sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

do ano



sinto sono há alguns meses. cedo, quase meia-noite. ou um pouco mais cedo::: vinte e duas horas. para mim, é muito cedo. tenho dormido. hoje é uma exceção. senti insônia e ainda estou por aqui. e acordo cedo. muito cedo. seis e meia da manhã. para mim, é ainda madrugada, salvo que o sol já está bem alto. ouço o barulho dos pássaros. e inventei que é uma bela vista. então, eu me espreguiço e deito na rede para ler. leio até a hora que Poeminha acorda. já calhou de ler três horas seguidas.

este foi um ano estranho. acabei de escrever um email dizendo isso. continuei igualzinha em um monte de coisas. e mudei bastante em outras. tem dias que ando como se carregasse uma solidão muito grande. e tem dias que carrego toda a alegria que o corpo pode suportar. 

tem dias que sou uma mãe nota mil. tem dias que falo um monte de merda para o Poeminha, como se ele fosse capaz de suportar essas pressões de mãe cansada de ser mãe por instantes. ontem foi um dia assim. depois, peço desculpas. mas fico com a impressão de que o estrago já está feito. por que repetimos os mesmos absurdos? por que não deixamos os pássaros livres? étãodifícilexplicarousaber. imagino que eu tenha sido condicionada ao fazer durante toda minha vida. fazer me acalma. e criança espalha seus sonhos pela casa toda. às vezes, a conta não bate. na maioria das vezes, eu me submeto a sua bagunça. mas algumas vezes, basta um estopim. dói. dói em mim. e com certeza, dói nele. 

será a hora do balanço de fim de ano? fiquemos assim: eu queria que o ano passado não tivesse existido. chorei tantas vezes como menina de quem roubaram a inocência ainda uma vez. fiquemos assim::: neste ano, eu reaprendi um tanto e parei de chorar --- ao menos pelas razões que chorei antes. lancei o olhar sobre mim e tirei de mim uma beleza insuspeitada. algumas vezes, pus essa beleza na escrita. e aprendi a me olhar no espelho todos os dias.

foi - está sendo - um ano estranho. mas achei um absurdo quando qualificaram nosso deslocamento - de sair de uma universidade para outra - de uma espécie de luto. sempre achei o deslocamento uma celebração. se houve luto, foi o das repetições institucionais naquela que se julga distinta. mas isso é outra conversa. meses depois, minha indignação é apenas performática. é meu lugar institucional::: não fazer parte da boiada. e não ter medo. 

lembrei agora de Maneca. sim, da delicadeza. ainda estou em busca. mas quase a alcanço. quase. está bem aqui. Poeminha vem e pergunta se pode cortar o encarte do seu DVD da Frozen. e, primeiro, digo que não. mas lembro de ontem. e olho quase terna e pondero que ele quem deve decidir. e ele decide. agora, temos um encarte sem capa, colada que está num papelão cujo destino, certamente, será o relento.  ainda há chance. é uma sorte que haja.
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sim. dia após dia, foi - está sendo - um ano que deveria ter existido - existir. a que será que se destina?
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terça-feira, 8 de dezembro de 2015

O "aqui" de Marcelo Rubens Paiva



nunca li muitos livros sobre a segunda guerra mundial. ou sobre as ditaduras latino-americanas. então, no imaginário da comparação, posso quase nada. por isso, só quero dizer que sofri aos borbotões lendo Ainda estou aqui, de Marcelo Rubens Paiva. e como penso que todo livro deve sempre envergar um pouco mais nossa coluna, dando-nos um sentido de real que nada tem a ver com uma relação direta (como quando lemos Kafka e o seu mundo de irrealidades é mais palpável do que qualquer outro imediato), celebro aqui a alegria de tê-lo lido no que agora já é fim de ano e nos vem esse sentimento de fim de festa. e de recomeço de uma outra. 

Marcelo Rubens Paiva, sem nenhuma autocomiseração, nos faz vivenciar dois lutos: aquele que teve início com a tortura e morte de seu pai, o deputado Rubens Paiva, e o que vivencia no momento em que escreve, quando acompanha o desenvolvimento do Alzheimer em sua mãe, Eunice Paiva. são dois lutos distintos, mas que nos dão a medida da dor das infinitas perdas. ele traça um perfil comovente daquela responsável pelo título do livro, que, nos lampejos de lucidez, repete: "Ainda estou aqui". Estar presente e ausente, estar ausente e presente são dois modos de convivência com o luto a ser sempre rechaçado para que a vida possa existir. é o que nos sugere o livro. o luto sem fim do pai e o luto por etapas da mãe reforçam o caráter de testemunho de Marcelo Paiva, que narra em primeira pessoa a história de dois outros; não quaisquer dois, mas os seus progenitores. um que "desaparece" repentinamente e uma que "desaparece" aos poucos.  essas desaparições são formas de presença. nesse sentido, ser um sobrevivente é uma forma de aprender a conjugar diversas maneiras de se relacionar com as tantas mortes.

sua mãe ainda está viva. mas o "aqui" de agora não tem mais a força de sua presença antes soberana. por isso, o presente e o passado coabitam no livro, num tempo subjetivo e histórico, que reorganiza as percepções, reforça as perguntas, realça o absurdo de uma ditadura militar nos confins do mundo que desorganiza mundos inteiros. daí por que dentre todos os trechos de documentos inseridos no livro seja o depoimento de um dos acusados de tortura (Riscala Corbage) o mais terrível, o mais insólito, o mais canhestro. é nesse momento que o documento mais parece com uma farsa, no sentido da potência de registrar o horror e suas causas. pois não há causa. o torturador não tem a mínima ideia dos sentidos da tortura. é preciso que seja o outro que o diga. no caso, é Marcelo quem nos diz ---.   

Eunice, como tantas vezes disse Marcelo, é a heroína do livro. uma mulher que sai da condição de dona de casa classe média dos anos 1960 para uma profissional respeitada e admirada. uma mulher que nunca chorou em público, que manteve sempre a envergadura certa para as exigências. mas é uma heroína do nosso tempo. uma heroína sem ilusões que sucumbe quando era a hora de descansar de seu próprio luto de viúva. uma heroína sem memórias, que perde a sua memória para uma doença que mal se sabe as causas,  quando a sua história é toda entrançada na memória viva de um passado recente. e o autor é aquele que vive reiteradas vezes a morte viva da mãe. e dá a ela a voz da literatura, assina por ela a língua da literatura. dilacerante demais.
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quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

cosacnaify, merci por tanta beleza














talvez seja difícil explicar o que senti hoje ao saber que a Cosacnaify vai fechar. difícil porque talvez sejam poucos os que podem entender que se sente amor por uma editora --- por uma editora! mas vou começar assim::: este é o tom. quem achar abestalhado pode parar de ler por aqui. esta postagem é para os que amam livros como eu::: anderson aline poeminha rosana lilian gabriel (que não está nestas fotos, mas que compartilha do mesmo amor, testemunha que sou das tantas vezes que ele comprou livros no meu cartão).

não chorei na hora que li a notícia, porque estava em uma sala cheia de gente. mas foi difícil barrar o nó que se formou de imediato. porém, quando pisei os pés dentro de casa, e olhei ao redor e vi os sinais da Cosac por todo canto, as lágrimas vieram como deveriam vir.

sim. tenho amor profundo amor pela Cosacnaify --- compro com uma constância grande e sempre muito. Poeminha tem praticamente todo o catálogo infantil. e eu tenho uma infinidade - de todas as seções::: literatura, arte, cinema e teatro, fotografia, lançamentos sempre tão esperados. quantos livros devo ter, quantos li desses que tenho? quanto tempo gastei fuçando o site? como a partir de agora irei a São Paulo sem ir à loja e sair de lá com sacolas e mais sacolas, tendo que arrastar os livros em malas, em mochilas que curvam as costas para não ter que pagar excesso de peso na viagem de volta?

sim. amor pela Cosac. que começou com uma história que não me canso de contar. todos que me conhecem já a ouviu. todos os meus alunos já esbarraram com ela em algum momento. eu, doutoranda sobrevivente de bolsa, morando no centro de Campinas e indo todo fim de semana para São Paulo sem saber se ia para namorar ou se para ver espetáculos shows filmes exposições. e num desses fins de semana, vou à exposição de Farnese de Andrade, no Centro Cultural do Banco do Brasil. e sinto vertigens. e me extasio. e choro. e xingo todo professor que passou pela minha vida sem nunca ter me falado que Farnese existia.

e continuo falando de Farnese pelos dias seguintes, pelos meses seguintes, pelos anos. e comento com meu orientador que queria ter comprado o livro do catálogo, mas que não havia comprado porque era bastante caro para minha vida de sobrevivente-capes. e ele me diz então que a editora é bacana, que se talvez eu escrevesse para eles... e eu, que nunca faço este tipo de coisa, escrevo, digo que sou uma sobrevivente, que não posso comprar o livro, se não seria possível um desconto... e a Cosac me responde no mesmo dia com uma pergunta que nunca vou esquecer e que foi a seguinte: "Quanto você pode pagar pelo livro?". e eu fiquei toda atrapalhada, toda cheia de emoção, toda sabedora que ali havia um inusitado que merecia ser celebrado para todo o sempre --- e aí surgiu esse amor.

na entrevista em que Charles Cosac anuncia o fim da editora, ele fala várias vezes do estilo "caseiro" do início. e parece lamentar o fim desse sistema caseiro mais que tudo. e eu sou uma das testemunhas desse "estar em casa". lembro de fins de ano em que a Cosac dava férias coletivas para os funcionários. lembro das feiras que ia e de como os vendedores eram solícitos e sabidos, demonstrando paixão pela Cosac tanto quanto eu demonstrava. lembro de uma vez que meu amigo, morador de Rondônia, reclamou do valor do frete e a editora abonou o frete para ele. lembro da vez em que a editora não mais fez isso, mas orientou como fazer para que a compra ficasse mais barata. lembro de mim mesma, em uma dessas feiras da USP, dizendo orgulhosa para uma das vendedoras que eu conhecia todo o catálogo e que tinha boa parte dele.

por essas e outras histórias, desceu hoje em mim, cristalizado, solidificado, o sentimento de luto que me tem vindo muitas vezes nos últimos meses em relação à literatura, aos rumos da literatura, a essa pausterização do politicamente correto que tem tomado conta de todo discurso acerca do literário neste país tupiniquim de não-leitores, que agora arrota arrogantemente que já era o objeto livro, já era o estético, já eram os clássicos, só interessando a literatura adjetivada com algum apêndice da boa consciência. foda-se a boa consciência. Beckett é deus. o cu no livro de Bataille deveria emoldurar muitas capas. quero saber é se existe gente ainda no mundo que tem vísceras para sentar o rabo e ler Guerra e paz, David Copperfield, Anna Karienina, Os miseráveis, sem a merda do discurso de que - subentende-se, só pode - somos todos retardados que não conseguimos ficar mais do que dez minutos fazendo a mesma atividade. mesmo que seja nada. ou sobretudo, nada. livro na rede. livro na cama. livro em qualquer lugar.   

e eu me pergunto quem mais poderá nos dar um exemplar tão lindo da Odisseia, das Novelas exemplares, de Cervantes. para onde irá Tolstói e toda a prosa do mundo. e William Faulkner, como alimentarei meu amor por ele, condenado a partir de agora aos papéis simples e às capas de mau gosto das outras editoras? quem trará de volta em capa-tecido a marginália poética? como vou alimentar esse amor que é tátil, que é pele.

e sem educação formal, como vou saber de arte, de fotografia, de cinema a partir de agora? para onde irão as conversas com os cineastas? quem dará capas duras de plástico colorido a Octavio Paz? embrulhará em papel jornal uma narrativa de Gógol? enfiará em saco plástico o Mario Bellatin? quem confiará no esteticismo de Enrique Vila-Matas, para que eu possa xingá-lo e mesmo assim voltar nele insistentemente? e Zambra, para onde? e Tabucchi? e valter hugo mãe, que declara seu amor pela Cosac aonde vai? e Louise Bourgeois? Tunga? Duchamp? Cildo Meirelles? Bresson? Capa? Korda? Wolfenson? Arthur Omar? onde onde onde? todos órfãos da beleza.

qual editora me dirá o quanto é belo esse objeto retangular? que editora trará  Mary Popppins numa bolsinha a tiracolo? qual delas meterá um buraco bem no meio do retângulo-livro? e pintará de preto e roxo o branco das páginas? e as capas de tecido, para onde?

para onde levarei meus companheiros de viagem em Sampa numa manhã para nos enchermos de ternura durante todo o resto do dia? onde meu filho se sentará no chão e dirá a um coleguinha de seu tamanho que tem este e este e mais este livro?

qual editora me perguntará quanto posso pagar por um livro?
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tenho a impressão de que nenhuma. porque a Cosac sempre me pareceu ser da ordem da paixão. do sonho --- da irresponsabilidade que está em toda paixão. em todo sonho. sim. que dor perder tanta beleza.
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