sábado, 24 de janeiro de 2015

Luz em agosto, luz em janeiro

não deveria nunca existir um livro como Luz em agosto, de Faulkner. somente deveriam existir livros como Luz em agosto, de Faulkner. nos poupariam um bocado de leituras inúteis. leituras sem paixão. leituras protocolares. desmesurada como sou, uma tarde tive que abandonar Luz em agosto. não adiantou chorar bem alto. precisei sentir no corpo aquilo que me vinha como um passado imemorial. e uma vez que a vida é comezinha, fui lavar a área da casa. esfregando ali toda a dor ressurgida por meio daquelas linhas. daquele silêncio ávido de palavras. quando todas estão ali --- dentro da cabeça. em outras tardes, bastou ficar em silêncio sentindo toda a vida passar ali ---- como o que não tem volta. 

desde que li Enquanto agonizo, Faulkner é um dos meus escritores essenciais. foi com ele que aprendi que aquilo que eu penso nunca é o que o outro pensa que eu estou pensando; e o que o outro pensa nunca é o que eu penso que ele está pensando. parece complicado, mas é simples de entender depois de ler Faulkner:::: o fato - ou o acontecimento - está ali. tudo leva a crer que os envolvidos pensarão e agirão de determinado modo diante do fato - ou do acontecimento. e aí Faulkner dá voz as suas personagens::: e nada, nada, nada é como imaginamos. é tudo confusão. é tudo engano. é tudo embaraço. é tudo a partir de um "eu" insensato inseguro impensável. como é difícil. como é difícil. e como é simples se imaginarmos a justa distância de cada um, a diferença fundante. 

não são as diversas histórias que me atordoam. não é o fato de elas "estacionarem" em determinado ponto para retornarem muito tempo depois::: o que me atordoa é a matéria humana de que são feitas. Joe Christmas, a personagem mais impactante do romance, pode até nos ensinar toda a tragicidade do que é estar no mundo numa pele que não é a sua::: um negro na pele de um branco, em Jefferson, no condado de Yokanapatawpha, este lugar fictício criado pelo escritor para expor todas as mazelas dos Estados Unidos. Nesse lugar, Christmas será perseguido, condenado e morto. E não haverá compaixão. Ele também não sabe o que é isso. Carregando a sua história como um fardo, é todo revolta, é todo confusão; nada nele é da ordem da identificação. o bem, o mal e o duvidoso misturam-se de uma maneira terrível e irreversível, em que todos desejam algo que não estão neles. 

Christmas nos ensina, mas tantos outros dobram a nossa coluna::: Byron Bunch, por exemplo::::: que foge do mundo, das quais as tardes de sábado em que continua a trabalhar, enquanto os outros vão embora, são a prova inelutável. até que Lena Grove aparece. logo ela, límpida, tranquila, determinada, na sua longa travessia do Alabama ao Mississipi, à procura de Lucas Burch, de quem carrega um filho. Lena é mais uma das personagens que serve para alicerçar o mundo terrível de Faulkner, no qual todos, sem exceção, sofrem com a impossibilidade do encontro. onde não há paz nem descanso. nesse sentido, a história de Gail Hightower, ex-ministro da igreja, expulso pela igreja, expulso de sua comunidade, mas que se recusou a ir, e passa a vida isolado, sozinho em sua casa, como mais um dos párias desse longo e triste romance, prova o  quanto Faulkner escrevia para pôr em xeque a comunidade. para representá-la como o lócus de todo tipo de segregação - religiosa, racial, de gênero. Christmas, Lena, Byron, Lucas/Joe, Gail, Joanna Burden - e ainda uns tantos outros - estão à mercê de si mesmos. e dos outros. não importa que uma hora ou outra suas histórias se encontrem - e elas se encontram. nenhum pode ajudar um ao outro. nenhum pode ser ajudado. talvez Lena e Byron - mas o "momento final", narrado em off por um homem "de passagem", que lhes dá carona como prova de que a travessia continua, não diz exatamente isso, não abre, de fato, nenhum vão de esperança. e é por isso que são personagens inesquecíveis, que é um romance que só pode trazer um tipo de felicidade: o da leitura. todo o resto é desalento. 

e é por isso que não posso fazer nenhuma crítica. nenhuma análise. só posso agradecer por ter me dado o tempo de ler este livro em janeiro de 2015, depois de ter ido lá, fazer o que achei que deveria fazer, o que eu queria fazer. assim. simples assim. por isso, não é uma resenha de Luz em agosto. deve haver várias nesta rede. este texto é apenas para dizer que morri um pouco ao ler Luz em agosto. e que vivi um pouco mais - como deve ser a vida - ao ler Luz em agosto.  e isso só pode ser o prenúncio de um bom ano que se inicia. assim desejo.
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quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

oui, je suis charlie!



Eu sou Charlie, sim! Entendo em parte a comoção inicial das pessoas e também a desorientação posterior quando tomaram conhecimento do que era o Charlie Hebdo. No Brasil, a surpresa deve ser ainda mais geral, já que se existe um jornal semanal totalmente  dedicado ao humor desconheço completamente. E dá-lhe a turma do politicamente correto querendo se retratar por "ser Charlie". Afinal, Charlie era, em letras garrafais, ou melhor, em charges monumentais, escancaradamente politicamente incorreto. 

Adianto logo que olho para o discurso do humor com grande desconfiança. Nunca tive leveza suficiente para encarar certos discursos de humor. Por um acaso que só as férias podem proporcionar, nestes dias, assisti ao filme "Minha mãe é uma peça", passado na rede Globo. Disseram-me que é um filme de humor de bastante sucesso. E eu achei um horror. Para mim, uma forma caricata, rasa  e agressiva de "ler" as diferenças entre mães e filhos. Não achei nada engraçado, enquanto ouvia risadas ao meu redor. Mesmo o Porta dos fundos, que prometia ser a grande redenção do humor nacional, só me divertiu uma noite. Depois, comecei a achar tudo plastificado demais e abandonei de vez. Eu sou leitora - e assinante por achar que, assim, contribuo para a sua sobrevivência - das revistas Cult e Piauí, que têm tão poucas sessões de humor que é facilmente possível "pular" sem esforço algum e reportagens e dossiês longos e por vezes maçantes que constantemente me vejo perguntando quem como eu ainda os lê. Então, evidentemente, não tenho nenhuma afinidade com o humor do Charlie Hebdo

Entretanto, depois dos dias, tendo lido textos coerentes e emocionados, prós e contras, ao Charlie, continuo convicta de que, para mim, não há outra forma possível a não ser assinar embaixo no "Je suis Charlie". Desde o "11 de setembro" norte-americano, o uso da palavra "terror" serviu para um sem-fim de aberrações. E por conta disso, discordo totalmente do uso ideológico dessa palavra. Então, "ser Charlie", para mim, também não tem nada a ver com compactuar com o uso político indevido do atentado, que incita a "islamofobia". "Ser Charlie" é, para mim, ser contra a um tipo de violência superior a qualquer outra - aquela que tira a vida de sujeitos.

E sim, é ser contra um certo discurso religioso.   

Há cerca de quinze anos, decidi não seguir mais nenhuma religião. Nos anos anteriores a essa decisão, tentei participar ativamente de comunidades religiosas e, na verdade, foi nelas que perdi a crença. Na minha experiência, os líderes dessas comunidades abusavam enormemente de sua posição, tentando insuflar opiniões que, para mim, sempre foram verdadeiras aberrações da cultura do humano. O discurso separatista que eu pressentia ainda na minha adolescência está em todas as religiões e, parece-me, nos últimos anos, apenas se exacerba. E de modo geral, é um discurso que segrega, que confina todos em um mesmo lugar. O velho ditado "Diga-me com quem andas que te direi quem és" é, a meu ver, uma mal disfarçada forma de projeto de convívio tão somente entre os iguais,  abominando toda e qualquer diferença. 

Se a fé não tem absolutamente nada a ver com os atentados que acabaram de ocorrer, e não param de ocorrer todos os dias, em escalas menores, mas não menos virulentas, para mim, é inegável que os discursos religiosos carregados de ódio possuem um cota grande de responsabilidade por esses atentados contra a vida. Não todo discurso religioso, leiam bem. E sim os discursos religiosos carregados de ódio contra as diferenças. Não precisamos pensar no islamismo para aceitarmos como fato a proliferação desses discursos. Somos seres constituídos em sociedade. Parte do que somos é resultado da interação nas comunidades, dentre elas as comunidades religiosas, que têm um papel fundamental no modo como vivenciamos e refletimos sobre as experiências. Em síntese: o sujeito se constitui pelo discurso no interior das comunidades. E o que se ouve, e como se vai elaborar isso, é a diferença entre a fé e o fanatismo, num limite sempre indefinido, perigosamente indefinido, indecidível. E como não ser? Como participar de uma comunidade que tenta a todo custo nos provar que ela é "a comunidade eleita" sem pensar que as outras pessoas devem ser doutrinadas segundo nossos preceitos? Foi por não ter resposta para questões como estas que eu me afastei das comunidades religiosas, mas quero crer que não de um certo pensamento, ou certa reflexão, sobre um ser - para além de nós..

E não foram poucas as vezes que, de diferentes formas, me senti intimidada ao dizer que não tenho religião. Na maioria das vezes, as pessoas me olham como se eu fosse uma degenerada e vivesse em um antro de perdição. Que me atire a primeira pedra quem não me olhou com desconfiança - do amigo mais leal ao mais distante conhecido. Já passei por situações que pressenti que, se pudesse, a pessoa entregaria Poeminha ao conselho tutelar devido ao fato de não oferecermos a ele uma educação relacionada a uma religião específica. E se não oferecemos, é por que estou convicta de que o que ele precisa aprender é uma relação de respeito e cuidado com o outro - o outro como ele, em suas diferenças fundantes. Na escola, a professora, certa vez, disse que ele não podia brigar com os "coleguinhas", porque "papai do céu" iria castigá-lo. Fiquei pasma.  E tudo que pude fazer no papel de mãe, foi tentar desmistificar essa ideia, reafirmando que ele não podia bater, brigar, xingar uma pessoa, um colega, um amigo, por causa daquela pessoa - porque as pessoas merecem respeito e cuidado. Pedi para ele se colocar naquele lugar de quem foi xingado. Sim, sentir a pele do outro a partir da própria pele. Saber que dói, saber que há consequências que dizem respeito ao encontro com o outro, ao convívio com o outro - que é sempre um assombro de diferença. Evidentemente, faltava no discurso do Charlie essa fricção de pele em que se é atingido brutalmente pelo que o outro diz, faz e sente e, ao invés de querer reagir em contrariedade, saber simplesmente deixar esmaecer as diferenças em nome do respeito mútuo que a vivência em sociedade exige ou deveria exigir, mas aí isso ser razão para justificar o ataque, convenhamos, há uma diferença fundante e essencial. Para mim, é como admitir que o estupro existe porque as mulheres provocam. Porque, sim, todos foram mortos devido ao que escreviam e quem os matou deixou bem claro que o conflito era da ordem do pensamento religioso. Aceitar isso não significa admitir que todos os discursos religiosos são geradores de ódio, mas, sim, que alguns, incontestavelmente, o são.   

Nunca é apenas um indivíduo que puxa o gatilho. Somos feitos dos outros. E exércitos inteiros estão sendo formados sem esse mínimo cuidado. E não são apenas nos movimentos "terroristas" organizados, como nos querem fazer crer, que vemos o horror às diferenças Quando se mata alguém, não é a ideia que morre. Sai sangue é do corpo. É uma vida que se tira, se retira. As ideias continuarão todas aí. Três milhões de exemplares do "Charlie Hebdo" circularão hoje. Quem morreu? Gente, porque é gente que morre, é de gente que esguicha sangue. Enquanto as comunidades religiosas não derem conta de propagar uma ideia tão simples de respeito ao corpo do outro, haverá sempre esta falência comunitária. 

Então, se hoje já se levantam tantas vozes contra o discurso do Charlie, que se levante também vozes contra o discurso religioso fundamentalista. Quem vai proteger as mulheres? Quem vai proteger os homossexuais? Quem vai proteger as pessoa dos atos bárbaros que se realizam em nome da religião? Por que toda esta gente que agora exige de um "jornal irresponsável" a responsabilidade por seu discurso não faz o mesmo quando ouvem nas redes televisivas nacionais discursos reacionários contra os direitos das mulheres, contra a simples existência dos homossexuais? Quem sustenta hoje o discurso homofóbico? Quem faz lobby para não haver campanhas contra aids porque seria um atentado à família? Quem coloca a mulher numa posição de subserviência ao homem? Por que o discurso religioso é intocável, em nome da liberdade religiosa e o discurso do humor não poder sê-lo, em nome da liberdade de expressão, uma vez que tanto um quanto o outro são falhos e guardam em si uma enorme carga de incoerência e preconceitos?

Então, que me perdoe Leonardo Boff, a quem tenho verdadeira admiração, e muitos outros, mas eu sou Charlie, sim. Eu acho, sim, que os discursos religiosos fundamentalistas são perigosos e violentos, porque dão vazão e razão a atos violentos. E acho, sim, que eles matam mais gente, que massacram mais gente, que separam mais gente, do que qualquer discurso de humor. E como já disse, tive uma relação muito próxima com religiões. Tentei uma e outra e outra vez. E todas as vezes me espantei enormemente. Tenho um irmão padre. E tenho uma família que antes olhava de revés para esse meu irmão e agora que ele é institucionalmente padre afirma amá-lo desde sempre - e credito isso, sem ironia, à força da ideia de religião. Tenho uma irmã evangélica. Uma irmã linda, de coração maior que o mundo. Então, cada vez que me ponho a pensar sobre essa questão, não mapeio nada pela intolerância. É mesmo desconfiança. Guardo em mim a ideia de que necessitamos de um ser, uma força, uma essência desconhecida para nós corporalmente, mas escolhi não buscar esse ser em nenhum espaço físico, nenhuma comunidade, por temer essa indecidibilidade entre a fé e o fanatismo.

Por convicção intelectual, penso que é possível - e necessário - creditar uma certa irresponsabilidade aos discursos. Que certos discursos podem e devem estar livres das ordens institucionais. Que podem ser virulentos e contraditórios, mas justamente por serem contraditórios que sejam compreendidos em sua contradição. Que se duvide deles. Assim, diante de uma charge de "mau gosto", que se saiba virar as costas. Diante de um discurso religioso extremista, que se saiba perceber o extremismo - e também virar as costas. 

É assim, contra o gesto, contra o sangue que sai dos corpos, que eu sou Charlie. Que eu sou todo e qualquer homossexual morto por intolerância religiosa. Que eu sou toda e qualquer mulher intimidada e subserviente ao homem. Que eu sou todo massacre como o da Nigéria - obscurecido pelo da França e usado como exemplo para não ser Charlie. Que eu sou contra a pena de morte.

E apesar de tudo, penso que é vital perdoar o imperdoável:::: como as charges, como o ataque à redação do Charlie. Perdoar o imperdoável é abrir a via que barra a intolerância, o preconceito, a miséria humana.
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quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

on est tous charlie

pensei em escrever destes dias. mas os dias - para além da minha história - estão tão tristes. esquecer o homem, cada um, em nome de qual fé é difícil de entender. que todos possamos ser contra. que hoje todos sejamos charlie hebdo - para que não seja essa a nossa herança.



::: Jean Jullien
 


::: Martin Vidberg

... Francisco J. Olea



::: Buzzfeed

::: Bernardo Elich