sábado, 31 de maio de 2014

clichê - ou amor.





em paris, o risco do clichê escorre, pois todos querem uma pose no local exato, um momento único. mas qual será a pose exata diante da torre eiffel. qual a cara que convence diante de uma escultura de giacometti ou, melhor, diante da monalisa? pensava nessas coisas enquanto andava sobre a ponte em que milhares de casais deixaram ali - e continuam deixando - seus cadeados. fiquei observando um casal prender um cadeado num outro cadeado - já que impossível alcançar as grades da ponte, tamanho o acúmulo. em seguida, eles se benzeram, encerrando tudo com um longo beijo. depois, vi um casal discutindo, e a mulher chorava muito, enquanto o homem dizia: "você me culpa sempre, é sempre minha culpa. e não é. não é". acúmulo de clichês, pensei com um sorriso sarcástico, e depois um sorriso triste, no canto da boca. mas o certo é que fiquei por ali observando aqueles cadeados, tentando entender o que significavam - e me vi perguntando se não faria o mesmo. não tenho grandes medos dos clichês. daí me questionar o que esse diz sobre nosso desejo de amor - um amor grande o suficiente que faça cessar o medo dos clichês para poder repeti-los livremente - e à exaustão. 

tenho não um ponto de vista. mas sei que algo em mim não deseja mais viajar sozinha, embora a sensação de alegria continue intacta - e o pensamento de que estar sozinha numa viagem é o estado perfeito. junto com isso, o tempo todo sou atravessada pela lembrança de meus dois "homens", como se meus olhos que veem desejassem estar acompanhados. um clichê. mas um clichê que lateja. sei que atrapalhariam este estado de alegria que somente a contemplação pode nos dar, mas me dariam tantos outros momentos. poderia mesmo ser um deste - um cadeado na mão, com nossos nomes e a busca por um lugar. um lugar qualquer para fazer com que nossa história permaneça em algum lugar - por mais besta que seja. 
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quinta-feira, 22 de maio de 2014

Bill Viola e Karim Aïnouz

se eu tivesse que escolher entre as experiências culturais mais marcantes dos últimos vinte e cinco dias - e foram muitas -, eu destacaria três. sobre uma, pretendo falar depois, quando "resgatar" minhas fotos que, após o assalto, estão a quilômetros daqui, mais exatamente com Mariamada, que, peloscéus, as havia transferido um dia antes para seu computador.

desde que eu vi o filme "Praia do futuro", do Karim Aïnouz, sábado passado, constantemente, algumas das cenas retornam na minha parca memória. digo o mesmo sobre algumas das imagens da exposição do videoartista Bill Viola, no Grand Palais, em Paris. Ao contrário de Karim, eu não conhecia nada de Bill Viola. fui levada pelas mãos da minha ruiva Marie. ficamos umas seis horas nos espaços monumentais do Grand Palais, sem sentirmos o tempo passar. na penumbra que os vídeos exigem. as sensações foram tantas, que - mais uma vez - me será impossível dizê-las corretamente.

porém, após ver o filme de Karim, compreendi melhor o que tanto me impressionou no trabalho desse artista até então desconhecido para mim (mundialmente famoso, explico para minha pobre ignorância). e é simples [e Marie já havia me falado]::: de algum modo, o que vemos tem que nos dizer algo. não falo de beleza propriamente dita, embora eu possa dizer que são belas as imagens dos dois trabalhos. nunca estou falando apenas de beleza. nem apenas de emoção. ou de alguma associação com o que penso ou vivo ou desejo. é um pouco disso tudo, mas é primordialmente outra coisa que tem a ver com o arrancar-me da indiferença e instalar a fórceps uma espécie de incômodo que me obriga a pensar a partir do que vi.

foi assim nessas experiências. Bill Viola, primeiro, exige de nós outra relação com o tempo e aceitamos essa exigência quase sem nenhuma resistência. em boa parte dos vídeos quase nada acontece, mas é por este quase nada que permanecemos à espera. em estado de espera. dez, quinze ou trinta e cinco minutos para cada vídeo de cenas aparentemente imóveis. uma conversa entre mãe e filho de uns quatro anos, diante de quatro tvs que reproduziam lentamente o cotidiano de uma mulher, explica bem esse movimento. a criança pergunta por que nada acontece e a mãe responde: “acontece, sim, preste atenção. veja como as imagens mudam lentamente”. essa atenção demanda um outro tempo. e é nesse outro tempo que a vida requer um pensamento sobre a vida e a morte, sobre a passagem do tempo [e as perdas que vêm com ela]. num mundo quase sempre aquático ou subaquático, vemos e intuímos a morte, o além da morte, os encontros quase sempre fugazes; como no vídeo em que dois homens andam paralelamente numa mesma direção e se encontram por meros instantes para logo em seguida se separarem. ou nos véus de imagens, em que de um lado vemos um homem perdido numa floresta e, de outro, uma mulher, até que as imagens se fundem para vermos os dois juntos por poucos instantes, até a separação. ou no resgate de um afogado que dá errado, em que vemos uma mulher em pé, inconsolável, os gestos lentos dos bombeiros, até que a chuva vem e todos se vão. o afogado, então, ascende em direção ao infinito. é também sobre o mistério do além-vida um dos vídeos mais bonitos, o Ascensão de Tristão. nesse mundo, é quase tudo frágil e violento, diante da iminência do que acontece e está para acontecer.

O que Praia do futuro faz  não é diferente. o mundo também é aquático ou quase. e também é sobre o tempo e o que acontece no seu decorrer. é sobre afeto e perda - o que se explica e o que não tem explicação. é sobre a fragilidade diante do que ocorre e a violência das nossas decisões. e é sobre o amor. até karim diz que o filme não explica muito. e eu concordo. mas para mim Donato se torna um estrangeiro, tendo em seu país uma família para sustentar e um emprego, por amor a Konrad. e é por amor que seu irmão Airton vai atrás dele muitos anos depois. E é também por amor que Konrad age muito antes de Donato saber fazê-lo.

 jesuscristinho, é bonito demais. dá um nó nas tripas. uma vontade de chorar, embora nada tenha de melodramático. e a música vem no momento exato, mesmo quando parece clichê. e o final ainda nos dá outra imagem sobre o mar. é o mar a névoa da Alemanha, é o que vemos. e como em Bill Viola, fiquei imersa num tanto de emoções, de dizeres, de não dizeres. fiquei pensando que nada precisa ser pela violência. contra os discursos da intransigência, do preconceito, cada vez mais desavergonhados, que a outra via seja a poesia, a imagem. as imagens belas do encontro entre Konrad e Donato - Wagner Moura mais uma vez soberbo -, as cenas de sexo e de nudez infinitamente fortes entre os dois. são imagens não apenas magnificamente fotografadas, mas exigentes, como disse Didi-Huberman na conversa que assisti dele. exigem de nós outra forma de contemplação, outra forma de pensamento. e de maneira simples. muito simples.
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como tudo que é indizível.



domingo, 11 de maio de 2014

Paris, para dizer

(fotos após o texto).
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vou ter que dispersar ainda mais o tempo. tenho vontade de escrever sobre a Croácia, onde estive por uma semana. lá, sem nenhum tempo para a internet. os dias foram cheios, intensos e bonitos. a hospitalidade foi absoluta, generosa e rara. contarei depois, promessa.

dispersar o tempo porque agora estou em Paris, na casa de minha amiga Marie, e tenho muita vontade de escrever. desde o início, esta viagem foi construída sob o signo da amizade, do encontro. fui a Croácia por causa de convite feito pelo Valdir, que há muito tempo espalha sua generosidade sobre nós, fazendo com que sejamos convidados onde jamais nos chamariam sem a confianca que têm nele. e fui a Croácia com Mariamada, minha amiga e companheira de viagem de toda uma vida. E depois, ia encontrar meu irmão, que mora na Itália, em Paris, a cidade que tanto amo e onde mora Marie. tudo tão bonito, que custei a acreditar. mas tudo foi se fazendo aos poucos. e agora, eis-me aqui.

não deu certo mano vir. finalmente, seu caminho caminha, por mais que ele demore a ver. e eu fui assaltada assim que pus os pés em Paris, na volta da Croácia. levaram minha máquina fotográfica, a lente 50mm (e meu fetiche de aprender finalmente um pouco da técnica da fotografia), o tablet do Tatupai, e as tres formigas que lá habitavam, minha lapiseira de cinco anos... e sim! as coisas são coisas, mas são também nossa história, e por isso dói um pouco. ainda mais com meu histórico. não é fácil ter sido assaltada já nove vezes. não conheco ninguém que tenha ao menos se aproximado deste número!! mariamada teve que ser o suporte do meu desespero nas horas iniciais. o ladrão, assim, levou também nosso tempo e nossa alegria.

mas o que há de intrigante e belo no tempo é que ele passa. e traz a paz para continuar. o sorriso outra vez. os encontros se sobressaem. o meu encontro com Marie. meu encontro com Paris. na tarde que nos sobrou, eu e Mariamada saímos caminhando sem rumo, mas em volta dos lugares que mais amo por aqui. As seis da tarde, éramos mais umas sentadas no calcadão do Beaubourg, admirando esta estranha construcão de ferros e canos onde passei longas tardes, ora estudando, ora fugindo do estudo, mas aprendendo uma porção de coisas sobre a vida e meus gostos. foi bonito. daquela beleza que só a amizade pode explicar.

e foi assim que, na segunda, Mariamada tendo partido, como uma figura de novo triste, saí novamente caminhando rumo ao Beaubourg. saí de lá apenas as 23h, cansada, mas feliz. caminhei longas horas pelas salas de arte moderna, agora completamente reorganizadas, com uma nova maneira que me pareceu querer ser mais justa com a arte de todo o mundo. uma tentativa de fuga do que facilmente passamos a chamar - como que em forma de denúncia - de eurocentrismo. os especialistas devem dizer que ainda é insuficiente. eu, fragilizada, amadora, emocionei-me diversas vezes. ora por reencontrar um quadro, ora por encontrar algum que me parecia inimaginável antes estar lá - como eu na Croácia há apenas alguns dias.

na outra sala, uma belíssima exposicão de Cartier-Bresson. uma exposição que segue a linha do tempo e, por isso mesmo, explicita os diversos momentos deste grande fotógrafo. amadora, pensei que a forma, nele, teve muito mais longevidade do que seus interesses, que mudaram no decorrer do tempo.

desde terça, estou aqui na Marie. espero dizer tudo com tempo. os dias têm sido bonitos, embora chova vez ou outra lá fora. sempre soube que seria bom voltar em Paris. E que, de algum modo, eu me sentiria em casa. sim, em casa. não exatamente porque morei aqui, mas porque aqui reconheço tudo que gosto. quanto mais ando e vejo, mais tenho a certeza de que este é o caminho para que a vida tenha realmente sentido, para que não sejamos devorados pelos dias, pelas coisas vãs que mancham os dias.
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