terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

para o filho de óculos




O contorno das pessoas e das coisas perdia a nitidez, tudo se tornava desfocado, até os sons pareciam mais abafados. O mundo, quando eu o via sem óculos, perdia a aspereza. Ficava tão suave e macio quanto um travesseiro fofo no qual encostava o rosto e terminava por adormecer.
- Está sonhando com o quê, Filomena? – papai me perguntava. – Você deveria pôr os óculos.
Eu obedecia e tudo retomava a rigidez e a precisão costumeiras. De óculos, eu via o mundo tal como ele era. Não podia mais sonhar.
(MODIANO, Patrick. Filomena Firmeza)



Poeminha, encontramos nos seus livros as palavras que eu não saberia lhe dizer. Pois tenho que confessar:::: doeu bem aqui no ponto mais sensível do coração quando seu pai me telefonou e me anunciou que você precisaria usar óculos. Filho, filho, impossível não ter ido muito, muito longe. Tão longe quanto é aquele lugar onde uma menina de seis anos pôs os óculos pela primeira vez e sentiu realmente que o mundo existia. Ao contrário de Filomena, toda a minha poesia de infância está na descoberta de um mundo nítido. Lembro com muita certeza das nuvens. Saber de sua existência, aos seis anos de idade, ao pôr os óculos, Poeminha, mudou a minha vida. Porque aos seis anos, talvez, eu já fosse uma leitora. E naquela época, me parece hoje, era tudo que eu tinha de meu. 


Faz 34 anos que uso óculos, Poeminha. E você, quatro dias.  Tenho longas histórias tristes, filho. E o medo de vê-las repetidas em você me fez logo pensar numa necessidade que eu não havia pensado para mim: seria comprar dois óculos – e os mais bonitos que achamos. E que plural, filho. Desde o início eu e o Tatupai confiamos a você  a escolha. E você vai lá, filho, e escolhe os óculos mais fodas que eu havia achado.  E sabe, Poeminha, eu escolhi passar a vida atrás dos óculos. Quando pude escolher, já não sabia como fazer. Quase nunca usei as chamadas lentes de contato. Comprei uma atrás da outra, quando pude, e uma atrás da outra, vi-as apodrecerem sem uso. E nunca cogitei fazer nenhuma operação corretiva. e acho, filho, que é por que nunca tive coragem de retirar esta prótese que me mostrou as nuvens. 


Esta sua mãe, que tem uma vaidade toda particular, usa um óculos de cada vez. E até que ele descasque, risque, borre. Tão dada a coleções, jamais colecionei óculos. A cada vez, cada um, trato-o sem cuidado, mas com toda reverência. Uma vez, Poeminha, num tempo muito distante, não sei como, uma das pernas de meus óculos quebrou. E foram vários dias a ver o mundo embaçado. Até que eu tive a ideia de ir lá, no fundo da gaveta, e ficar só um pouco com aqueles óculos de uma perna só. Só um pouco sentir a nitidez do mundo. Não sei qual foi o movimento, mas os óculos caíram na beira da calçada daquela casa cor-de-rosa e uma das lentes quebrou. Como sofri, Poeminha! Como dizer àquelas pessoas que os óculos, agora, sim, eram uma prótese inútil. Tive medo de ser repreendida. Chorei. Senti como um grande castigo – precisar de óculos – e eles terem me traído por duas vezes. E agora? Como iria dizer que eu era a culpada de eles terem quebrado – e por duas vezes?  Não lembro o que aconteceu depois. Ficou apenas este saber de não saber viver sem óculos. 


E lembrando agora, desta história triste, não vou lhe dizer que você pode quebrar quantos óculos quiser. Vou lhe dizer que, sim, é bom que existam óculos. Que como nós eles são tão frágeis. E que, embora não sejam gente, são um pedaço de nós. Mas você pode escolher deixá-los de lado. Fazer outras escolhas que não as minhas. E que, sim, Poeminha, quando um acidente ocorrer, não hesite em me dizer::: eu faço o que for preciso, mas jamais lhe deixarei um dia a mais sem a possibilidade da nitidez. Para que como Filomena você possa escolher ficar sem ela – a nitidez – a hora que quiser.


Posso lhe garantir:::: é bom. Não tiro os óculos para dançar, como Filomena, mas tiro-os em tão poucos momentos::: para dormir, tomar banho e fazer amor. Nos três, quanto mais os olhos se fecham involuntariamente, mais bonito é. Acredite. 

E acredite ainda mais:::: você ficou lindo de óculos.
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domingo, 8 de fevereiro de 2015

Nina



Nina nos escolheu. e isso virou uma grande responsa. e uma alegria. não sou adepta de tratar os animais com mais atenção do que se trata as gentes. sou desatenciosa tanto com um quanto com outro. mas sou louca pela Nina. como já fui louca pelos meus outros gatos, Joplin, Janis e Lady, que viveram comigo há muito tempo, quando eu era outra. Nina veio. não demos a menor atenção. e mesmo assim ela não foi embora. então, demos atenção e nunca mais paramos de dar, a ponto de Poeminha dizer: "nossa família somos eu, mamãe, papai e a Nina". acho justo. acho de bom tamanho, embora nos dias ternos eu fique imaginando que seria bonito outra pessoinha desarrumando a casa junto com Poeminha.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

aqui um pouco mais.


passei o mês de janeiro sem fazer nada - nada da lei da utilidade, da responsabilidade. parte do mês fui visitar meu amigo Binho - e mostrar um pouco da Sampa que eu amo para o Poeminha. foi bonito. bem bonito. passeamos de mãos dadas todo o tempo. ora de metrô, ora de táxi, ora a pé, fui lhe dizendo por que amava Sampa. fomos a um tanto de lugares - eu e ele. zoológico hopi hari exposição do salvador dali do ron mueck castelo rá-tim-bum livraria cultura teatro showzinho comprinhas. às vezes, encontramos alguns amigos (ele e Maria Teresa - tão bonitos, ele apaixonado pela Lu, irmã de Carlinha; e nós, meio-dia em ponto, a conversar com aquela senhora tão maravilhosa naquela longa fila, e naquela outra a esperar o Emerson, nós a visitar a Lan,  e o tio e os primos.....). às vezes, foi tenso. em casa a liberdade é sempre tão maior. é sempre uma tensão o confronto do olhar do outro ante uma criança. é tanta adulteza no mundo que, às vezes, eu emboto todo o meu olhar. mas o bonito que foi não há como retirar. estar ali com Binho e poder conversar com Carla e poder ouvir a Lu e poder sentir os silêncios de Clara, foi bonito.  aprendi um tanto de mim e aprendi um tanto deles - e isso é tudo.

mas quando voltei, ainda estava com o mesmo olho embotado do fim do ano passado. como este rato no jogo de xadrez. precisava parar. precisava de algum hiato que pudesse me salvar de mim mesma. e dos outros. vi que não podia começar a pôr em dia todo o trabalho já acumulado. sempre esta crise. sempre este não saber o que faço com a universidade.  minha amiga Mariamada já me viu tantas vezes neste mesmo lugar - nesta vontade de parar, de saber viver outra vida. e sabe que eu sempre retorno. gosto, faço, me empolgo. mas tem horas que fico "inchada", como uma adulta que não se conforma de ter perdido a criança que nunca foi: evento pra organizar, aulas para ministrar, trabalhos de orientandos para ler, artigos pra escrever e mais uma infinidade de pequenas coisas... tudo isso me parece tão-sem-sentido às vezes. e eu me sinto tão pequena. fico sem saber onde começa minha vida pessoal e termina a profissional. tem horas que vira tudo trabalho - por mais bonito que seja. daí, eu acato estas pequenas crises. e com elas respiro. vou bem ali ------ meus hiatos. acho que morreria se eles não existissem. ou, tirando o excesso do drama, não me acharia mais. nem por excesso, como na mamografia que fiz nestes dias. este apertar os peitos, senti-los contra a laje fria da máquina. e sair de lá, dissecada, radiografada. e ainda sem mim.

em dezembro, eu estava assim, com uma cartela de tarefas. não via como parar. e aí chorei no ônibus vindo de Porto. E aí chorei outro tanto de vezes. e aí comecei a ser dada a solidões. ou passava os dias tentando "colocar em dia" os trabalhos. ou estancava aquelas lágrimas todas ---- que vinham de um tanto de lugares. estancar. cortar a pulso. escolhi a segunda opção. e li dez romances desde então. ora na rede - a que balança, ora recostada na cama - a que tem a melhor luz. e verti lágrimas por outras dores além das minhas. deixei passar por mim histórias outras - tão mais grandiosas, tão mais sublimes que a minha. e me deixei carregar. deixei deixei deixei ---- assim, toda a luz, mesmo que não vissem, que eu não visse, que não dessem importância, que eu mesma não desse importância. deixei deixei e senti um tanto de sentidos.

e agora, espero estar pronta para voltar. voltar com mais solidez. voltar com mais atenção ao que há no resto do tempo que é preciso criar. agora, é a prova dos noves. agora, é um ano que está no início. agora, é uma vontade feita de erros, de desconcertos, de precariedades. 
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e lá, comprei uma nova máquina fotográfica. cumpri a promessa de só comprar outra depois de pagar a que me foi roubada em Paris. e desta vez, investi ainda mais alto ---- como uma senha para investir ainda mais naquilo que me retira de todo este turbilhão da produtividade, embora, às vezes, seja tão bonito. como este momento:::: no meio da tarde, últimas páginas de O manual dos inquisidores, vejo o email e está lá a equipe da revista anunciando que saiu o número da revista com nosso artigo --- e eu lembro de como ele foi escrito, de que forma eu e Lili pensamos sobre literatura brasileira contemporânea, de como vamos construindo este diálogo::: ela, com um forte poder conceitual, com uma memória poderosa; eu, não sei. mas diálogo, sim. e tive que, dessa vez, dormitar um pouco mais. dormitar um pouco mais entre a alegria e a alegria. 
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