quinta-feira, 30 de abril de 2015

Dos gostos - e do lugar certo (Para poeminha)



hoje, com muita saudade do Poeminha, que já está há quase um mês longe de mim::: que vim arrumar tudo por aqui, na nova morada, ouvi Marisa Monte e Barbatuques. e ouvindo, todo ele me veio --- inteiro. Poeminha aprendeu a amar Marisa Monte sem que eu soubesse exatamente como. de ouvido. sabe de cor todas as músicas do seu último DVD --- um dia, levou-o para a escola e - conta a professora - perguntou aos coleguinhas se a conheciam deste modo::: "vocês conhecem Marisa Monte? Ela é muito linda".

o primeiro disco que comprei na vida foi de Marisa Monte. e ela ficou para sempre, mesmo nos cds que gosto menos. quando fui ver o show dela em Paris errei o caminho que já havia percorrido várias vezes --- de tão nervosa. chorei durante todo o show. tão parca de memória - lembro de cada segundo. depois, saí na noite branca e percorri diversas ruas de bicicleta, entrei e saí de museus, galerias, pontes, ruas, levando-a em mim. quando vi seu show novamente, já era o frio de São Paulo. o coração doía, mas sabia fingir que ali podia estar o amor. não estava. mas foi tão bonito que é como se estivesse.

e mesmo assim, não sei exatamente onde começou o amor do Poeminha por Marisa Monte. ele ama um tanto de coisas --- cuido das referências na medida das minhas próprias referências e também das minhas concepções::: tudo junto e misturado: Poeminha é um pouco do que ele recolhe de mim, com seu grau de "sofisticação", e do que recolhe dos meios que estão a mão quando estamos ocupados demais para lhe dar a atenção devida: é assim que ele já amou a Galinha pintadinha e a Peppa. e também os Barbatuques e a Adriana Calcanhoto. 

vez ou outra, bate o receio de meu filho se sentir um estranho na escola. agora, ainda mais. algum colega pode decidir que você não é do "grupo" e aí o seu recreio pode ser um inferno. E Poeminha viveu recentemente o seu inferno --- e se saiu muito bem::: ao que parece. tudo porque sua mais nova paixão são as "my little ponys". e as ponys são cor de rosa. são de meninas. são. em suma, o universo do meu filho é feminino - o que a convenção diz ser o feminino. sua concentração e sua capacidade de invenção são de causar inveja a qualquer adulto. no tablet do Tatupai, ele assiste aos vídeos das ponys, baixa os tutoriais e realiza-os em seguida. customizar é sua palavra de ordem. com massinhas, com os cabelos cortados das ponys, com os retalhos que angariou na casa da tia Rô. e na próxima semana vai a um show de umas moças aí que se denominam ponys e me garantiu, com a voz firme e alegre, que não se sentirá mal se só tiver meninas. acreditei.

pois é assim que eu quero que ele seja::: destemido. deixei que Poeminha amasse as ponys e me esqueci da escola, das outras crianças --- esqueci do mundo cão. e meu filho pagou o preço. um certo coleguinha convenceu a todos os outros que os seus gostos eram "gostos de menina"; para ser um pária, bastou um monstro-mirim. porque os monstros-adultos educam muito bem para que seus filhos sejam também monstros-mirins, reproduzindo a mesma enxurrada de preconceitos que devem ouvir em casa. e aí, claro, meu filho sofreu. mas logo compreendeu com nossa ajuda que fazer escolhas, que ter gostos fora do rebanho, implica em ter que construir uma casca de proteção para si mesmo.

como mãe perdi pela primeira vez meus superpoderes. porque era um superpoder deixar que meu filho tivesse ponys cor de rosa e equestrias de longos cabelos ruivos. não estou a fim de levantar bandeiras. não tenho a mínima ideia se será isso que ele vai querer. mas gosto muito de virar as costas para todos esses lugares preestabelecidos. quero estar fora de todos eles. minha luta branda sempre adveio do desejo de não pertencer a esses grupos que classificam de forma impiedosa. só quero dizer uma coisa::: não vou rotular meu filho. o que digo agora é que suas referências demandam uma sensibilidade que não é do mundo-homem: seu maior abismo agora é entender por que todos os seus colegas gostam de futebol. e de tudo que tenho visto e sentido, todas as crianças reproduzindo os preconceitos dos adultos, eu só posso dizer uma coisa::: Poeminha nasceu na mãe certa. na família certa. porque, aqui, na nossa casa, no nosso amor, meu filho pode ser o que quiser, pode querer quantas bonecas seu olho brilhar.

talvez nada disso tenha a ver com orientação sexual --- mas se tiver, ele tem desde já seu paraíso particular. é aqui, junto de mim. se alguém vier com alguma gracinha eu vou dizer em alto e bom som que meu filho é um filho da mãe. não vou poder protegê-lo da lógica perversa do mundo, mas no meio da desproteção, ele saberá que estou aqui --- e que abomino com todas as minhas forças todo ódio às diferenças.

é o que tenho dito à família do Poeminha::: materna e paterna::: não me venha pedir para que eu não compre Peppas e Ponys. compro, sim. compro como compraria um carrinho, se assim ele desejasse. compro o que ele tiver vontade e não o que eu ou outro tiver vontade! gasto muito tempo na tentativa de equilíbrio entre proporcionar o que ele deseja e o que é excesso. e neste tempo, só estou convicta de uma coisa: só algo horrendo pode abalar o que hoje sinto pelo Poeminha. se ele desandar - e tornar-se ladrão, traficante, mau caráter, perverso, sei que o ser mãe vai me pesar. em suma, se ele virar gente que não respeita o outro. todo o resto ele poderá ser. se ele mantiver a sensibilidade, o cuidado com o outro, o respeito, a bondade, eu serei uma mãe por inteira feliz, como sou agora com a sua existência. quando Poeminha veio, eu já era uma senhora. eu estava pronta, se é que isso existe. mantive meus desejos e realizo-os na medida do possível. mas abandonei todo o supérfluo. abandonei as noitadas e virei uma mulher que via todos saírem - inclusive o companheiro - e me aninhava ao lado do Poemina, achando muito natural a não vontade. e consegui deixar sua bagunça espalhar-se pelos cômodos da casa --- logo eu, que só tenho paz se está tudo em ordem.  
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por que não é isso que importa???? importa é esta abertura para o ser mãe. para que o filho tenha a chance de ser uma gente feliz. faço todas as apostas nisso. neste "euteamo" contínuo e incondicional.

[[[e Poeminha, não vou mentir, se você virar um desumano, eu serei a primeira a meter o dedo na sua cara. suporto não. suporto não esta gente perversa, preconceituosa e infeliz que quer comandar o corpo do outro, o desejo do outro, a religião ou a sem-religião do outro. não me venha trazer para dentro da nossa casa esta lógica desumana. e filho, é melhor sofrer o deslocamento do que compactuar com esta gente que acha natural espancar, torturar, matar toda gente com as quais eles não querer parecer.

E não parecem mesmo, filho. Porque a cara do preconceito é horrenda, é terrível. e é a ela que devemos virar a cara. para que nossa face possa ser mais visível, mais humana, no sentido de um desejo de transformar o humano numa face mais visível de beleza.

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Vita nuova II







 
 




Mas arrumar as malas é sempre uma dor. Mesmo quando saio de férias, ou vou para uma viagem que quero muito, me vem um nó que se instala não apenas na garganta, mas no corpo todo. O corpo dói; as lágrimas descem, descem. Desta vez, não foi diferente. (Vita nuova) 

eu achei que não ia chorar. eu estava doida para ir embora. em 2015, tem me vindo tanta ânsia e me importa muito vivenciar tudo isso. mas o fato é que eu chorei. comecei a me despedir da turma que eu estava dando aula e desandei a chorar. depois, respirei e expliquei a razão do choro. não lembro de tudo que disse, mas disse algo que nunca vou esquecer, porque foi bem assim:::: "eu vim porque quis. e vou embora porque quero". achei poderoso. não não. não fiz nenhuma revolução. a mudança foi acanhada em vários sentidos. foi quase por acaso, na verdade. mas ainda assim, acho poderoso. não é todo dia.

colocar as malas nas costas - e que malas para tão poucas costas - não se faz todo dia. nunca escondi que vivia em Vilhena como se a cidade não existisse. acho que às vezes parecia ofensivo para as pessoas que adoram Vilhena, mas não era a minha intenção. quem prestou atenção, percebia que eu também dizia que vivia bem. em todo lugar, ou se aciona o paraíso particular ou a cidade importa muito pouco. sempre penso nas milhares de pessoas que vivem em São Paulo como se a cidade não existisse - tanta maravilha - espetáculos, shows, filmes, livrarias, restaurantes - e tantos no seu quadrado. mas às vezes é assim:::: e não há o que fazer.

Vilhena é uma cidade bonita, com ruas largas, para quem tem condições de morar no seu "miolo", como eu dizia. eu morava no miolo numa casa amarela que depois foi virando amarela-desbotada. as fachadas das casas são de encher os olhos. e meu amarelo ofuscava, mas eu bem que gostava. e as ruas são bem largas. eu estava quase familiarizada com elas --- com minha bike para lá e para cá. mas era só isso - para mim.

a linda da Aline me disse que em Vilhena só sente saudade de banca de jornais e revistas. para quem morou em lugares maravilhosos como ela, a afirmação me assombrou um bocado. fiquei envergonhada do meu pouco amor à cidade. mas compreendi. e achei que minha falta também era desta ordem, mas ainda mais larga. e pensando friamente, vou continuar sentindo falta nesta nova cidade que agora habito. pois acho que a minha falta tem a ver com algo ainda mais longínquo e imprevisível que eu não sei exatamente nominar.

eu fui para Vilhena com um tanto de desejos. logo de cara, perdi algumas partes de mim. e reencontrei-as muito rapidamente. uma amiga sabe contar esta história melhor do que eu - com muito humor. eu fico envergonhada quando ouço, mas  o tanto de verdade que há nela carrega o seu charme. eu também costumo dizer que eu tinha que ir para Vilhena para lá encontrar o Tatupai e fazer viver o Poeminha --- e isso já diz tudo::: já diz que Vilhena me deu tudo.

me deu um amor --- que anda com as entranhas estranhas, é verdade. porque o amor às vezes pesa. este ciclo interminável de muitas horas de riso e de lágrima. eu não sei para onde os Tatupais vão com este amor e também não me interessa dizer apenas das flores. tantas palavras inomináveis nos sobram. tem muitas saídas, creio eu. mas como sofro de dicotomia, me vem uma vontade de pensar que só há duas:::: se for de riso, haverá chance. se for de dor, melhor que não. e penso assim porque insisto em sustentar que quase não tenho medo. só tenho medo dos maus tratos do dia-a-dia. sabe::: isso que espezinha. estas palavras espraiadas que ferem como espinho no pé. não consigo pensar no porvir com espinho no pé. quero meus pés bem plantados --- para poderem planar.

e esse amor me deu um filho --- que saiu das minhas entranhas e que me encanta a cada dia, a cada hora, a cada minuto, a cada segundo. e ele nasceu em Vilhena. e não me causou nenhuma dor. e tem sido assim há cinco anos. só isso já faz de Vilhena uma cidade-maná. uma cidade para nunca esquecer. de lá, um filho. de lá, um Poeminha. meu meu meu. tem noites, quando estamos naquela de ler e de "beijar beijar beijar", me vem este dizer de posse e eu repito e repito::: "você é meu meu meu". é mentira, mas por ora é verdade e todo riso que vem daí e os beijos nas barrigas já valem uma vida (dia desses, o Poeminha disse: "se você ler duas histórias, eu dou dez beijos na sua barricotinha". e quem souber, que diga quantas história eu li.

quando Amanda me imitou na festa de despedida organizada pela Rô, ela repetiu uma frase que eu disse --- e o tom era de ironia e de graça::: algo como::: "desejar é perigoso. mas é tudo. tem sonhos que nos levam a Paris; outros nos levam a Vilhena". era o fim da história que eu sempre conto::: que desejei ir a Paris para andar nos corredores do Collège de France, onde Barthes deu aula. A história inconclusa era que eu fui para Vilhena porque eu queria ser professora universitária. Tudo, então, é desejo. são vontades inconclusas. são histórias.

não guardo nenhuma mágoa. vim embora com o peito aberto. sofri um bocado. e me diverti um bocado. e fiz um outro bocado. foram anos intensos. e é disso que me lembrarei. não falarei mal nem de Vilhena nem das pessoas de lá nem de mim mesma quando lá estive. já disse: encontrei um amor, tive um filho, quase morri de doença, encontrei uma grande amiga, fiz coisas maravilhosas na universidade. trabalhei trabalhei trabalhei. e deste trabalho, tão difícil na lida do dia-a-dia, extraí do pior o melhor de mim. lutei bravamente contra a corrupção dos dias, contra a mesquinhez das relações e com isso aprendi um bocado sobre mim e sobre os outros. não desejei mal a quase ninguém e sei que não fiz mal a ninguém. jamais, nenhum gesto que pudesse soar como vingança, mesquinharia, estupidez. uma nordestina "cangaceira", mas que não puxou o tapete de ninguém --- nem no posto de chefe - que ocupei por dois anos::: neste posto, aprendi a alegria do acolhimento e da indiferença. acolhi os que achei que valiam a pena e fui indiferente a todas as estocadas --- e este foi apenas o veneno que espalhei. uma serenidade no meio de tanta palavra maldita. - "as roupas e as armas de Jorge". e acho que consegui porque me impus uma certa disciplina. a disciplina de saber que nem toda gente está de acordo comigo. há o desacordo, a diferença, o estranhamento. e há de se levar em conta isso.  tem pessoas que se orgulham das trapaças que conseguem realizar --- e eu me orgulho de manter o rosto sempre limpo, de dizer as piores coisas olho no olho, sem simulação, sem disse-me-disse. é ridículo, eu sei, no mundo de hoje. mas me dá uma felicidade perversa ter coragem de dizer num mundo em que tão poucos têm coragem do dizer. dizer o dito. e não realizar nada que possa me envergonhar - ou envergonhar meu filho, se um dia ele souber. e é tudo. e assim encontrei a paz antes de partir. e a paz, quando estava lá. e a lição de todos os tempos que carrego sempre comigo:::: o tempo o tempo o tempo. agora, repito: me livrei de tudo - do bom e do ruim - por decreto. uma portaria::: e já mais nada era meu. despossuída, desapropriada, livre. que bonito que bonito é o tempo. e a desimportância dos postos, das coisas, dos dias, enfim. e agora, de novo, a chance de guardar em mim apenas o bonito que foi: a amiga, os amigos, o silic, o gepec, as segundas-feiras do gepec, o filho, as ruas retas na bicicletas, as longas noites de festas na varanda de casa, os lindos lindos (Anderson, Gabriel, Dinalva, Dariete, Carlinha, Mislene, Andrielly) e ainda outros lindos lindos ---- todos aqui, no meu coração, que me disseram de algum modo (prof.ª Araci, como esquecer sua sabedoria? Marisa, sua reviravolta?, Dariano, seu olhar direto e franco? Emerson, sua entrega? Bibi, seu imenso amor pelo Poeminha? Inildo, seu abraço cheiroso e sua sabedoria? Sandra e sua tranquilidade discreta? Aline, sua delicadeza e inteligência assombrosas? Lilianaluna, sua vontade ferrenha? Paula, e seu lindo desejo de viver na alegria? Nilza, sua empolgação? Kotz, por que partiu? Lobão, sempre sua lindeza? E seu pai, como esquecer? E sua mãe, naquela manhã desprevenida em que soubemos toda a dor uma da outra sem nada dizer?  foram poucos. mas foram tantos. e mais, ainda mais, ainda todos que tocaram meu coração de algum modo).

talvez daí o choro. quase sete anos não é pouca coisa. então, ficamos assim. fui. e de lá, tanta coisa bonita. não posso nomear. ontem mesmo tive um sonho --- passei o dia com este sonho, como um acalanto a abrandar a aspereza dos primeiros dias em terra dos outros. e foi de lá. se a vida não fosse do jeito que é, talvez eu pudesse ter feito com que o sonho fosse real. e como teria sido corajoso, imprudente, desafiador. mas ele fica bonito como sonho. e já basta.

e agora, neste entremeio, dentre tantas das minhas frases feitas, dia desses tasquei mais uma: "todo mundo leva seus dentes para onde vai". então, eu vim. e trouxe apenas algumas esperanças. os dentes estão aqui comigo. e se eu quiser que seja diferente, terei que arrancar alguns deles.
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(Vanessa, desculpe. os dias estão tão cheios que não consegui fazer uma postagem bonita sobre a despedida de Vilhena. Mas saiba que dentre as tantas gentes bonitas você foi uma delas. Tão linda! Jovem-casada-religiosa. Uma junção de uma série de predicativos que considero temerosos, mas quanta dignidade há nestes predicativos em você. Um dia flagrei um sorriso cúmplice entre você e Fábio -- e segui com esse sorriso o dia todo como um presente, uma dádiva.  Porque vi tanta beleza! Como não admirar? Obrigada pela presença sempre tão luminosa!)

(Fotos: na cidade que não existia, o paraíso particular::: fotografei a casa várias vezes - para testar a luz na câmera nova, para guardar, mas sobretudo porque eu queria um dia ter fotos com qualidade suficiente para enviar a Mariflor, que tem um blog super lindo sobre casas. Como não consegui fotos com qualidade, protelo indefinidamente este desejo, mas deixo aqui o registro desta casa que construí em Vilhena e que agora está toda encaixotada neste apartamento no Sul da Bahia).
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