Müller --- A raposa já era o caçador. Nunca um livro havia me mostrado como eu havia deixado de lado algo tão essencial de outro livro. ao finalizá-lo, me deu vontade de reescrever de tantas outras formas o artigo que escrevi sobre o livro de Laura Erber, Esquilos de Pavlov, para preencher as lacunas que deixei ali de modo tão flagrante. é o décimo. 

ainda seria preciso falar das leituras inacabadas, para além de Tristes trópicos. porque toda história de leitura está repleta de hesitações, desejos frustrados, páginas pela metade::: conto nove aqui em cima de minha mesa, pelas mais variadas razões. há muito mais de volta aos seus lugares de chumbo à espera de um tempo que talvez nunca chegue.  é a primeira vez que, deliberadamente, me dou ao luxo de não me obrigar à leitura de um livro iniciado até às últimas páginas. 

foi um ano irrequieto. medonho --- se penso no coletivo, no papel social que é preciso exercer e estar atenta. foi o ano de maior revolta, sem dúvida. e foi, no íntimo, mais um ano tão triste -- o ano em que Chico se foi. e apesar de nunca serem suficientes, nunca serem um lugar de consolo, os livros lidos, inacabados, desejados, ignorados, comprados, folheados, foram um sossego da loucura e da dor. 

e é por isso que não posso prescindir desses hiatos em que me dou a chance de ler. prescindir seria arrancar de mim uma parte que considero bonita, embora, como outras partes, seja também conflitante, incompleta, imperfeita. 

Talvez seja como o personagem de Bússola:

Meu pobre Franz, você sempre se agarrando às ilusões, teria dito Mamãe em seu francês tão suave, você sempre foi assim, um sonhador, meu pobre menino. No entanto, você leu Tristão e Isolda, Vis e Ramin, Majnun e Laila, há forças a vencer, e a vida é muito longa, às vezes, a vida é muito longa, tão longa quanto a sombra sobre Alepo, a sombra da destruição. 

Pois.

De longe, o livro mais desencantado de todos esses. Se não existisse Desonra, de J. M. Coetzee, teria sido o livro mais desencantado. Mas existe. E quando um livro como Desonra existe, na verdade, ele paira sobre todos, como uma grande exceção --- único, medonho, grande, muito grande. 















quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Chico, Chico




antes, quero dizer que, embora este blog esteja parecendo um obituário, há muita vida por aqui --- na vida. nem sempre fácil, algumas vezes muito difícil --- mas vida. aqui, em torno. 

meu pai foi embora em um sábado --- o dia que ele mais amava, o dia que elegeu, durante toda sua vida, como o dia para sair de si, para estar na rua, para ficar tonto. --- como se alguém que, gostando muito de carnaval, morresse em plena avenida, entregue à alegria da batucada. foi assim --- num repente. 

talvez tenha dado tempo para sentir um pouco de medo, mas não muito --- é o que espero. pois ele tinha muito medo da morte. sempre que atentou para alguma mudança em sua vida foi na tentativa de burlar a morte, de enviá-la para longe de si. gostava de imaginar que viveria tanto tempo como seu pai, como seus antepassados --- com vidas tão longevas. seu neto Emanuel,que esteve com ele todos os dias nos últimos seis anos, disse que ele viveu sua vida todinha --- e me deu uma pequena alegria esse pensamento. porque para nós, os ainda vivos, parece sempre pouco. é sempre um ainda não. 81 anos é mesmo uma vida todinha::: deu para engendrar outras vidas que o amavam, que tinham nele a maior referência de amor e de delicadeza. 

meu pai não era um homem comum. com isso não quero dizer que era extraordinário. quero dizer que ele tinha os dois pés fincados no imaginário. ele falava com os bichos, falava com as crianças. mas principalmente falava sozinho --- numa peleja grande com suas tantas histórias pra dentro - sussurradas, ligeiras, secretas. isso lhe dá pelo menos duas existências::: a que vivia com as gentes de fora e a que vivia com as gentes de dentro dele -- inventadas, recriadas, contadas e recontadas.

[e eu sou a sua herdeira direta desse viver para fora e para dentro --- pelo menos, até onde sei. pois se é a primeira vez que confesso minhas outras vidas, talvez outra das minhas irmãs também tenha herdado esse inventar histórias, criar outras paisagens e outros fins para dentro --- dentro de si. fim da confissão].

por muito tempo, meu pai foi o menos silencioso de sua família silenciosa. agora, que eu estou mais próxima da velhice do que da juventude, é ainda mais bonito reafirmar o que essa família representou na minha formação::: o que enxergo nela como o que me constituiu e o que eu gostaria que tivesse me constituído --- que passa por nomes como dignidade, altivez, que sempre impressionaram o meu eu-menina. dessas heranças que valem uma vida toda. digo "por muito tempo", porque, nos últimos anos, meu pai havia finalmente incorporado o silêncio de sua família. e plantava seus olhinhos calados sobre nós a perguntar, sim, pela sua vida -- o que havia sido das terras? da casa deteriorada? do pobrezinho de seu filho que havia ido tão cedo? o que havia sido dela com quem não podia mais se encontrar? E menino de vô, cadê? E Ney, como vai? -- era assim sua vida de fora. a de dentro era, por vezes, assombros e batalhas. 

ter um pai aluado é, desde menina, conhecer um menino-deus. é ter que desde cedo reconfigurar a imagem de pai e de homem, de sucesso e fracasso, de poder e saber. pois foi assim que carreguei em mim meu pai a vida toda --- sabendo ser ele diferente. um homem-menino com toda a carga de beleza advinda daí::: o melhor abraço, o beijo mais bem dado, o sorriso meio de lado, quase que envergonhado, a timidez, as poucas palavras, o jeito doce, o cheiro mais reconhecido.

meu pai gostava de perfumes. de camisas azuis  --- jamais o vi de camiseta. de calças em vez de bermudas. de relógio. de chapéu preto de feltro, de sandálias de couro. de botas - que deixou de usá-las nos últimos anos. 

meu pai gostava de presentear perfumes e sabonetes.

meu pai gostava de pentear os cabelos. de escovar os dentes. de tomar banho. de beber pinga. de cheirar as filhas, os filhos e os netos. e as mulheres, quando elas deixavam. 

meu pai gostava de deitar em rede.

meu pai gostava de crianças. e as crianças gostavam demasiadamente de meu pai.

meu pai amava minha mãe. amor grande medonho desmedido desalmado. era riobaldo, baltazar e serapião. sim, serapião. nos últimos anos, serapião. 

meu pai me bateu uma única vez. e chorou porque me bateu, agarrado a mim, me dando beijos, com gosto do café que eu não soube fazer. e eu, que fui tão surrada, nunca mais tive gosto pelo café. pela cozinha.  e ganhei gosto por pedir desculpas. por beijar os que amo. 

meu pai comia de um jeito diferente. esmagava toda a comida antes de colocá-la na boca, fazendo uma dança com a colher que era antes de tudo método --- e gostava dos pés da galinha e do pescoço, satisfeito de sobrar para ele as piores partes. as partes da galinha dizem muito sobre a nossa história familiar de faltas. até hoje me é excessivo ver uma galinha assada, daquelas que se vendem para os sábados preguiçosos, e imaginar que posso pegar dali qualquer pedaço. me restam sempre as asas, como para meu pai restavam os pés e o pescoço. de restos, como nossa história.

meu pai comprava queijo e rapadura a cada vez que íamos visitá-lo. e nos fazia trazer esse fardo pesado nas malas. queríamos dizer que não queríamos. mas ele ignorava. e chegava com queijos gordos e rapaduras pesadas. e agora, com gastrite e colesterol alto, não paro de comer queijo e rapadura. desde a volta do cemitério. um primo fez um lanche com muito pão, frutas, sucos. e queijo. comi e comi. e ri e ri. ali, abraçada com Verinha, ouvindo as histórias de Ferdin. Vamos para a Europa, num tour, todos nós. e eu queria ter dito: vamos, Verinha, porque Paris com você seria um sonho dos mais grandiosos, como meu amor por você também desmedido. e nunca soube como dizê-lo do tanto que queria saber dizer. mas você sabe, ali, agarrada na minha mão, na igreja em que o corpo do meu pai foi velado. ali, no cemitério, em que você olha para mim, com ela na frente, e diz: "quem diria?"
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as imagens aí acima parecem expressar meu pai como um homem triste. era não. era só em instantes. talvez tenha sido por isso que, quando as tirei ou logo depois, eu pensei que meu pai estava se preparando para ir. as fotos dizem mais sobre um pai que ama seus filhos. eu as tirei de tão longe quanto a minha câmera permite. e sabia por que ele chorava. era pelo meu irmão morto. também chorei pelo meu irmão no meio desta grande festa e, por isso, pude chegar perto dele, logo depois, e dizer: "chore não, Chico, se tiver uma brecha, ele está aqui se divertindo e bebendo essas cervejas todas". 

pois era assim Chico. 
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um homem que não nos deixava esquecer que os afetos nos esgarçam e nos inteiram. um homem que nos doou - às filhas e aos filhos - um amor delicado, distinto, poderoso inteiro feliz leve passarinho. 

... eu tenho em mim uma memória. guardo-a. é minha. a essa memória de afeto, acrescento esta::: no pequeno corredor que há na casa de Maneca, separando a sala e a cozinha, meu pai está lá, saindo do banheiro, e eu o agarro e digo::: "Chico, Chico, você está tão calado. Chico, Chico, eu te amo". E ele responde, quase em silêncio::: "Tô não, minha filha". 

e agora que estamos sozinhas, sem esse afeto vivo, peço a ele como uma prece:::...........................................................................................................................................

eu não sou de pedir ajuda a ninguém. quando tenho desesperos, são desesperos orgulhosos, solitários, medonhos. estava assim, e a razão de estar assim já se perdeu, há cerca de um ano, e no calçadão que caminho algumas vezes por semana, eu invoquei meu irmão morto e lhe pedi ajuda:::: "me diz, mano, me diz o que fazer, me diz como fazer o certo, me diz, mano".

agora, não estou dormindo. as mortes levam meu sono. e me põem num frenesi absurdo. não sei se é narrativa ou se foi assim mesmo, mas só voltei a dormir depois que meu irmão morreu quando sonhei com ele. um sonho tão rápido e tão bonito. agora, talvez eu espere que meu pai me venha em sonho. e me diga que está tudo bem. enquanto ele não vem, durmo pouco e sonho sonhos. 

merci, Chico. não poderia ter sido mais bonita nossa história. e poderia. a história que manaMácia e a Morg viveram com você foi infinitamente mais bela do que a minha. Por isso, eu as reverencio e agradeço. que os deuses me deixem pronta para a minha morte, mas principalmente para a vida. porque a vida é mesmo esse conto ligeiro, esse fio atado a nada. --- como disseram as minhas irmãs. 
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chamava pai de pai. mas muitas vezes eu o chamava ou me referia a ele --- de Chico, Chico, como se estivesse falando com ele, mesmo se não estivesse, imitando o seu tom de voz, que era - e não poderia deixar de ser - muito peculiar. como um rumor do que ele era. 

quando éramos:::::::::::::::




 de frente, nós. 

       

segunda-feira, 10 de junho de 2019

Casamento da Princesa






pois este ano tem me feito revirar um bocado. agora, fui para ver o casamento da Princesa, dela que provocou, involuntariamente, meu primeiro e mais importante deslocamento, há quase trinta anos.

por diversas vezes, nos dias que antecederam e procederam o casamento, eu pensei que ainda via a Jéssica, ora Princesa, ora Doidinha, como a adolescente que ela era em 2004, quando fui embora de Porto Velho. até ali tínhamos uma convivência quase diária permeada de muito afeto, muito amor, muita admiração. depois, perdemos a cumplicidade dos dias; tanto eu como ela avessas de comunicação à distância. vez ou outra, nesses dias, senti falta dessa cumplicidade agora memória. e me vi investigando em silêncio o que ainda há. e sei que da minha parte é um desmesurado amor. 

eu nunca casei num ritual como esse, e nem tenho lembrança se alguma vez o quis, mas quase tudo que me é estranho é da ordem da emoção. eu fui assim --- para viver os dias em nome deste lugar que é dela em mim. e foi bonito. é o que eu tenho a dizer::: foi bonito --- como tudo que lembro que vivemos. e isso é um milagre. por fim, é um milagre::: ter alguém que se ama tanto e só ter boas lembranças desse amor. 

e foi o que desejei -- a ambos::: que seja bonito o casamento. que haja mais dias felizes do que tristes. isto do caminhar junto - que nunca é fácil, mas é o que quase sempre queremos viver::: o encontro com o outro. 

ainda em casa, tomei ciência de que deveria ir entregue aos rituais, atenta à praticidade que me obrigo a ter vez por outra. me arrumar, arrumar o Poeminha, estar atenta ao que precisassem - pouco, muito pouco. quis encontrá-la, encontrá-las, ela e Maneca; ela, Maneca, Ed e Josimar, com amor, porque, se não me engano, foi o que sempre nos permeou. e é o que posso dar, desatenta que sou::: a minha presença, quando ali estou. e isso me trouxe alegria, muita alegria. estar ali, estar com. 

fotografei toscamente quase todo o casamento. e me embrulhei de emoção diversas vezes. dancei muito e comi muito. e me concentrei para não beber além da. para poder registrar.  pois é o que se tem a fazer em uma festa de casamento: dançar, comer, beber e achar tudo bonito. foi assim. lembrei muito do mano. ele foi a presença que nos faltou nestes dias. e ainda lá, me veio o pensamento de não querer normatizar nem moralizar o luto que ainda dói, ainda que doa. flagrei a dor do meu pai e da tia Fá na pouca luz da festa. e guardei-os, aqui, em mim.   

pela primeira vez, nos encontramos - as quatro irmãs - sem ser no Ceará. Morg finalmente foi nos encontrar. e eu espero que esta primeira viagem tenha sido bonita para ela também. para que ela possa vir aqui, na minha casa. minha maior alegria é ter irmãs, como já disse outras vezes aqui. é um assombro: os mesmos sorrisos, os mesmos vários tiques, as fisionomias tão próximas. em algum momento, expressei nossas diferenças, como um apelo para que estas não nos afastem nem retirem de nós isto que tem nome de amor; amor como um sentimento imperfeito, afeito à curvatura do que temos de próprio em cada uma. 
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a primeira lembrança que tenho de Jéssica é dela correndo na praça da cidade de minha infância. ela tinha um ano. na minha memória, era um vestido amarelo, com laços de fita branco. não sei se inventei essa memória. ou se a construí a partir de alguma fotografia. ali, aos quinze anos, eu já dava início a um dos princípios básicos da maternidade que eu exerceria vinte anos depois: cuidar sem violência. e agora, quando escrevo, me dou conta que também Maneca fez este pacto. e também Josimar. tantos foram os dias e as noites que nos colocamos à sua disposição. para brincar, correr e acalentar. ela não tem a delicadeza que poderia ter se constituído aí. porque é para dentro --- como nós três, arrisco-me a dizer: sua mãe, seu pai e eu. e deve precisar de um esforço extra para lidar com quem está a seu redor. talvez quando ela for mãe - se for -, a delicadeza que há ali, e que é preciso arrancar vez por por outra, prevaleça. ou já agora::: ela e Ed juntos nos dias que virão. tão longos, tão longos, é o que desejo. 


domingo, 17 de fevereiro de 2019

enquanto leio este livro de Mia Couto



enquanto leio este livro de Mia Couto, mais o Brasil deixa de ser o que por um intervalo curto demais imaginamos que ele poderia vir a ser --- ou era. nós, os que acreditamos em presentes. e daí fico sem saber se todas as lágrimas são por conta do livro --- da beleza das palavras, e não propriamente da história --- ou por conta deste aborto chamado Brasil. talvez fosse melhor ser desterrada do que estar ainda mais próxima das entranhas da minha terra, nesta Bahia, embora às vezes esta se sinta mais próxima do Sudeste que lhe renega do que do Nordeste que lhe é. pois estar fincada na própria terra é sentir mais forte quando ela treme debaixo de nossos pés.

sei que nestes dias me sinto mais que nunca cearense. ainda que uma cearense-rondoniense. um travo orgulhoso me percorre. e eu misturo a minha dor salivar do estômago com essa raiva surda por conta de todos estes mortos-matados. o Brasil afunda como a barragem de Brumadinho::: de uma vez só, sem dar tempo de nos colocarmos a salvo, ainda que os avisos tenham passado por muitos ouvidos moucos; ainda que haja sempre um milagre a nos dar um rasteiro alento – como a mulher que dirigia o trator e soube ter a coragem de esperar a hora de sair dali, bem na parte da terra em que a lama deu a curva. a mesma coragem da mulher que arrebentou o vidro do caminhão arrebatado pelo helicóptero que caiu. ouço o relato que Boechat pulou, na tentativa, certamente, de se manter vivo. não tenho forças para conferir. é muita tristeza junta. havia acabado de ver corpos estirados no chão de uma casa comum, no morro do fallet-fogueteiro, mortos em nome da guerra que faz arder o Rio de Janeiro. e também Fortaleza. porque as guerras são todas iguais, é o que sempre nos dizem. e na mesma semana, já havia visto Fernanda chorando por conta dos meninos do Flamengo ---. e agora o segurança mata um jovem já indefeso. MATA UMA PESSOA. e é nítido o prazer de matar. é a vida num estado de terror e revolta 

enquanto leio este livro de Mia Couto, eu tento me acertar; acertar as contas com o que não me serve mais --- lembro da missa a que assisti ainda há pouco do meu irmão padre – tão bonita e tão bonito. não aprenderei a dar glória, nem a usar a hashtag gratidão, mas posso levantar da mesa para fugir das minhas implicâncias; posso subir as escadas, meio trôpega, para não dizer mais nada sobre o que certamente me arrependeria no dia seguinte, quando eu tivesse que me levantar e roubar estes poucos minutos para olhar o que vejo da varanda de nosso quarto. é porque a vida tem esta parte das fugas de si mesmo; do repisar o constante para querer ser outra, ainda que todo tempo seja eu mesma que esteja aqui comigo.

enquanto leio este livro de Mia Couto, lembro que já faz dez dias da última fisioterapia e acordo em desespero para ir. é um rompante para não me afastar das promessas deste ano que mal começou e já poderia ter terminado, porque já parece ter havido tragédias, crimes, mentiras, ignorâncias, burrices em excesso. é muito. e talvez ainda seja pouco. engulo estes comprimidos contra a bactéria do estômago e deixo ausentes a amargura da boca e a sonolência, só porque quero, embora estejam aqui. tenho pressa, mas é porque persigo o vagar. me prometi ler uma centena de livros neste ano, e ver mais de duas centenas de filmes nestas horas em pé, enquanto faço algo muito antigo, que é este passar de roupa e, agora, guardar no método marie kondo. nem que eu precise trapacear e ler alguns muito finos, decidi que vou ler, sob pena de não mais poder dizer que me constituo como leitora. nem que eu tenha que fazer como já faço há tanto tempo: barrar o sono. Vicente e Tatupai riem quando me veem cochilando 1h da manhã, tentando ler ou escrever, já não lembro. eu devolvo o riso, feliz, por estar ali e não ter estado com eles, quando certamente me perderia e deixaria de lado essas promessas tolas.

enquanto leio este livro de Mia Couto, penso que não há razão alguma para temer. para me pôr a salvo, ainda que sob perigo, é só não me afastar dessa grande coragem de me manter leal aos meus princípios --- há quem diga que é arrogância, mas eu prefiro pensar que são as roupas e as armas de Jorge. um querer obstinado pelo trabalho moroso, porém dedicado. tenho horrores também, mas tenho amor, sobretudo. amor, sim, ainda que lesado.   

enquanto leio este livro, eu me lembro que daqui a pouco estarei novamente em Angola. é por Angola que circundo estes livros negros, estes estudos, prenha destas vontades, agora que já não dá mais para estar prenhe de algum irmão-porvir de Poeminha. é da natureza do precoce vir cedo demais; daí ser necessário esse agarrar das vontades outras. é o modo possível para suportar este Brasil que ora nos castiga como o quê. talvez seja como rezar pra dentro, por falta de jeito de rezar pra fora. quando eu esqueço que não sei, eu me ponho em estado de oração, em que penso no meu irmão morto, no meu primo-sorriso, no meu pai e na minha mãe longes, no plural mesmo. nos desejos abortados, nas tristezas fundas que não se curam senão não seriam tristezas fundas, em tantos outros que estão longe, e nestes dois que amo e que estão perto, aqui comigo --- enquanto me deixo arrastar por Rosabela, que late faceira, nesta beira do pontal que aprendi a amar e a chamar de casa.

segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

o menino-sorriso Luan




mana Mácia, em um de seus momentos de braveza - e com aquela dor do irmão que havia morrido -, me disse que quando morresse não ia querer nada::: nem choro em vão nem texto bonito na internet. há pouco eu havia escrito sobre e para meu irmão morto. o que são as palavras senão monstros para nos apaziguar?  talvez a gente escreva porque a parte escrita seja a parte de uma humanidade perdida --- um jeito de estar com o outro, ainda que a presença, aí, fique rarefeita. é assim que hoje escrevo sobre Luan, o menino bonito de tantos amores que partiu como passarinho --- a atrapalhar as alegrias das festas de fim de ano, meio como naquela música de Chico Buarque.

há tanto a dizer sobre Luan. e não há nada que não tenha sido já dito. eu o vi bebê, menino, adolescente, rapaz e moço inteiro. ou seja, eu deveria ter morrido primeiro para seguir a ordem da natureza. um jovem quando morre - seja de morte matada seja de morte morrida - é um tanto de dor sem fim. já disseram tudo::: morre um passarinho livre. pego de surpresa bem no meio de seu voo.

Luan viveu sua doença de tal modo que nos ensinou a viver como se ele não fosse morrer tão cedo. ainda que sua vida nos últimos anos tenha sido vivida boa parte em hospitais. e agora, quando escrevo, parece estar fora de ordem isso que digo::: suas fotos públicas são todas de um viva ao estar junto, ao sentir e querer estar entre pessoas. com câncer reinventou sua vida um sem fim de vezes. namorou, passeou, foi pai. pai! talvez soubesse que tudo seria breve. ou não::: acho mesmo que acreditava no estar-aqui da eternidade. e com tal sorriso::: não há uma única foto em que ele esteja sério. nem se via ele sério::: é a vida que pulsa. em uma daquelas sortes grandes, faz um mês apenas que pude estar uma hora com ele, apesar de nossos muitos quilômetros de distância::: e não ouvi dele uma única palavra de desalento. era todo fé, era todo alegria. era todo vontade de estar no mundo.

um dia, tentando convencer minha amiga Rosana de que a vida era muito poderosa e não deveria ser vivida senão com alegria, eu lhe disse que a hora é sempre o agora::: ou vivemos ou esperamos o tempo em que viver será ainda mais difícil, pois a morte vem, as dores nos arrastam e já é o fim. 

e agora me parece isto::: tem uma ferradura bem no meio de nós, de mim. a morte de meu irmão é como um antes e um depois --- a tristeza dessa morte lambe meus dias mais felizes, retirando parte das alegrias tantas. ---- ainda que eu persevere na alegria. pois Luan, como meu irmão, também perseverava na alegria. e agora temos mais esta prova para viver os dias. mais um se foi cedo demais. e como sobreviventes temos que viver as provas dos dias. como estar à altura da vida? desnorteada, penso dia e noite nisso. como honrar a chance de estar viva, quando tanta gente bonita morre como se fosse antes da hora?

certamente, Luan sofreu. teve medo, sentiu muita dor, fraquejou no meio das noites, que é quando mais fraquejamos, longe dos olhos. mas nada disso quis compartilhar conosco. o que quis foi espalhar seu sorriso e sua fé. e por isso, apesar desse tempo todo doente, nos parece agora que foi rápido demais. assim:::: num repente --- vestido de branco, vermelho e flor. no meio das festas, da família que ele tanto amava.

penso agora na tia Fá, a mãe de Luan. --- da geração de mães que conheço, ela sempre me pareceu ser das mais ternas, mais entregue a esta aventura de ser mãe. sempre me impressionou a sua falta de sono quando uma de suas crias estava longe de casa --- prova de que ela as queria todas próximas, a salvo sob suas asas. só consigo imaginar a sua dor; jamais senti-la. mas eu sei que ela sabe o que Luan faria e diria::: amor.

então, neste último dia do ano, o que posso desejar a todos que conheço, e ainda mais aos que amo, é que tenham em si a alegria, a coragem e a fé de Luan --- o menino-luz, o menino-flor, o menino-sorriso, o menino-abraço, o menino-gargalhada.

vamos precisar de sua alegria, de sua fé, de sua gargalhada, para enfrentar os dias duros que virão --- e sem perder a ternura, o amor, os desejos --- estes sentimentos moventes::: que eram dele e estavam nele até o fim. que nunca parece ser o fim. porque está aqui -- em nós. 

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