sábado, 18 de julho de 2015

tia Elita - e o mundo que se extinguiu.




ontem, tia elita se foi - na difícil travessia da qual é possível falar apenas por eufemismos. esta maldita palavra impronunciável. foi assim um dia triste, muito triste. grande de memórias. tia elita era a última sobrevivente dos meus velhos. daqueles que, mais de uma vez, falei aqui. daqueles que moldaram meu jeito de ser. tia Elita. minha tia-avó. que sem ter tido filhos foi a mãe de um tanto de nós. não. não era maternal. era companheira. era uma de nós. tinha humor, muito humor, mesmo sendo rabugenta; tinha umas tiradas incríveis, uma ironia inteligente que era um verdadeiro aprendizado. ouvia, sabia ouvir. era tão inteligente, tão única, tão maravilhosa. tudo advinha da sua maneira ímpar de ver o mundo sem nunca se afastar de uma ética para a vida. mesmo quando pôde, mesmo quando foi tentada a ser a senhora da casa, preferiu abandoná-la, cuidando da memória de sua irmã, de quem era o seu oposto:::: vó. vó e sua delicadeza adquirida na meninice da velhice.  preferiu abandonar a sua vida inteira a ocupar o lugar da outra --- sabem o que é ter sido testemunha - ainda que já distante - deste gesto? é ter para sempre impresso na pele esse gesto raro.   

tia Elita era uma mulher altiva. é assim que lembro dela. magra, com seus cabelos sempre curtos. elegante com suas saias e blusas para fora das saias. não se via ela desarrumada no dia a dia. herança do seu ser-costureira. a vida toda na máquina de costura. a vida toda que se extinguiu há um par de anos. anos em que ela viu todos se irem. os seus que nasceram junto com ela. e nós, que nascemos depois, mas também a deixamos. 

tia Elita foi a primeira hipocondríaca que eu conheci - e por muitos anos e por tantas razões, herdei essa hipocondria. e agora, que ela foi a última a ir, me vem um choro triste, mas quase um sorriso por saber que a hipocondríaca foi a última a sucumbir. e a única fumante. manaMácia, ontem, para contar uma cena ainda sua, me contou que ela havia perguntado há poucas horas antes de ir quando poderia fumar novamente. e quando lhe responderam que Liduína se encarregaria de perguntar ao médico, ela vaticinou: "então, não vou fumar mais, porque Liduína não vai deixar". era assim. ela nos conhecia. sabia de nós. sempre soube. queria muito ter tirado uma foto dela com seu inseparável cigarro. aquela baforada na calçada. antes, em pé, com a mão na cintura a contar ou a escutar alguma história. e depois, na cadeira de balanço, no limiar da calçada.

tia Elita tinha 91 anos. achei que, por isso, não seria preciso fazer seu luto. há poucos dias havia sido condenada a ficar na cama. e ninguém queria imaginá-la nessa condição. chorei e me sentei de novo nesta cadeira que agora escrevo. mas logo tive que abandoná-la. não. para mim, não era natural. não era uma morte qualquer. todo um mundo que eu tanto prezo havia acabado de se consumir. a tarde foi um longo hiato.  e hoje pela manhã amaldiçoei a minha vida. presa numa reunião, vi que construí minha vida a tal modo que não posso enterrar meus mortos. e para quê? 

tia Elita me diria, como disse tantas vezes: "eh, Cláudia, é você que tem que saber". o que eu tenho que saber é ainda a minha nebulosa, décadas depois. mas o que sei mesmo, nunca duvidei, é que minha vida teria sido terrível se eles não tivessem existido. pois nunca na vida precisamos tanto de pessoas como a idade em que tudo é um grande dilaceramento. e ter pessoas que nos estendem a mão e que chegam até nós como pessoas íntegras, boas, é só o que pode nos salvar.é só um gesto - e é tanto. 

eles se foram não porque foram cedo demais. mas porque eu os conheci quando já estavam aqui há muito tempo. e com isso puderam espalhar em mim a sabedoria de uma vida toda. pensar neles - minha vó Adauta, meu avô Tavarim, minha tia Mariah, meu tio Delbrandro, minha tia Expedita, meu tio Sebastião, meu tio Manuel, minha tia Elita (todos meus tios-avós) - me dá uma sensação maravilhosa de pertença a uma linhagem que soube viver com dignidade, que soube ter dignidade e que sem alarde soube amar - no que o amor tem de mais inteiro::::: saber estar na diferença. não denegrir. não acusar. não jogar uns contra os outros. 

(lembrei agora de uma história. uma história triste. menina sem nada na vida cometi um erro. e não ouvi deles mais do que sussurros. dela, sobretudo. apaziguou tudo. deve ter posto na conta das doidices de menina. depois, meu pai, desgostoso, contou para minha mãe. e aí o alarde foi extemporâneo. apanhei na cozinha entre alaridos e soberbas, enquanto pensava na dignidade daquela de quem eu havia, de fato, usurpado o que era dela. saberia ela a razão? não tenho dúvida. sempre pressentiu o abandono a que eu era submetida).  

(e de uma história alegre. dormíamos no mesmo quarto por vários meses. anos, talvez. e eu via o seu ritual de dormir. vestir a camisola, amarrar lenço na cabeça, colocar o penico embaixo da cama, fechar as portas que ligavam ao outro quarto e a sala de jantar. e me ouvir a perguntar no escuro - da rede: "tia Elita, já dormiu?". E ela responder: "ainda não, porque você não me deixa dormir com suas perguntas". então, o silêncio. até que ela dizia: "dorme, bode velho, que amanhã você tem que acordar cedo senão sua mãe te pega". eu dormia, então, apaziguada em sua companhia.)

nunca. nunca esquecer essas lições. e se não posso ser mais do que uma pálida figura de tamanhas sabedorias, que eu as carregue comigo, que estejam comigo, nos momentos em que não souber nada fazer - para ali encontrar o caminho. 
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ela me chamava de "bode velho" por causa dos fungados e espirros - eu, toda alergia. 
 
a qualidade das fotos é péssima. mas me faz lembrar::: ela tocou o Poeminha. pôs sua mão grande sobre ele. como pôs sobre mim tantas vezes e de tantas formas.