quinta-feira, 31 de julho de 2014

o chão da literatura

quando estava voltando de Paris, cansada dos dias intensos [e do peso da mala, que eu e Marie havíamos arrastado penosamente nos longos corredores e escadas do metrô], não consegui dormir. ainda assim, não consegui dormir. algo em mim estava muito alerta. e num avião sem grandes confortos, num espaço exíguo entre cadeiras, tirei as botas, acomodei o travesseiro e me pus a ler o livro de Benoît Peeters, Trois ans avec Derrida

o livro é um diário dos três anos em que o autor escreveu a biografia de Derrida. é, pois, um livro muito simples. mas o fato é que me emocionou profundamente. talvez tenha sido a alegria dos dias que haviam terminado, talvez tenha sido a entrega radical que o autor imprimiu na sua pesquisa e está registrada no livro, talvez tenha sido a memória da minha "relação" com Derrida, afinal eu havia escrito uma tese sobre ele... talvez! certas frases não têm como serem organizadas. resta um talvez. uma restância, diria Derrida. o certo é que em vários trechos chorei e só parei quando terminei. não lembro mais se dormi. mas desci do avião como se tivesse atravessado algo dentro de mim. 

sei que pensei também sobre a minha vida, fazendo aqueles paralelos toscos que a leitura permite. e agora, só agora, vejo que havia alguns enganos de base. e agora esses enganos bagunçam minha vida com uma virulência inimaginável. não sei o que mais dói. se ter sido pega de surpresa, diante de todas as evidências. ou se as evidências. mas não é sobre isso que quero falar. não aqui nesta grande angular para o mundo. 

quero falar deste lugar instável da literatura na minha vida. instável, porque, como eu disse hoje a minha amiga Rosana, já fui uma grande leitora, e hoje só consigo manter um ritmo de leitura a duras penas, lutando quase sempre contra o sono, o enfado, o turbilhão de tarefas. pois, agora, desgarrada de um bocado de ilusões e certezas, não tenho dúvida de que a literatura é, para mim, um porto. e será para sempre. esse hiato que abro a duras penas nesta vidazinha medíocre de administrar afazeres quase sempre desagradáveis não é exatamente o que me salva, porque penso que a literatura não salva ninguém. mas se tem algo que me disciplina diante dos alaridos do mundo e dos meus próprios alaridos é a literatura. e mais especificamente, o romance.    

se começo a odiar as pessoas, se começo a odiar a mim mesma, se uma dor intensa se entranha e não quer sair de jeito nenhum, tirando meu chão, e com isso entro numa verborragia sem fim, é na literatura que encontro, por fim, o chão. um chão movediço, solitário, quase desesperado, mas um chão. que estanca a verborragia e me dá condições de continuar. e continuar com a mesma inquietação. com a mesma vontade de seguir estancando os ódios, as dores, os temores, as mágoas, dispondo-os de tal modo que não impeçam os meus passos - que são os passos de alguém que consegue ter uma estranha sensação de alegria e paz nesta "vidazinha medíocre de administrar afazeres quase sempre desagradáveis". e que talvez por causa disso, consegue vez ou outra rasurar essa vidazinha e ir ali, bem ali, ou acolá, ou aqui mesmo, para viver algo bem bonito, como esta viagem a Paris, esta leitura do livro de Peeters, ou a leitura do livro de Laura Erber, Esquilos de Pavlov, que agora leio nos intervalos.    
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sexta-feira, 25 de julho de 2014

"Papai, agora eu já estou muito grande"

quando na vida os dias acumulam perdemos bastante das inúmeras possibilidades que teimamos em construir em nós. às vezes, ficam apenas os escapes, quase fugas próximas à loucura domada do dia-a-dia. na idade de quatro-cinco anos, que Poeminha agora atravessa, tudo é possível, tudo já existe::: "papai, agora eu já estou muito grande e eu sou um nadador, um pianista, um baterista, um estudante, um pulador". e penso que esse mundo largo existe não apenas porque essas atividades-seres fazem parte do dia-a-dia de Poeminha. quando tudo nos falta na infância, o pensamento é também largo e solto e os mundos imaginários são tantos que não cabem apenas no dia e, à noite, teimamos com o sono para nos imaginar numa vida outra, num lugar outro, num tempo outro. 

descubro muito sobre a minha própria infância observando a infância do Poeminha. e descubro ainda mais sobre a minha mãe tentando ser uma outra mãe. pressinto agora que talvez não pudesse ter sido de outro jeito, embora o que agora se repete - ou que eu tente repetir - seja o avesso. mas o avesso tem muitos matizes. e por um milionésimo de segundo, fico quase igual. e o desamparo só não é maior porque Poeminha, sim, é totalmente outro e tem mais amparo emocional para reivindicar o que lhe parece justo::: "se você continuar dizendo isso, eu vou querer outra mãe". acho muito justo querer outra mãe diante de uma mãe numa derrapada bem idiota. então, na dose diária de perdão que aplicamos a nós mesmos para podermos prosseguir, senti uma certa tranquilidade que adveio da coragem de Poeminha. a mesma coragem que fez ele, logo nos primeiros dias de aula, dizer: "Professora, se você gritar comigo, eu nunca mais volto nessa escola".    

e não. Poeminha não é um menino fichado por estas marcas tão facilmente impressas pelos adultos. não é "mimado", nem "mal educado", nem "birrento". a cada vez que ele mesmo grita, ou bate, ou esperneia (sim, crianças fazem isso!), é sempre chamado à "razão". e os interditos são claros e, às vezes, irrevogáveis. e ele tem que conviver com isso. tem sempre um: "filho, respire, respire" que, antes, funcionava bem. agora, ele afasta de si sua personalidade tranquila e rebate: "não, eu não quero respirar". e de novo e de novo é preciso recomeçar o longo caminho das condutas sociais. facilita, com certeza, seu jeito calmo e carinhoso. Poeminha abre o sorriso tão fácil que desarma qualquer um em segundos. e sabe beijar, abraçar e dizer que ama. e no entanto, está mais para a timidez do pai do que para a extroversão da mãe. a diferença, e é desse avesso que me orgulho - é que ele é um menino que sabe argumentar e que pode dizer "não", pode se contrapor, pode dizer que não quer gritos nem reprimendas violentas simplesmente porque isso não faz parte do seu dia-a-dia. 

facilmente, como mãe, eu poderia me "aproveitar' da personalidade do Poeminha e impor mais ordem, mais modos de conduta condizentes com o que as pessoas chamam de boa educação, mas eu simplesmente acho tudo isso muito chato. crianças bem educadas me parecem sempre crianças infelizes. não quero exibir a boa educação do Poeminha como um troféu. e com isso correr o risco de flagrá-lo com vontade de dizer ou fazer algo e, antes, ter que olhar para mim com temor e só aí decidir se pode dizer ou fazer algo. prefiro que seja como é agora - quando todos dizem que ele é ainda mais "comportado" longe de mim do que quando está perto.   
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quinta-feira, 17 de julho de 2014

quando o tempo


eu não duvido nada que, de repente, o que era certo não seja, de fato, tão certo assim. é quando a possibilidade da morte, ou da dor, ou da separação, aparece nítida. nessas horas, a certeza da dúvida. nada está realmente programado. como querer muito voltar a Paris - e ser assaltada mal se coloca os pés lá. ou querer muito fazer algo - e adiar indefinidamente (como meu pós-doutorado). ou achar que está tudo bem e, de repente, não haver mais palavras. não existe mesmo um script. os dias são vorazes. lançar mão de uma série de cascas. e tudo parece mais simples quando o que resta é nos proteger. 
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não. não quero.  
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comecei a ler Longe da árvore já não lembro exatamente por que. sei que é arrebatador. é um livro tão lindo que me dá náuseas só de pensar nas suas mil e poucas páginas.  mas leio obstinadamente, nem que seja algumas páginas por dia. e tudo parece fluir ainda mais com o serzinho que cresce ao meu lado, o Poeminha. dia desses disse na sala de aula que comprar um livro de R$200,00 é uma insensatez para uma pessoa que não tem tempo nem de cagar. não sei o que espantou mais. se os R$200,00 em um livro ou o "cagar". não falava de Longe da árvore, mas de um outro, que folheei rapidamente, e que me pegou, de surpresa, com uma lágrima escorrendo. é que lembrei que o passado existe. 
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e esta moça chamada Ana Cañas? como ela sai de uns cds engraçadinhos para uma "Volta" que faz tudo doer? a tarde quente me pegou outra vez. e com os mosquitos incomodando minhas pernas mais do que de costume, fiquei imaginando que tem este processo de maturação, de esperar ter o que dizer no momento exato. só não rolou outra lágrima porque, dessa vez, estava prevenida. 
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eu sinto falta de um tanto de coisas. e de um tanto de pessoas. dois mil e catorze estende seus enormes tentáculos sobre mim, como se eu fosse, de fato, a soma de todos os anos passados. como se eu me visse com meus grandes desvãos. algum pensamento lateja::: não tenho problema algum de esmurrar as paredes. só as paredes – que não sentem. sou quase sempre. e só fiz isso nas dores extremas. mas o que me faz falta - de verdade -  não posso dizer aqui. como vislumbre. lembrei de tudo isso naquele princípio de noite – quando tive que deixar ali aquele ser que cuidou de mim. e quando tive que ver aquela que deveria ter cuidado de mim virar as costas mais uma vez para aquele que só queria uma palavra de amor.  é assim. tudo verdade e tudo invenção, como já foi dito tantas vezes. e ainda assim tudo é bonito. mesmo quando a garganta insiste em ter um osso atravessado nela.
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