sábado, 18 de março de 2017

sobre os dias em que meu irmão não vive mais



“É que, quando alguém morre, pensamos que já ficou tarde para qualquer coisa, para tudo – ainda mais esperá-lo -, e nos limitamos a dar baixa nessa pessoa. Assim também com nossos achegados, embora nos custe muito mais e os choremos, e sua imagem nos acompanhe na mente quando caminhamos pelas ruas ou em casa, e acreditemos por muito tempo que não vamos nos acostumar. Mas desde o início sabemos – desde que morrem - que já devemos contar com eles, nem para a mais ínfima das coisas, para um telefonema trivial ou uma pergunta boba (“Lembrou de deixar a chave do carro?”, “Que horas mesmo as crianças saíam hoje?”), só por perguntar, por nada. Nada é nada. Na realidade, é incompreensível, porque supõe ter certezas, e isso vai de encontro à nossa natureza: a certeza de que alguém não vai mais vir, nem falar, nem dar um passo, nunca mais – nem para se aproximar nem para se afastar -, nem olhar para trás, nem desviar a vista. Não sei como resistimos a isso, nem como nos recuperamos. Não sei como por vezes nos esquecemos, quando o tempo já passou e nos afastou deles, que ficaram parados”
Javier Marías, no início de Os enamoramentos.


Sábado mesmo era essa a minha questão, o meu dizer. Eu só não sabia dizer com a mesma justeza de Javíer Marías, até que anteontem à noite, às 4h da manhã, insone, encontrei-as – as palavras justas. Pois é assim que me sinto desde que meu irmão morreu. Fico até mesmo abismada quando as pessoas, para me consolar, se centram na minha pessoa – o que seria perfeitamente coerente, dado o fato de ser eu que ali estou, teoricamente para ser consolada. Mas não me parece coerente, porque não foi a minha vida que parou, que acabou ali. E minha dor parece tão sem importância para mim – sim, porque essa dor pode ter inúmeros sinônimos, mas no fim termina nisto mesmo::: em dor – reside nisto: no fato de saber que meu irmão não existe mais. 

O que me dói é que meu irmão não está mais vivo. Não tem nada a ver comigo, com a minha vida. A minha vida não está parada naquele exato instante em que ele decide descer em um poço sem proteção alguma. Foi a dele, com suas alegrias e tristezas e dificuldades, que estancou. Ele ter existido e eu fazer com que ele exista na minha memória me parece pouco, quase nada, na inteireza que contém uma vida. É por isso que não quero ser consolada, e não quero nem vou tomar nenhum remédio para o meu sono que não vem mais. Prefiro pensar como sempre fiz com a insônia que me habitava até antes de Poeminha nascer: fazer as pazes com ela. Noite dessas, perguntei diretamente ao meu irmão porque ele não me deixava dormir, uma vez que a minha vida, nos dias, parecia seguir seu rumo comezinho e mais prosaico: cuidar da casa, trabalhar na universidade, juntar os poucos amigos no fim de semana para beber umas cervejas – agora só acrescentada por uma lerdeza advinda das noites mal dormidas. E essa pergunta me deu um alívio, porque de imediato eu soube a resposta e achei justa. Dei mesmo um sorriso, porque sei que meu irmão sorriria dessas complicações de gente metida a leitora; ele, que nunca deve ter terminado um livro por inteiro. 

--- Porque eu não quero ficar parada. Ainda que a vida agora pareça uma bosta, que nada me faça realmente feliz, ficar parada parece demasiado um gesto impróprio para quem quer tanto que o seu irmão continuasse nessa vida. Eu não tenho nenhuma inveja das pessoas que se consolam por outras vias, porque eu ainda estou num tempo – sim, porque há tempos de luto; eu já vivi e li o suficiente para saber disso – que pensa nessa dor como uma maneira de fazer com que ele esteja próximo de mim. Agora -- que a presença daqueles dias infindos de velá-lo e enterrá-lo ainda me queimam como uma úlcera mal cuidada. É somente agora que ainda há pouco ele estava vivo::: que vivia com Rutinha, que morava num sítio onde era preciso atravessar de barco, que havia comprado uma moto e matava Maneca de preocupação quando ela pensava que ele podia se acidentar; somente há pouco ele atravessava o rio e vinha na cidade telefonar para os seus, somente há pouco ele deixava os festejos de ano-novo para trás para poder cuidar de seus cachorros. Somente há pouco ele desejava ter dinheiro para tirar a carta de motorista e comprar um carrinho velho que fosse – e quem sabe levar energia elétrica para suas terras. Este "há pouco" agora é "nunca mais".

Dia desses, eu me peguei perguntando por que meu irmão morreu, como se devesse existir uma razão para tanto. No fundo, é que eu quero que não tenha sido em vão – por mais que eu saiba que morrer é de todo dia. Que a razão é a que todos sabemos.  Me danei a ler livros nos horários mais doidos, nas brechas mais improváveis, como se ele pudesse me ver e saber que eu, viva, estava fazendo algo que eu considerava mais importante do que todos os afazeres idiotas que parecem consumir minha vida de dona de casa e professora universitária com seus mil formulários e mil reuniões a frequentar. 

E ainda assim, eu consigo rir de mim mesma [meu olho pestaneja involuntariamente seguidas vezes e alguém me diz que é sinal de estresse, mas eu ignoro, porque não quero sentir pena de mim e não quero que ninguém sinta. Não fui eu que morri, caralho! Foi meu irmão. Era ele que, naquele instante da morte, precisava que ela se demorasse mais um bocado]. Sorrio porque antecipo o riso entre envergonhado e incrédulo que meu irmão sabia dar tão bem. Porque meu irmão acharia essa minha vida de leitura bem besta. E ficaria puto se soubesse que eu estava buscando um sentido na sua morte na minha própria vida. Mas eu diria a ele que nada mais me cabe. Nada mais me cabe, nesse momento, do que encontrar saídas para a vida que criei para mim. Ou que me veio sem que eu soubesse como estancá-la, como modificá-la, como fazê-la à semelhança dos meus desejos.   

(eu lembro apenas de uma única briga grande que tive com meu irmão. Assim como lembro da única vez em que meu pai me bateu, ainda menina. Ou seja, uma exceção --- todo o resto foi de contemplação, de alheamento, de comunhão.  Era uma noite de festa e ele se desentendeu com sua companheira. Falou palavras impróprias. Houve gritos. E eu, mulher, fiquei do lado da sua mulher. Acho que lhe dei um empurrão e uns gritos no corredor estreito da casa da Maneca, para que ele soubesse parar, voltar à razão. Ai, como eu era corajosa e como era idiota. E vaticinei: “Na minha frente, você não vai tratar mal uma mulher”. Depois, esta mulher tirou tudo que ele tinha. Era pouco, mas era dele; era ele que havia escavado tudo com suas mãos e seu suor. Meu irmão, atônito, tudo aceitou. Só queria ir embora. Recomeçar. Encontrar outro alguém que não lhe colocasse em risco. Quando perguntamos se ele deixaria tudo para trás, ele disse que sim. Que aquilo não era nada --- e era tão bonito::: todas aquelas hortas, aquelas plantas, aquela terra). E nós, eu e Maneca, aceitamos o seu desistir. E ele se foi. E depois voltou. E depois recomeçou ainda e ainda. Essas mulheres --- poucas e tão parecidas quanto à idade; sempre mais velhas que ele e quase sempre mulheres que facilmente se amava e se admirava. As do meu irmão. Era meu irmão que dizia Rutinha. "Então, pronto"::: Rutinha.

- Ainda que houvesse mais brigas com meu irmão, ainda que, como hoje acontece com meu outro irmão, houvesse silêncio e desentendimento, eu ia querer que ele estivesse vivo. Vivo! Porque nada mais acontece depois da morte. Depois da morte é este vazio imenso. Infinito. Para sempre. 

Tenho mais três irmãs. E mais uma, que não me é suficientemente irmã porque veio bem depois de mim e nunca convivi com ela. E mais um irmão, que eu pensava tão próximo, tão ao lado dele. E tão ao meu lado. Essas irmãs foram sempre meu bote, minhas salva-vidas, meu lugar no mundo.  Eu me reconheço nelas, embora eu seja tão diferente. Criei a fantasia que sou super amada por elas; e acho que sou. pelo menos, nunca desmentiram essa minha fantasia. Para uma, nas horas de aperto, tenho coragem de pegar uma grana emprestada, mas aviso logo que não aceito sermão; para outra, não tenho coragem, porque acho que ela me diria não. Então, não quero que ela passe por esse vexame de me dizer não. Acho que conheço cada uma delas. E no fundo, torço para que me conheçam. E me amem assim como eu sou.

Levei um susto com meu outro irmão há uns dois anos. Acho que não tinha elementos suficientes para entender o que ele fez e o quanto era importante para ele, e vacilei, mas depois ele não soube me perdoar pelo vacilo. E me apagou, como se eu fosse um nada, uma não-irmã, porque o sangue. Talvez eu achasse que todos os anos em que estive ao seu lado, em sua defesa, me fizesse mais irmã do que todas as irmãs do mundo. Porque antes de ele ser a representação de Deus na terra, ele esteve sozinho muitas vezes. Quando vejo toda minha família lhe pedir algum tipo de bênção só me vem uma música de Chico César na mente:::. É porque tenho as memórias de antes. Aquelas que ninguém quer lembrar porque todo mundo quer ser bom. E tenho as boas também. Lembro de nossos tantos encontros por este Brasil, cheios de risos. Nós dois, eu e ele e seu senso de direção prodigioso --- tenho ainda todas as louças que ele me ajudou a comprar quando voltei de Paris e não queria mais comer em louças feias e enferrujadas. Eu que não acredito em representação de Deus na terra. E agora, ele deixou de ser meu irmão; é o que diz minha mãe. "Vocês perderam seu único irmão; ainda bem que eu tenho ainda um outro filho". Eu credito essa frase da minha mãe a dor intensa que ela sentia no momento, apesar de ela me doer como o quê; se era esse o propósito. Se eu tivesse perdido meu filho, o Poeminha, talvez eu me agarrasse em qualquer coisa para suportar essa imensa dor. Talvez eu matasse, ou odiasse, um tanto de gente em mim. Porque não vou mentir ---- odiei a mim mesma por estar viva, quando vi meu irmão na porra daquele caixão. Mas agora eu vivo os dias infindos de tristes: perdi meu irmão e nada me consola quanto a isso. E tenho um outro, ainda que ele agora me diga não.  E tenho uma mãe. Um pai. Um filho. E quatro irmãs. E um companheiro. E um tanto de amigos. Amigas, sobretudo. Mas nada nada ninguém ninguém substitui este meu irmão morto. É ele agora que me perfura como um ferro de marcar boi [e sim, essa é uma meria, numa manhã muito distante; meu padrinho marcando os bois, meu irmão segurando as cordas e eu, de olhos arregalados, fingindo que ajudava em alguma coisa, tão menina, às 5h da manhã, quando a Fazenda Lobo já estava acordada há tempos]; como aquelas dores do guillain-barré. E quando esta dor dos infernos passar, ainda será dele que me lembrarei --- do meu irmão que me ensinou a nadar, do meu irmão que me abraçava me levantando do chão, do meu irmão que convivi muito menos do que desejo agora, do meu irmão meu irmão meu irmão Fernando. só ele. só ele. ninguém mais no lugar dele. todos estão em mim. mas nenhum substitui um outro. são todos únicos. e agora, sofro e sofro porque não estão comigo cada um. e ele, sobretudo. agora, ele, sobretudo. 

E não. Ninguém agora me faz feliz. Porque ainda não posso esquecer meu irmão que morreu. Não posso. Penso nele a cada segundo. Não pensava antes, quando achava que ele estava bem, que ele estava vivo. Mas, apesar de tudo, eu quero dar provas de que estou viva. Não a ele. Mas a mim. Meu irmão morreu na porra de um poço e eu nunca vou saber exatamente como ele morreu. O laudo diz que ele morreu afogado. E uns três meses antes de ele morrer, eu comecei a ter aulas de natação porque havia decidido que ia aprender a nadar de verdade; porque havia aprendido a nadar, às escondidas, com ele e com meu primo Ricardo no açude da Fazenda Lobo, quando éramos crianças e éramos invísiveis para os adultos --- e era melhor assim. Invisíveis --- meu irmão e meu primo Ricardo nadavam de ponta a ponta o açude do Lobo e eu nadava nas beiradas, enquanto eles iam cada vez mais fundo e mais longe --- e eu ria e ria dizendo que não conseguia e eles riam e riam dizendo que eu conseguiria se tentasse. Lobo lobo --- que dias felizes! Mas eu nadava desajeitada. E depois de adulta, nunca mais nadei, assim como nunca mais dancei, porque tive o azar de não estar com ninguém que soubesse dançar --- eu que tanto amava dançar. 

Depois que mano morreu, e por mil vezes me passou pela cabeça que ele pode ter sofrido nos instantes antes da morte, eu voltei às aulas de natação. E entrei em pânico. Metia a cabeça na água e pensava no meu irmão morrendo. Mas não aceitei o pânico. E me esmurrei bem forte porque quis que fosse frescura esse pânico. Eu não estava morrendo. Eu estava numa piscina, quase que protegida; foi o que pensei. Então foda-se o pânico. Eu não estava ali para sentir pena de mim. Nem de meu irmão. Estava ali para aprender a nadar. E continuei a nadar. E sequer disse a meu instrutor porque estava tão doida sem saber o que fazer o que já sabia fazer antes. E continuo a nadar. E o professor diz que estou cada vez melhor.
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E agora, leio o livro de Javier Marías há três noites. Foi Aline que me falou sobre ele, depois de ver que eu havia lido outros dois livros dele. Leio às 3h da manhã quando acordo depois de ter dormido umas quatro horas. Às vezes, choro pra cacete. Mas não estou nem aí. Leio, choro, depois adormeço um sono agitado e cheio de sonhos. Antes, "embrulho" Poeminha, que está bem do meu lado, repito meu mantra "que sorte, que sorte, você existir"; às vezes ele se mexe e dá um sorrisinho; outras vezes, mal se mexe. E que ninguém me diga que isso, por ora, não seja a vida possível. Ou me exija mais que isso. Ou diga que já é tempo de ser outra coisa. Que seja o que tiver de ser --- E que ninguém me tire essa dor. Ou queira senti-la. É minha. E dos meus que amavam meu irmão. E dos que amavam meu irmão e não eram meus.
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