terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Respeite minha história - o projeto

O projeto "Respeite minha história" surgiu após um momento de muita decepção institucional. mas eu não deveria começar assim. --- de novo::: o projeto "Respeite minha história" surgiu a partir das tantas conversas de todos os dias que eu e Lilian travamos. costumo dizer que Lílian tem dez ideias a cada segundo. e assim como vêm, vão. mas algumas viram corpo, gestos, formas e alegrias. tem sido assim o "Respeite".

o "Respeite" é sobre gente. não as gentes que utilizam uma frase como esta de maneira soberba, como forma de espetacularização e para silenciar qualquer contestação ao presente da própria história. é sobre gente que, apesar de uma suposta evidência, ainda é pouco percebida como sujeito que é um - único em suas vivências.

a nossa ideia partiu desta inquietação --- aproximar-se das pessoas. ouvi-las. criar uma ponte mínima para saber quem são elas, o que pensam, o que desejam. não queríamos pensar nelas como um coletivo que decide vivenciar uma ideia que, como vimos no desenrolar dos dias, expunha-os de uma maneira violenta e complexa. por isso, não é uma narrativa, dentre tantas possíveis, sobre os dias da ocupação dos estudantes na UFSB. é sobre as pessoas que estão na ocupação.

e quantos afetos já nos deslocaram desde então --- chegar perto do outro é perigoso. muito. sentir o outro, a dor do outro, a alegria do outro, a vida do outro, é um revirar. choramos, rimos, ficamos nervosas, ansiosas. e desorganizamos nossos dias, nossas concepções, nossas certezas. e por outro lado, não queríamos "fichar" nada, marcar identidades, afirmar o "isto" de cada pessoa. é por isso que os textos que os apresentam têm um quê  maneirista. são uma interpretação, uma leitura sobre a escuta que não quer, de fato, demarcar uma leitura, pois afirmar o "é isto" nos parece uma dessingularização, uma forma de percorrer um ideal, no caso, de jovens que têm coragem, determinação, força, para estarem ali na ocupação. sim, eles são tudo isso. mas são muitos outros. e o são agora. podem não ser amanhã. ou nem mesmo serem hoje o que pensam e dizem que são. e esta aí a beleza.
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há muitas formas de nos salvarmos. Poeminha me salva todos os dias de mim mesma.  também me salvam os gostos, o amor, os afetos. "Respeite" me salvou muitas vezes no último mês. no espaço mais árido, de maior tristeza e desgosto que é hoje o meu trabalho, encontrei nestas histórias momentos lindos de respiro. estas pessoas têm me feito, por horas a fios, me ouvir. não o que sou hoje. mas o que, hoje, penso ter sido na época da minha graduação. não é identificação propriamente dita. mais de vinte anos me separam da maioria das pessoas que deram o depoimento. então, estou diante do "outro". não sou eu. não são o que eu fui. são outros. são a diferença. e para encontrar essa diferença, naquilo que me deixa mais próxima deles, é que lembro de mim. eram tempos outros também. 
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se eu fosse contar minha história, talvez eu começasse deste jeito:


comecei a graduação oprimida pela minha própria história. era casada. e era infeliz. muito infeliz. tive a sorte de encontrar Marinalva, que me salvou deste lugar. havia em mim uma insegurança visceral. eu não acreditava em nada. em nenhuma das minhas potências. só me sabia leitora. e depois, eu já me fiz solteira. e muito feliz. escondi parte da insegurança numa arrogância, às vezes burra, outras, muito certeira. aprendi a brigar pelas minhas crenças - e nunca mais deixei de brigar. encontrei um novo amor. que depois deixou de ser amor, mas durou o tempo suficiente para me curar de um tanto de feridas. foi ali na graduação que projetei minha profissão, da qual não desisti nem quando já havia adquirido uma outra profissão estável. foi tudo ali, parece-me agora. o porvir começou ali. 

foi também ali que comecei a discursivizar minha história. foi ali que comecei a me dizer nordestina, cearense, filha de pai carroceiro, mãe professora brava e difícil, mas inteira em mim. foi ali. penso que foi. mas raramente, penso, minha história serve para enaltecer o que hoje sou. doutora - que não pode aplicar injeção, como disse meu padrinho, uma das minhas tantas histórias que me constituem. doutora em uma inutilidade chamada literatura. 

eu saco da cartola minha história, na maioria das vezes, para uma espécie de justificativa do injustificável. justifico meus piores defeitos ou, pelo menos, os que me dão mais trabalho. justifico meu "olho maior do que a barriga" sacando um "eu já passei fome". justifico minhas gastanças com um "eu já fui seis meses para a escola com um sapato furado no dedão do pé". nem eu mesma levo totalmente a sério essas associações que, no entanto, me constituem através dos meus dizeres. só quando digo que meu pai foi a vida inteiro carroceiro é que imponho uma certa gravidade. quando comecei a dizer, eu queria expor, de forma premeditada, o que, na época, eu pensava que, de maneira hipócrita, muitos queriam esconder, que era uma vida de pobreza. isso rolava muito em Porto Velho, uma cidade constituída por pessoas que vinham de fora. em sua maioria, fugindo da pobreza do Nordeste. Em Porto Velho, todos viravam filho de fazendeiros --- eu mesma, filha de herdeiro de grandes partes de terras que, no entanto, não valiam nada e de lá nada brotava. foi nesse contexto que eu virei filha de carroceiro. agradava-me chocar as pessoas quando eu dizia em tom quase natural. os engravatados todos do Tribunal de Justiça, onde eu trabalhava, já com um salário mais alto do que boa parte de minha família até então, não sabiam nem como agir de tão nervosos que ficavam. até hoje, percebo constrangimento. um não saber como olhar no olho. e eu gargalho, mistifico, relativizo. mas reafirmo. sim, nordestina. sim, cangaceira, boa de briga. sim, terna às vezes, como meu pai um dia foi. sim, sinceridade à prova de qualquer amizade. sim, teimosa. sim, egoísta. sim, terra seca e árida. e úmida, como nos dias raros de inverno. eu, letra minúscula.

estou assim -- grávida de histórias. todas elas batendo em mim, ora como chicote, ora como vento. 

Merci, merci, a todos!   

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1 Palavrinhas:

Unknown disse...

Lindo e emocionante!