terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Retrô 2019 - os dez livros mais amados e + 1



todo fim de ano, esta vontade de revisitar o que se passou no decorrer do ano --- como se fosse possível apreender o tempo. e daí extrair lições. me vem a vontade do diário e olho desanimada as poucas postagens, como se tivesse falhado com algo que me é tão importante. 

escrevi muito neste ano --- centenas de textos técnicos. mas quase nenhuma linha do que realmente me importa. não que essas centenas não tenham importado. aprendi muito neste lugar da técnica. muito mais do que em qualquer outro tempo julgaria capaz de aprender. e de gostar. pois foi assim. entretanto, isso não supre todo o resto que faz falta. 

antes de fazer minha lista de "livros do ano" (porque com tanta gente bacana fazendo as suas listas, é difícil resistir), preciso dizer que li muito menos do que achei que havia lido. li mais do que no ano passado, mas ainda tão pouco se comparado com a minha ambição de leitura.

começo, então, pelo fim::: pelo dia em que passei lendo O compromisso, de Herta Müller. na semana passada, em um daqueles dias de banzo, meio ressaca, meio cansaço, de férias finalmente, lá pelo meio da tarde, após passar a manhã toda lendo, resolvi que leria o livro até o fim. e assim foi. e foi tão impactante, porque me dei conta do tempo. deste de agora e daquele em que era tão comum passar o dia todo lendo.  

eu leio na van, a caminho do trabalho. foi assim que li a maioria dos livros deste ano. enquanto a maioria dormita, cochila, vê o celular, eu leio; às vezes, lutando contra o sono e o cansaço; outras, com a luz das lanternas de leitura, porque eu ainda leio livros de papel; e acho que sempre vai ser assim. isso dá duas horas diárias de leitura; nos dias de maior concentração, 2h40, que é o tempo da ida e da volta para a UFSB. 

leio também aos sábados pela manhã, na varanda do meu quarto::: a cada vez, um momento de muita plenitude. eu sempre me espanto como fiz, quase sem querer, desse lugar na varanda o meu melhor lugar no mundo nos últimos dois anos.

ainda assim, perto da minha ambição, da minha imensa biblioteca, foram poucos livros. daí que, neste dia de dezembro, em que li todo o livro de Herta Müller, eu tomei a decisão de que esta será uma das minhas promessas de  2020: tirar da loucura dos dias aqueles que serão dedicados apenas à leitura, escolhendo sempre livros que possam ser iniciados e finalizados em um único dia. daqui a um ano, se nenhum raio tiver me partido, eu digo aqui sobre o percurso dessa promessa. 

2019 foi o ano dos "inéditos" --- autores que jamais havia lido, seja porque não os conhecia, não tinha interesse ou não havia dado o tempo. daí, terem sido verdadeiros encontros. 

se eu tivesse que escolher um, escreveria Os detetives selvagens, de Bolaño.
dois, acrescentaria Os diários de Emilio Rizzi - os anos felizes, de Ricardo Piglia. 
três, não esqueceria de Bússola, de Mathias Enard. 
quatro, devotaria amor eterno a Mrs. Dalloway, de Virgínia Woolf. 
cinco, reservaria O quarto de Giovanni, de James Baldwin. 

desses cinco, apenas Piglia é meu velho conhecido. 

mas como esquecer de O amor de uma boa mulher, de Alice Munro?
Amada, de Toni Morrison? é preciso continuar: seis, sete. 

quando meu pai morreu, eu estava lendo Tristes trópicos, de Lévi Strauss. que eu tratei como ficção, de tão bem engendrado. por conta disso, deste acontecimento tão irreparável, ficaram faltando as últimas trinta páginas. não é fácil estar lendo um livro e, no minuto seguinte, estar descendo as escadas da sua casa, com o celular na mão, para ouvir daí a instantes que meu pai havia ido - passarinho. como voltar àquele instante anterior? não há como. Lévi Strauss entenderia. oito. 

na bagagem da longa viagem, levei Jane Eyre, de Charlotte Brontë, por conta do Leia mulheres Ilhéus, que me trouxe tão lindos encontros neste ano. quando a garganta deixa de ser comprimida, quando a cabeça para de martelar e entra num torpor indefinido, são os livros que me salvam. naquela rede da casa da tia Marlete, afastada da tagarelice da cozinha, em que tantas moralidades eram postas em jugo, eu me enterrei na rede, no mesmo local em que minha avó havia vivido os seus últimos anos. e dediquei algumas horas a essa história tão antiga, que, para subverter minimamente as histórias das heroínas entregues ao seu herói, iniciou pelo corpo, destituindo-os de beleza. 

depois, comentamos no Leia mulheres. e eu não lembro se contei ao quinteto as circunstâncias em que havia lido esse livro - tão antigo, como disse, mas ao mesmo tempo tão assombrosamente inadequado para a sua época. ah, as mulheres! que histórias bonitas estas mulheres me contaram: Alessandra, Daniele, Lu, Verena. se elas pudessem saber o tamanho da minha gratidão! é o nono. 

volto ao início::: Herta Müller --- A raposa já era o caçador. Nunca um livro havia me mostrado como eu havia deixado de lado algo tão essencial de outro livro. ao finalizá-lo, me deu vontade de reescrever de tantas outras formas o artigo que escrevi sobre o livro de Laura Erber, Esquilos de Pavlov, para preencher as lacunas que deixei ali de modo tão flagrante. é o décimo. 

ainda seria preciso falar das leituras inacabadas, para além de Tristes trópicos. porque toda história de leitura está repleta de hesitações, desejos frustrados, páginas pela metade::: conto nove aqui em cima de minha mesa, pelas mais variadas razões. há muito mais de volta aos seus lugares de chumbo à espera de um tempo que talvez nunca chegue.  é a primeira vez que, deliberadamente, me dou ao luxo de não me obrigar à leitura de um livro iniciado até às últimas páginas. 

foi um ano irrequieto. medonho --- se penso no coletivo, no papel social que é preciso exercer e estar atenta. foi o ano de maior revolta, sem dúvida. e foi, no íntimo, mais um ano tão triste -- o ano em que Chico se foi. e apesar de nunca serem suficientes, nunca serem um lugar de consolo, os livros lidos, inacabados, desejados, ignorados, comprados, folheados, foram um sossego da loucura e da dor. 

e é por isso que não posso prescindir desses hiatos em que me dou a chance de ler. prescindir seria arrancar de mim uma parte que considero bonita, embora, como outras partes, seja também conflitante, incompleta, imperfeita. 

Talvez seja como o personagem de Bússola:

Meu pobre Franz, você sempre se agarrando às ilusões, teria dito Mamãe em seu francês tão suave, você sempre foi assim, um sonhador, meu pobre menino. No entanto, você leu Tristão e Isolda, Vis e Ramin, Majnun e Laila, há forças a vencer, e a vida é muito longa, às vezes, a vida é muito longa, tão longa quanto a sombra sobre Alepo, a sombra da destruição. 

Pois.

De longe, o livro mais desencantado de todos esses. Se não existisse Desonra, de J. M. Coetzee, teria sido o livro mais desencantado. Mas existe. E quando um livro como Desonra existe, na verdade, ele paira sobre todos, como uma grande exceção --- único, medonho, grande, muito grande. 















quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Chico, Chico




antes, quero dizer que, embora este blog esteja parecendo um obituário, há muita vida por aqui --- na vida. nem sempre fácil, algumas vezes muito difícil --- mas vida. aqui, em torno. 

meu pai foi embora em um sábado --- o dia que ele mais amava, o dia que elegeu, durante toda sua vida, como o dia para sair de si, para estar na rua, para ficar tonto. --- como se alguém que, gostando muito de carnaval, morresse em plena avenida, entregue à alegria da batucada. foi assim --- num repente. 

talvez tenha dado tempo para sentir um pouco de medo, mas não muito --- é o que espero. pois ele tinha muito medo da morte. sempre que atentou para alguma mudança em sua vida foi na tentativa de burlar a morte, de enviá-la para longe de si. gostava de imaginar que viveria tanto tempo como seu pai, como seus antepassados --- com vidas tão longevas. seu neto Emanuel,que esteve com ele todos os dias nos últimos seis anos, disse que ele viveu sua vida todinha --- e me deu uma pequena alegria esse pensamento. porque para nós, os ainda vivos, parece sempre pouco. é sempre um ainda não. 81 anos é mesmo uma vida todinha::: deu para engendrar outras vidas que o amavam, que tinham nele a maior referência de amor e de delicadeza. 

meu pai não era um homem comum. com isso não quero dizer que era extraordinário. quero dizer que ele tinha os dois pés fincados no imaginário. ele falava com os bichos, falava com as crianças. mas principalmente falava sozinho --- numa peleja grande com suas tantas histórias pra dentro - sussurradas, ligeiras, secretas. isso lhe dá pelo menos duas existências::: a que vivia com as gentes de fora e a que vivia com as gentes de dentro dele -- inventadas, recriadas, contadas e recontadas.

[e eu sou a sua herdeira direta desse viver para fora e para dentro --- pelo menos, até onde sei. pois se é a primeira vez que confesso minhas outras vidas, talvez outra das minhas irmãs também tenha herdado esse inventar histórias, criar outras paisagens e outros fins para dentro --- dentro de si. fim da confissão].

por muito tempo, meu pai foi o menos silencioso de sua família silenciosa. agora, que eu estou mais próxima da velhice do que da juventude, é ainda mais bonito reafirmar o que essa família representou na minha formação::: o que enxergo nela como o que me constituiu e o que eu gostaria que tivesse me constituído --- que passa por nomes como dignidade, altivez, que sempre impressionaram o meu eu-menina. dessas heranças que valem uma vida toda. digo "por muito tempo", porque, nos últimos anos, meu pai havia finalmente incorporado o silêncio de sua família. e plantava seus olhinhos calados sobre nós a perguntar, sim, pela sua vida -- o que havia sido das terras? da casa deteriorada? do pobrezinho de seu filho que havia ido tão cedo? o que havia sido dela com quem não podia mais se encontrar? E menino de vô, cadê? E Ney, como vai? -- era assim sua vida de fora. a de dentro era, por vezes, assombros e batalhas. 

ter um pai aluado é, desde menina, conhecer um menino-deus. é ter que desde cedo reconfigurar a imagem de pai e de homem, de sucesso e fracasso, de poder e saber. pois foi assim que carreguei em mim meu pai a vida toda --- sabendo ser ele diferente. um homem-menino com toda a carga de beleza advinda daí::: o melhor abraço, o beijo mais bem dado, o sorriso meio de lado, quase que envergonhado, a timidez, as poucas palavras, o jeito doce, o cheiro mais reconhecido.

meu pai gostava de perfumes. de camisas azuis  --- jamais o vi de camiseta. de calças em vez de bermudas. de relógio. de chapéu preto de feltro, de sandálias de couro. de botas - que deixou de usá-las nos últimos anos. 

meu pai gostava de presentear perfumes e sabonetes.

meu pai gostava de pentear os cabelos. de escovar os dentes. de tomar banho. de beber pinga. de cheirar as filhas, os filhos e os netos. e as mulheres, quando elas deixavam. 

meu pai gostava de deitar em rede.

meu pai gostava de crianças. e as crianças gostavam demasiadamente de meu pai.

meu pai amava minha mãe. amor grande medonho desmedido desalmado. era riobaldo, baltazar e serapião. sim, serapião. nos últimos anos, serapião. 

meu pai me bateu uma única vez. e chorou porque me bateu, agarrado a mim, me dando beijos, com gosto do café que eu não soube fazer. e eu, que fui tão surrada, nunca mais tive gosto pelo café. pela cozinha.  e ganhei gosto por pedir desculpas. por beijar os que amo. 

meu pai comia de um jeito diferente. esmagava toda a comida antes de colocá-la na boca, fazendo uma dança com a colher que era antes de tudo método --- e gostava dos pés da galinha e do pescoço, satisfeito de sobrar para ele as piores partes. as partes da galinha dizem muito sobre a nossa história familiar de faltas. até hoje me é excessivo ver uma galinha assada, daquelas que se vendem para os sábados preguiçosos, e imaginar que posso pegar dali qualquer pedaço. me restam sempre as asas, como para meu pai restavam os pés e o pescoço. de restos, como nossa história.

meu pai comprava queijo e rapadura a cada vez que íamos visitá-lo. e nos fazia trazer esse fardo pesado nas malas. queríamos dizer que não queríamos. mas ele ignorava. e chegava com queijos gordos e rapaduras pesadas. e agora, com gastrite e colesterol alto, não paro de comer queijo e rapadura. desde a volta do cemitério. um primo fez um lanche com muito pão, frutas, sucos. e queijo. comi e comi. e ri e ri. ali, abraçada com Verinha, ouvindo as histórias de Ferdin. Vamos para a Europa, num tour, todos nós. e eu queria ter dito: vamos, Verinha, porque Paris com você seria um sonho dos mais grandiosos, como meu amor por você também desmedido. e nunca soube como dizê-lo do tanto que queria saber dizer. mas você sabe, ali, agarrada na minha mão, na igreja em que o corpo do meu pai foi velado. ali, no cemitério, em que você olha para mim, com ela na frente, e diz: "quem diria?"
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as imagens aí acima parecem expressar meu pai como um homem triste. era não. era só em instantes. talvez tenha sido por isso que, quando as tirei ou logo depois, eu pensei que meu pai estava se preparando para ir. as fotos dizem mais sobre um pai que ama seus filhos. eu as tirei de tão longe quanto a minha câmera permite. e sabia por que ele chorava. era pelo meu irmão morto. também chorei pelo meu irmão no meio desta grande festa e, por isso, pude chegar perto dele, logo depois, e dizer: "chore não, Chico, se tiver uma brecha, ele está aqui se divertindo e bebendo essas cervejas todas". 

pois era assim Chico. 
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um homem que não nos deixava esquecer que os afetos nos esgarçam e nos inteiram. um homem que nos doou - às filhas e aos filhos - um amor delicado, distinto, poderoso inteiro feliz leve passarinho. 

... eu tenho em mim uma memória. guardo-a. é minha. a essa memória de afeto, acrescento esta::: no pequeno corredor que há na casa de Maneca, separando a sala e a cozinha, meu pai está lá, saindo do banheiro, e eu o agarro e digo::: "Chico, Chico, você está tão calado. Chico, Chico, eu te amo". E ele responde, quase em silêncio::: "Tô não, minha filha". 

e agora que estamos sozinhas, sem esse afeto vivo, peço a ele como uma prece:::...........................................................................................................................................

eu não sou de pedir ajuda a ninguém. quando tenho desesperos, são desesperos orgulhosos, solitários, medonhos. estava assim, e a razão de estar assim já se perdeu, há cerca de um ano, e no calçadão que caminho algumas vezes por semana, eu invoquei meu irmão morto e lhe pedi ajuda:::: "me diz, mano, me diz o que fazer, me diz como fazer o certo, me diz, mano".

agora, não estou dormindo. as mortes levam meu sono. e me põem num frenesi absurdo. não sei se é narrativa ou se foi assim mesmo, mas só voltei a dormir depois que meu irmão morreu quando sonhei com ele. um sonho tão rápido e tão bonito. agora, talvez eu espere que meu pai me venha em sonho. e me diga que está tudo bem. enquanto ele não vem, durmo pouco e sonho sonhos. 

merci, Chico. não poderia ter sido mais bonita nossa história. e poderia. a história que manaMácia e a Morg viveram com você foi infinitamente mais bela do que a minha. Por isso, eu as reverencio e agradeço. que os deuses me deixem pronta para a minha morte, mas principalmente para a vida. porque a vida é mesmo esse conto ligeiro, esse fio atado a nada. --- como disseram as minhas irmãs. 
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chamava pai de pai. mas muitas vezes eu o chamava ou me referia a ele --- de Chico, Chico, como se estivesse falando com ele, mesmo se não estivesse, imitando o seu tom de voz, que era - e não poderia deixar de ser - muito peculiar. como um rumor do que ele era. 

quando éramos:::::::::::::::




 de frente, nós. 

       

segunda-feira, 10 de junho de 2019

Casamento da Princesa






pois este ano tem me feito revirar um bocado. agora, fui para ver o casamento da Princesa, dela que provocou, involuntariamente, meu primeiro e mais importante deslocamento, há quase trinta anos.

por diversas vezes, nos dias que antecederam e procederam o casamento, eu pensei que ainda via a Jéssica, ora Princesa, ora Doidinha, como a adolescente que ela era em 2004, quando fui embora de Porto Velho. até ali tínhamos uma convivência quase diária permeada de muito afeto, muito amor, muita admiração. depois, perdemos a cumplicidade dos dias; tanto eu como ela avessas de comunicação à distância. vez ou outra, nesses dias, senti falta dessa cumplicidade agora memória. e me vi investigando em silêncio o que ainda há. e sei que da minha parte é um desmesurado amor. 

eu nunca casei num ritual como esse, e nem tenho lembrança se alguma vez o quis, mas quase tudo que me é estranho é da ordem da emoção. eu fui assim --- para viver os dias em nome deste lugar que é dela em mim. e foi bonito. é o que eu tenho a dizer::: foi bonito --- como tudo que lembro que vivemos. e isso é um milagre. por fim, é um milagre::: ter alguém que se ama tanto e só ter boas lembranças desse amor. 

e foi o que desejei -- a ambos::: que seja bonito o casamento. que haja mais dias felizes do que tristes. isto do caminhar junto - que nunca é fácil, mas é o que quase sempre queremos viver::: o encontro com o outro. 

ainda em casa, tomei ciência de que deveria ir entregue aos rituais, atenta à praticidade que me obrigo a ter vez por outra. me arrumar, arrumar o Poeminha, estar atenta ao que precisassem - pouco, muito pouco. quis encontrá-la, encontrá-las, ela e Maneca; ela, Maneca, Ed e Josimar, com amor, porque, se não me engano, foi o que sempre nos permeou. e é o que posso dar, desatenta que sou::: a minha presença, quando ali estou. e isso me trouxe alegria, muita alegria. estar ali, estar com. 

fotografei toscamente quase todo o casamento. e me embrulhei de emoção diversas vezes. dancei muito e comi muito. e me concentrei para não beber além da. para poder registrar.  pois é o que se tem a fazer em uma festa de casamento: dançar, comer, beber e achar tudo bonito. foi assim. lembrei muito do mano. ele foi a presença que nos faltou nestes dias. e ainda lá, me veio o pensamento de não querer normatizar nem moralizar o luto que ainda dói, ainda que doa. flagrei a dor do meu pai e da tia Fá na pouca luz da festa. e guardei-os, aqui, em mim.   

pela primeira vez, nos encontramos - as quatro irmãs - sem ser no Ceará. Morg finalmente foi nos encontrar. e eu espero que esta primeira viagem tenha sido bonita para ela também. para que ela possa vir aqui, na minha casa. minha maior alegria é ter irmãs, como já disse outras vezes aqui. é um assombro: os mesmos sorrisos, os mesmos vários tiques, as fisionomias tão próximas. em algum momento, expressei nossas diferenças, como um apelo para que estas não nos afastem nem retirem de nós isto que tem nome de amor; amor como um sentimento imperfeito, afeito à curvatura do que temos de próprio em cada uma. 
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a primeira lembrança que tenho de Jéssica é dela correndo na praça da cidade de minha infância. ela tinha um ano. na minha memória, era um vestido amarelo, com laços de fita branco. não sei se inventei essa memória. ou se a construí a partir de alguma fotografia. ali, aos quinze anos, eu já dava início a um dos princípios básicos da maternidade que eu exerceria vinte anos depois: cuidar sem violência. e agora, quando escrevo, me dou conta que também Maneca fez este pacto. e também Josimar. tantos foram os dias e as noites que nos colocamos à sua disposição. para brincar, correr e acalentar. ela não tem a delicadeza que poderia ter se constituído aí. porque é para dentro --- como nós três, arrisco-me a dizer: sua mãe, seu pai e eu. e deve precisar de um esforço extra para lidar com quem está a seu redor. talvez quando ela for mãe - se for -, a delicadeza que há ali, e que é preciso arrancar vez por por outra, prevaleça. ou já agora::: ela e Ed juntos nos dias que virão. tão longos, tão longos, é o que desejo. 


domingo, 17 de fevereiro de 2019

enquanto leio este livro de Mia Couto



enquanto leio este livro de Mia Couto, mais o Brasil deixa de ser o que por um intervalo curto demais imaginamos que ele poderia vir a ser --- ou era. nós, os que acreditamos em presentes. e daí fico sem saber se todas as lágrimas são por conta do livro --- da beleza das palavras, e não propriamente da história --- ou por conta deste aborto chamado Brasil. talvez fosse melhor ser desterrada do que estar ainda mais próxima das entranhas da minha terra, nesta Bahia, embora às vezes esta se sinta mais próxima do Sudeste que lhe renega do que do Nordeste que lhe é. pois estar fincada na própria terra é sentir mais forte quando ela treme debaixo de nossos pés.

sei que nestes dias me sinto mais que nunca cearense. ainda que uma cearense-rondoniense. um travo orgulhoso me percorre. e eu misturo a minha dor salivar do estômago com essa raiva surda por conta de todos estes mortos-matados. o Brasil afunda como a barragem de Brumadinho::: de uma vez só, sem dar tempo de nos colocarmos a salvo, ainda que os avisos tenham passado por muitos ouvidos moucos; ainda que haja sempre um milagre a nos dar um rasteiro alento – como a mulher que dirigia o trator e soube ter a coragem de esperar a hora de sair dali, bem na parte da terra em que a lama deu a curva. a mesma coragem da mulher que arrebentou o vidro do caminhão arrebatado pelo helicóptero que caiu. ouço o relato que Boechat pulou, na tentativa, certamente, de se manter vivo. não tenho forças para conferir. é muita tristeza junta. havia acabado de ver corpos estirados no chão de uma casa comum, no morro do fallet-fogueteiro, mortos em nome da guerra que faz arder o Rio de Janeiro. e também Fortaleza. porque as guerras são todas iguais, é o que sempre nos dizem. e na mesma semana, já havia visto Fernanda chorando por conta dos meninos do Flamengo ---. e agora o segurança mata um jovem já indefeso. MATA UMA PESSOA. e é nítido o prazer de matar. é a vida num estado de terror e revolta 

enquanto leio este livro de Mia Couto, eu tento me acertar; acertar as contas com o que não me serve mais --- lembro da missa a que assisti ainda há pouco do meu irmão padre – tão bonita e tão bonito. não aprenderei a dar glória, nem a usar a hashtag gratidão, mas posso levantar da mesa para fugir das minhas implicâncias; posso subir as escadas, meio trôpega, para não dizer mais nada sobre o que certamente me arrependeria no dia seguinte, quando eu tivesse que me levantar e roubar estes poucos minutos para olhar o que vejo da varanda de nosso quarto. é porque a vida tem esta parte das fugas de si mesmo; do repisar o constante para querer ser outra, ainda que todo tempo seja eu mesma que esteja aqui comigo.

enquanto leio este livro de Mia Couto, lembro que já faz dez dias da última fisioterapia e acordo em desespero para ir. é um rompante para não me afastar das promessas deste ano que mal começou e já poderia ter terminado, porque já parece ter havido tragédias, crimes, mentiras, ignorâncias, burrices em excesso. é muito. e talvez ainda seja pouco. engulo estes comprimidos contra a bactéria do estômago e deixo ausentes a amargura da boca e a sonolência, só porque quero, embora estejam aqui. tenho pressa, mas é porque persigo o vagar. me prometi ler uma centena de livros neste ano, e ver mais de duas centenas de filmes nestas horas em pé, enquanto faço algo muito antigo, que é este passar de roupa e, agora, guardar no método marie kondo. nem que eu precise trapacear e ler alguns muito finos, decidi que vou ler, sob pena de não mais poder dizer que me constituo como leitora. nem que eu tenha que fazer como já faço há tanto tempo: barrar o sono. Vicente e Tatupai riem quando me veem cochilando 1h da manhã, tentando ler ou escrever, já não lembro. eu devolvo o riso, feliz, por estar ali e não ter estado com eles, quando certamente me perderia e deixaria de lado essas promessas tolas.

enquanto leio este livro de Mia Couto, penso que não há razão alguma para temer. para me pôr a salvo, ainda que sob perigo, é só não me afastar dessa grande coragem de me manter leal aos meus princípios --- há quem diga que é arrogância, mas eu prefiro pensar que são as roupas e as armas de Jorge. um querer obstinado pelo trabalho moroso, porém dedicado. tenho horrores também, mas tenho amor, sobretudo. amor, sim, ainda que lesado.   

enquanto leio este livro, eu me lembro que daqui a pouco estarei novamente em Angola. é por Angola que circundo estes livros negros, estes estudos, prenha destas vontades, agora que já não dá mais para estar prenhe de algum irmão-porvir de Poeminha. é da natureza do precoce vir cedo demais; daí ser necessário esse agarrar das vontades outras. é o modo possível para suportar este Brasil que ora nos castiga como o quê. talvez seja como rezar pra dentro, por falta de jeito de rezar pra fora. quando eu esqueço que não sei, eu me ponho em estado de oração, em que penso no meu irmão morto, no meu primo-sorriso, no meu pai e na minha mãe longes, no plural mesmo. nos desejos abortados, nas tristezas fundas que não se curam senão não seriam tristezas fundas, em tantos outros que estão longe, e nestes dois que amo e que estão perto, aqui comigo --- enquanto me deixo arrastar por Rosabela, que late faceira, nesta beira do pontal que aprendi a amar e a chamar de casa.