quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

nos dias de São Paulo

Não, não
São Paulo é outra coisa
Não é exatamente amor
É identificação absoluta
Sou eu 
(Itamar Assumpção)













preciso dizer, antes de mais nada, que em um dos dias que perambulei por São Paulo, com uma heinekken na mão na avenida Paulista, sozinha, mas inteira feliz, como naqueles cartões-postais que imprimimos para fantasiar nossa história, eu pensei que estava toda linda. e linda porque estava ali como eu havia imaginado, mas que havia dúvida de não conseguir. e imaginei como era bonito ter coragem de me olhar e ver que havia um tanto bem errado, que ou mudava ou seria um sem-fim de erros. agora que se avizinham meus 42 anos, penso estar mais próxima da velhice do que da juventude. no entanto, quanto mais envelheço, mais quero me rebelar contra a cristalização. quero estar pronta, ainda, para mudar. e eu pensava em Mariamada, Inildo, Manamácia, Maneca; essas pessoas todas tão distintas de mim, mas que aprendi a admirar justamente pelo que não sou. e que só poderei ser cortando uns pedaços da minha carne.

eu sou uma pessoa muito impertinente. as pessoas me amam ou me odeiam. e algumas me amam e me odeiam. sou difícil. mas quero crer, no que vejo de mim, e não posso alcançar no que os outros veem em mim, que sou fácil de lidar. quando gosto, gosto muito. quando não gosto, sei ignorar, embora saiba travar grandes lutas. e apesar disso, de ter uma boa imagem de mim, como parte dessa cegueira que nos constitui, eu quero ser outra o tempo todo. eu quero ser a que muda, a que se rebela diante de qualquer conselho, mas que, com a cabeça longe da predição, no silêncio, ouve, não uma voz interior, mas essas outras tantas vozes - nesse caso, mariamada, inildo, manamácia, maneca. eu quero ser como elas e ele. mas quero ser, sem que minhas vísceras sejam destripadas.

dá para ser assim aos 42 anos? acho que dá. eu quero marretar mil vezes minha cabeça antes de cristalizar meus defeitos. e antes de esquecer minhas alegrias. eu fui uma mãe velha. quando meu filho tiver 15 anos, eu terei 50. é muito tempo. preciso envelhecer até lá com a alegria que ainda me habita agora (e sei que há uma questão de língua portuguesa nesta frase).

e foi assim que fui para São Paulo. fui porque é uma das minhas cidades. como disse Itamar, vai que nem é amor. é identificação. São Paulo::: aquela que cabe na palma da minha pica, se eu tivesse uma. é pequena a minha São Paulo, mas é medonha. fui como um dia fui para Bruxelas ver o show de Bob Dylan --- só porque dava um belo conto que nunca escrevi --- sem tostão algum. fui porque queria ver a Bienal de Artes. apenas isso. não programei mais nada. sabia apenas que queria ver a Bienal e assistir a quantos filmes fossem possíveis. porque um ano inteiro sem ir lá me deu uma baita saudade das salas escuras de cinema. sim, elas são caras. eu driblo essa carestia com meu contracheque de professora --- meia é o que salva.

e foi assim. calhou que pedi abrigo no apê de Talita e Michele. calhou que me apaixonei pelas duas --- tão bonitas na construção de suas vidas a duas. fiquei com inveja danada dos seus cafés da manhã e dos seus banhos a duas. dormitava enquanto elas construíam suas vidas inteiras. não sei se disse a elas, mas o certo é que saí de lá com muita fé na vida a dois. vida a duas. dividi com elas meu amor pelas cervejas. e tentei cuidar de seus amores pelo vinho. fiz um pouco do que minha amiga Lili me ensinou. e acho que diminuí o estorvo de ser hóspede. só elas podem dizer.

e andei e andei. e vi muitos filmes nas salas escuras. e errei direções. e andei em alamedas inteiras entre transitam somente carros. e não fui a nenhum shopping, afinal sempre tive a firme certeza que, quando ia, era somente por obrigação de estar em grupo. também não fui a nenhuma das lojas que costumo ir por amor quando vou a São Paulo. gastei apenas naquilo que valia a pena. naquele restaurante incrível. naqueles catálogos das exposições que eu não queria esquecer que havia ido. e mesmo assim, senti-me como Inildo e Mariamada --- sem miséria alguma. um sentimento intenso de que poderia fazer o que havia feito, por obrigação, há uma década, quando eu e Mari perambulamos pela Europa quase sem nenhum tostão --- por um ano inteiro.

e vi Liniker, por acaso, na Livraria Cultura, quando fui comprar os únicos três livros da viagem (que agora, depois de lidos, caso pudesse, pediria reembolso). e ali achei-o mais bonito do que quando vi o seu show junto com Elza Soares, uma noite depois. Porque Elza é soberana. Elza arrepia, mesmo quando ela não se mexe, na sua cadeira que deve ser uma prisão, mas que é, para nós que a vemos e a ouvimos, um altar::: um lugar para querer estar sempre. vi também Anelis Assumpção. até a última hora, fiquei na dúvida. porque em São Paulo, há sempre tanto a escolher. por fim, Anelis. e que bonita esta moça, filha de Itamar. com voz dela. sua. talvez eu tenha sido a única pessoa na plateia a chorar (respeitem meus cabelos brancos que começam a surgir na minha fronte), porque um arrastão de memórias me dominava vendo Anelis ali --- eu naquela tarde fria, longe longe longe, ouvindo Itamar, e achando que se não houvesse nenhum sentido para a vida, é certo que havia algum sentido em Itamar existir e ser o que ele foi. e vi também Céu --- a mesma moça que vi há mais de uma década. e ainda agora, acho-a inteira linda no palco. tentei entender o que era aquilo que havia sentido há tanto tempo. histórias do pop:: o poder de um corpo e de uma voz. viva Céu. Viva viva. foi uma noite incrível. achei que havia perdido a câmera. imaginem! choro, agonia e cuidado. depois, não era nada. a câmera havia ficado em casa. na casa de Talita e Michele. atrapalhei a noite delas, mas senti que Michele me entendeu. será? ---- eh, alma barroca.

e a bienal de artes deve ser uma história à parte.  no primeiro dia, senti uma dor intensa que vinha das vísceras. é verdade. faz parte do ser exagerado que sou. fiquei inteiramente perdida. e detestei. vi apenas o primeiro pavilhão. e saí de lá como o diabo foge da cruz. perdi a direção. foi aí que andei no meio dos canteiros com uma chuva fina a me molhar. achei que ali era o presente. esse fardo que ninguém sabe o que seja. que horror que horror. depois, com mais calma, voltei mais duas vezes. e encontrei beleza mesmo no primeiro pavilhão. encontrei jonathas andrade e seu peixe. e fiquei ali, apaziguada, por uma hora. ou mais. mas achei que o horror continuava por toda parte; uma visão desvirtuada do que seja arte. ou a arte destituída do que ela seja, tentando ser outra coisa. ou os artistas tentando encontrar o Outro sem saber como. tudo mentira. o contrário da arte. por fim, caminhei mais tranquila. e encontrei muita beleza. dei tempo ao tempo que uma bienal exige. quantas horas foram? muitas. e o tempo me deu outro olhar. não digo que o pensamento mudou. digo que se deslocou. --- pensei na Adri. e no que ela me ensinou naquele museu muito distante.

por fim, agora que escrevo, penso nas estações de metrô. eu sou uma senhora que foi assaltada oito vezes. oito vezes. inclusive, em São Paulo. na Augusta. porém, não tenho medo algum. com muito custo, tento ser cuidadosa. ando sempre com uma grande mochila. câmera sempre mais cara do que posso pagar. todos os documentos na carteira. todos os cartões. e ainda assim, quase nunca tenho medo. andei por essas estações de metrô onde mataram um ambulante bem agora. eu me pergunto se teria reagido. ou se o medo teria me deixado sem ação. a crer em mim, o que teria feito? teria exposto minha cara à loucura dos desgraçados? quero crer que sim. mas tenho medo. quero crer, por meu filho, que teria exposto minha cara a esses ensandecidos. teria gritado. teria reagido. porque, muitas vezes, não tenho medo. talvez sentisse medo apenas quando eu também fosse uma vítima. mas quem pode saber? é o horror de estar no mundo (há muitos anos, assaltada pela terceira vez na rua de casa, eu tive sangue frio para negociar com o ladrão que estava com uma arma na minha cabeça. lembro ainda da frase que hoje me parece inconsequente::: "ah, não, cara, você não vai levar minha carteira de novo. eu não vou tirar meus documentos outra vez de jeito nenhum".

fui ver Laura Erber no CCBB, na Sé. e andei por ali com minha grande mochila. para além do início da noite. assim como andei na Paulista para além da meia-noite. cogitei ir a pé para o apartamento das meninas. mas senti preguiça e peguei o metrô. talvez pensei que estivesse mais segura./// ver Laura foi bem bonito. não vou esquecer seus 'hum. hum. hum. hum". como quem concorda. e como quem não quer acrescentar. é bom admirar alguém que você sabe que pensa. e abrir o tempo para entender parte de seu pensamento. e ver Manuel da Costa Pinto, o entrevistador de Laura, levou-me a outro tempo. a um seminário sobre Barthes na Maria Antônia. eu, Marcia, Fabíola --- naquele tempo era tudo muito bonito --- como é o passado. elas lembram? eu, com minha parca memória, lembro das duas ---- lindas. e de Fabíola dizendo o que nunca mais dirá::: "quando entreguei o livro, não quis dizer que era do meu marido, para que ele não interpretasse de outro modo". há certas frases que só o passado explica, porque o presente decupa tudo. e já é outra coisa.

seria preciso dizer tudo dos dias. mas é impossível. ainda queria falar do "Útero do mundo". e do "Portugal, portugueses". estavam ali ao redor da Bienal, no Ibirapuera. podem até passar despercebidas, mas são exposições que dizem muito sobre o presente. e onde foi muito prazeroso me demorar.  

e o que dizer da minha noite com meu amigo Celso, onde a minha única preocupação era me manter sóbria suficiente para chegar em casa em segurança? bebi umas dez garrafinhas d'água para cumprir meu intento. e dancei. e dancei. e dancei. e misturei as águas, evidentemente. 6h30 da manhã, aguardava um Uber, de cara para o edifício Copan, com o sol nascendo, tonta e grata pela grande noite. ==

.
.
.


ainda não conheço outra forma mais bonita de trapacear os dias cotidianos, a não ser desta maneira::: nos hiatos. (((prazeres dos gostos))).