sexta-feira, 21 de agosto de 2015

um pouquinho antes, e tudo estaria igual



em algum momento dos últimos dois meses, tentei assistir a um filme por dia. quase deu certo. uma viagem e a preparação de outra atrapalharam a ideia. ou a realização da ideia. mas por ora prefiro ficar com a alegria dos primeiros dias, quando realmente consegui assistir a um filme por dia. a decisão por si só já mudou meu ritmo. e foram os dias em que me senti pela primeira vez nos últimos meses realmente feliz. vi filmes pela manhã, sem nem sair da cama, à noite, de madrugada, no meio da tarde. no notebook, na tv, no chão, no sofá. chorei baixinho, bem alto, ri, dei gargalhadas, dormi no início, no meio e nunca no final de algum filme. e enterrei a ideia numa sequência de quatro filmes.

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perdi algo nos últimos anos que não consigo mais reaver --- parece que meu tom alegre misturou-se com outro menos admirável. sempre me espanto quando alguém me diz que sou reclamona. ontem márcio me disse isso. doeu bem aqui na minha alma, se ela. passei o resto do dia pensando no meu amigo Binho que durante um tempo me ensinou a alegria da impossibilidade de reclamar. sempre penso nos meus amigos antigos quando percebo minhas perdas. o tempo. 

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fiquei tão doida em Brasília. uma doida bonita. no último dia, fui ao cinema sozinha. uma sequência de quatro filmes. no último, a atendente me perguntou. "é porque moro longe". e depois me enchi de questões. nunca quis tanto abandonar o que sei fazer como agora. mas talvez imitando a personagem de algum filme perdido na memória parca, recostei-me no táxi que me trazia de volta e sorri levemente: logo eu, que sente tanto espanto com aqueles que querem abandonar aquilo que sabem fazer de melhor. a vida é mesmo este imprevisível agridoce. 

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recebi um email que me deu uma alegria tão grande que deixo anotado aqui para não esquecer. no que sei fazer. 

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parece que foi ontem, mas já faz mais de quatro meses que mudei de cidade. e hoje, num aeroporto quase vazio, estou fazendo a viagem de volta para pegar o Poeminha. um tempo sem ele pareceu uma vida muito longa. a frase do título me veio pensando nisso. não. nada pode ser igual depois de quatro meses da vida de um menino-poeminha. perdi um tanto de coisas. fiquei apenas com o que chegava pelas próteses. tio Inildo e tia Rô enviaram centenas de fotos. e Tatupai ligava a câmera para que eu o visse à noite ou dormindo ou não dando muita bola para mim. mas nunca me senti desamada. e penso que ele também não. terá herdado de mim essa confiança no amor?

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eu já me enganei uma e outra vez por causa dessa confiança. um pouco depois e nada mais é igual. um dia desses, dizendo em voz alta os meus pecados, sem confessar os dos outros, pensei nisso também. de como basta um instante para nada mais ser igual.  e como fazer para que o amor do outro permaneça? e o seu próprio amor permaneça? eu nunca soube essa resposta. só sei do seu contrário. quando amei sem poder amar, de volta das cidades frias, espantei-me com minha própria frieza. nos dias mais tristes, eu apenas olhava o porvir. e tinha certeza de que aquele frio passaria. a soberba da sobrevida.

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uma moça linda chamada Aline sempre quando escreve me faz chorar bem alto. ela parece saber tanto de mim que eu mesma me espanto. conto coisas que nem eu sabia que podia contar. A vida é mesmo feita a golpes de pequenas solidões. foi o que ela me disse. e me pareceu tão certeiro. ontem passei o dia assim. e parte do dia de hoje. vindo para casa, de bicicleta, espantei-me com esse golpe de pequenas solidões como se o sol quente fosse a materialização desse golpe. Nina Simone, coincidentemente, estava na vitrola. foi só apertar o play. e de repente, eu não estava mais só. vou bem ali ---- encontrar Tatupai e o menino Poeminha. 

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perguntei ao Tatupai para onde eu deveria ir. ele parece ter se espantado.  como se nunca houvéssemos deixado de estar lado a lado. falei para minha manaMácia para não me pressionar:::: perguntas exatas não devem ser feitas para quem não tem respostas exatas. eu não sei quanto de mim deixei de ser para ocupar agora esta posição de não insistir em respostas exatas. mas sei que, por ora, isso me dá alguma tranquilidade. embora nenhum risco tenha sido abortado. 
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sim. de vez em quando sinto falta dos diários da infância. estarão todos eles queimados?
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e juro. se eu tivesse a técnica, largava tudo. na croácia, esta menina que sobe a árvore nunca vai saber que eu a fotografei, roubando-lhe o seu instante.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Para o filho, na Marcha das Margaridas.












"Brasília está florida. estão chegando as decididas".

Poeminha, os últimos três dias têm sido de muita emoção. sinto-me fazendo parte da História - da história em tempos sombrios, como me disseram dois amigos dos mais amados. são tempos sombrios, filho, mas tenho convicção de estar no lado certo. vão dizer muita coisa sobre o que vim ver e viver aqui em Brasília, a capital do país. mas não acredite, filho, se um dia você topar com a miséria da nossa mídia nacional. 

dirão que as quase cem mil mulheres que vieram do Brasil inteiro para a 5ª Marcha das Margaridas só vieram porque foram financiadas pelos sindicatos (que por sua vez foram financiados pelo poder público). e vão fazer esta afirmação para denegrir a imagem da longa viagem destas mulheres em direção à Marcha. mas não acredite, filho. estas margaridas (mulheres e homens trabalhadorxs do campo, da floresta e das águas, mais mulheres do que homens), de fato, não pagaram suas passagens para virem até aqui. e boa parte delas nunca havia viajado. e isso porque vivemos num país absurdamente desigual --- e elas por mais que quisessem não teriam dinheiro para vir até aqui. mas não há nada de errado nisto::: é função dos sindicatos organizar e garantir condições para a  realização de manifestações como essas -- e de captar recursos para isso.

as mulheres trabalhadoras vieram porque acreditam nas causas que defendem. porque há um movimento (invisível para boa parte da população) que transformou a vida dessas mulheres trabalhadoras nos últimos anos. isso se chama políticas públicas voltadas para as populações necessitadas, filho. e políticas públicas que não existiam antes do governo popular do PT ter chegado ao poder. e você corre o risco de nunca saber que elas existem porque essas políticas - mesmo agora, no momento mesmo em que acontecem - não aparecem na mídia, sempre interessada em mostrar mais os escândalos do que as realizações. 

nos últimos três dias, estive muito próxima dessas mulheres que acamparam desde segunda no estádio Mané Garrincha e hoje atravessaram as grandes avenidas de Brasília para dar um "acocho" no congresso nacional::: e eu te garanto, Poeminha::: a imprensa mente e age de má-fé quando trata a marcha por meio dessa visão estreita e deturpadora: essas mulheres sabem que antes não tinham visibilidade alguma. e visibilidade onde é importante que tenham: no lugar onde vivem. e agora têm. elas têm brilho no olho. elas sabem dizer o que de bom acontece e o que esperam que ainda aconteça. e estou falando de um aprendizado bonito e persistente de empoderamento (uma palavrinha que eu encrenco, mas que agora existe no nosso vocabulário para sinalizar mudanças nas relações de poder daqueles que batalham por reversão nos lugares de poder).      

hoje há um ódio generalizado, Poeminha. e eu fico feliz de não fazer parte dele. o sistema político do Brasil sempre foi corrupto; algo como "todo político é milionário", mesmo que tenha nascido pobre de marré-marré. e nunca  se questionou de onde se anoitecia pobre e se acordava milionário. pelo contrário: nossos "grandes políticos" nunca esconderam a sua face abastada. o ícone da nossa democracia desapareceu no mar em um helicóptero - e nunca questionaram como era pago um helicóptero para sobrevoar os mares. mas agora, todos viraram justiceiros. todos querem acabar com a farra instituída há centenas de anos. 

e sim, Poeminha. eu também fico indignada porque essa patifaria continua aí como sempre esteve. mas eu já era indignada antes. e daí eu posso começar a te responder por que continuo apoiando um partido como o PT no poder, apesar de ele ter compactuado com esse sistema político corrupto. e por que aprendi a amar a Dilma mais do que ao Lula -- embora ontem eu tenha chorado do início ao fim de seu discurso::: o discurso de alguém que sabe mexer com nossas emoções mais primitivas -- e hoje tenha reconhecido em Dilma uma limitação na sua capacidade de emocionar pela palavra. mas acredito quando ela diz que enverga, mas não quebra. acredito muito mais nela do que naqueles que a rodeiam. e mil vezes mais do que naqueles que bradam a sua ingerência. e se acredito é porque minha indignação com as injustiças, com as patifarias, vem de muito antes. desde sempre reconheci os abismos e sempre me levantei contra eles. e como você já tantas vezes comprovou, Poeminha, eu sou uma leitora --- não apenas dos livros, mas também do mundo. 

nunca fui uma militante, filho. hoje foi a primeira grande passeata da minha vida (e tenho que agradecer sobretudo a nossa amada Lili por estar aqui), mas sempre estive próxima da militância. sempre soube ler o mundo e por isso estar próxima dos grupos que defendem micropolíticas de empoderamento - muito antes dessa tal palavrinha existir. e quem fez isso no Brasil, filho, foram os sindicatos, os movimentos estudantis (no meu tempo de juventude, antes de ser corrompido por uma ideia de Deus do merecimento, até o movimento católico, onde conheci uma das pessoas mais lindas que já passou pela minha vida) e  os partidos políticos como  o PT, que se constituíram pela defesa de um estado utópico de participação popular.

é por isso, Poeminha, que não farei "panelaço" nem sairei às ruas no dia 16 -- o dia que se planeja mais uma vez pedir o impeachment da presidenta. tenho vergonha alheia dessas pessoas --- que vivem num país que conheceu a ditadura e agora querem aplicar um golpe na democracia. por ódio. por puro ódio. por que não elevaram suas vozes contra a corrupção antes, filho? eu arrisco uma resposta: porque não estão levantando suas vozes, de fato, contra a corrupção, mas pelo incômodo do aparecimento dessas micropolíticas que começam a afetar suas parcas vidas, suas alienantes vidas.
 
este não pode ser o nosso lado, Poeminha. nunca foi. e nunca será. podemos viajar de avião como eles, podemos comer filé e picanha como eles, podemos morar numa casa boa como a deles. você pode e vai estudar nas escolas de seus filhos, mas não será um deles. não queira ser, Poeminha. faça como sua mãe. adentre os seus covis e mantenha a sua diferença. a sua soberba. saiba ser de outra linhagem. porque minha herança é esta::: eu vim dessas mulheres e homens que estão nas imagens que flagrei hoje --- desses rostos marcados, desses pés rotos, desses sorrisos soltos e soberanos.    

e não se preocupe, Poeminha. eu vou te mostrar nas formas mais bonitas esta nossa herança. como agora --- agora que eu escrevo estas linhas como uma promessa para o seu porvir. você confia em mim? pois confie. eu confio bastante. em mim. em você. nas pessoas todas que vi nesses últimos três dias.
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# O nome da Marcha é uma homenagem:: Margarida Alves, sindicalista no Sindicato dos trabalhadores rurais de Alagoa Grande, na Paraíba, dizia que "É melhor morrer na luta do que morrer de fome". E foi morta pelos latifundiários por causa da força de suas ideias e suas lutas. mas virou semente. hoje são muitas margaridas. e se elas escolhem de que lado estão, não é à toa. a primeira vez que estiveram em Brasília foi em 2000. não foram recebidas pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. não teve ninguém para ouvir suas pautas de reivindicação. nos anos seguintes, quem as atendeu foi Lula. e foi Dilma. de que lado poderiam estar elas, senão dele e dela? e como poderiam estar ao lado dos que estarão nas ruas domingo, se nenhum deles sabe de suas existências? veja. são respostas fáceis. 

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

fico cansada, juro



Neguinho não lê, neguinho não vê, não crê, pra quê?
Neguinho nem quer saber
O que afinal define a vida de neguinho

Neguinho compra o jornal, neguinho fura o sinal
Nem bem nem mal, prazer
Votou, chorou, gozou: o que importa, neguinho?

Rei, rei, neguinho rei
Sim, sei, neguinho
Rei, rei, neguinho é rei
Sei não, neguinho

Se nego pensa que é difícil, fácil, tocar bem esse país
Só pensa em se dar bem - neguinho também se acha
Neguinho compra 3 TVs de plasma, um carro, um GPS
E acha que é feliz
Neguinho também só quer saber de filme em shopping

Rei, rei, neguinho rei
Sim, sei, neguinho
Rei, rei, neguinho é rei
Sei não, neguinho

Se o mar do Rio tá gelado
Só se vê neguinho entrar e sair correndo azul
Já na Bahia nego fica den'dum útero
Neguinho vai pra Europa, States, Disney
E volta cheio de si
Neguinho cata lixo no Jardim Gramacho

Neguinho quer justiça e harmonia
Para se possível todo mundo
Mas a neurose de neguinho vem e estraga tudo
Nego abre banco, igreja, sauna, escola
Nego abre os braços e a voz
Talvez seja sua vez:
Neguinho que eu falo é nós

Rei, rei, neguinho rei
Sim, sei, neguinho
Rei, rei, neguinho é rei
Sei não, neguinho
(Caetano/ Gal Costa)

nesta semana, um médico me perguntou: "você acha que bebe demais?". e eu respondi: "uma pessoa que bebe nunca acha que bebe demais". o médico, silenciado, olhou para mim. parecia surpreso. acho que não esperava por minha resposta. não espera uma mulher dizer que suas dores no estômago podem estar relacionadas aos seus maus hábitos que se traduzem em cerveja e coca-cola.

o mundo está muito chato. 

eu defendo muitas bandeiras. eu não aceito que dividam o mundo em azul e cor de rosa. eu protesto contra o preconceito aos gays aos negros aos pobres aos nordestinos. isso, das minorias. e desde sempre. muito antes de ser moda. assombrei minha família amada quando disse em alto e bom som que não via problema algum em ser gay. e quando me disseram que, além de gay, havia a desconfiança da promiscuidade, eu disse apenas que estava no script. e quem pode negar que é maravilhoso? muito antes de ser politicamente correto. porque não gosto de nada do "politicamente correto" e suas demandas. nunca fumei --- mas me assombra o mundo que varreu os fumantes para as ruas --- entregues à própria sorte da discriminação. Tatupai é fumante. e vez ou outra me preocupo. não quero que ele morra de câncer. mas não querer que seu amor morra é do humano. penso.

o "meu problema" é que penso que passamos por uma higienização do presente que por vezes me dá engulhos. estamos vivendo um revival mal feito dos movimentos sociais dos estados unidos. agora, tudo precisa ter uma ordem bem demarcada. como se, nordestina, precisasse proferir meu ódio aos que odeiam os nordestinos, mas proferir de tal modo que pareça que apenas reivindico o lugar que nunca tive. mas que lugar de reivindicação é este? não é o meu.

odeio a palavra bullying. a porra da palavra já prova nossa submissão às ideias vindas não apenas de fora, mas em forma de onda. quando poeminha foi ignorado por seus coleguinhas por gostar de pôneis, não pensei em bullying. pensei que é do viver em grupo. e vi nisso a oportunidade de explicar a ele que o mundo, às vezes, é bem feio. e que está ao nosso alcance não sucumbirmos. ser feios como os que julgamos ser feios é a pior das posições. acredito nisso. hoje nos impelem a nos afastar de tudo que não tenha uma bandeira efetiva e visível. estou fora. falei para o Poeminha: -------

não quero o mundo no seu contrário. quero o suplemento. quero amar os indígenas e os não indígenas. o branquinho e o negão. ou o neguinho. quero amar as bichas. mas não como categoria.  não quero nada em categorias. e quero poder dizer que, se defendo bandeiras, me cansam os olhares todos voltados para as bandeiras. tenho visto muitos enganos --- e todos passam por este olhar "preservacionista" - amam os indígenas e os negros paramentados de indígenas e negros. quero ver amar o neguinho e o índio com seus cordões de ouro e prata e seus carrões f1000qualquercoisa. pensam num mundo estático, como se todos não estivéssemos neste movimento errante de esquecermos as próprias tradições.

como ser nordestina. ser nordestina é uma desgraça. cearense, então. o cearense não tem o orgulho do pernambucano, do baiano, do paraibano. o orgulho do cearense é ter sobrevivido a grande fome. somos um povo acanhado. não temos o frevo nem o axé. vivemos do forró - que só teve seu período áureo com luiz gonzaga e com o tal forró universitário. mas temos tanto! e foi este tanto que esteve sempre comigo --- o que me permitiu estar aquém ou além da estereotipia, a depender do momento.

em paris fui arrastada pelo meu supervisor de doutorado que ao descobrir aparentemente surpreso que eu havia lido a trilogia de beckett saiu me apresentando como a brasileira que leu... e não esbocei nenhuma reação, a não ser um sorriso amarelo de quem mal sabia falar a língua daqueles que me passaram a ver como exceção. mas me vingo até hoje ao transformar meu supervisor na mesma estereotipia::: um francês idiota que não sabe que no Brasil se lê Beckett. o que quero dizer com isso é que todas essas classificações tornaram o mundo muito chato. entendo a história. indigno-me com a história. mas não. não estou a fim de fazer uma revisão da história a partir de uma higienização do presente. 

porque batalhar pelas diferenças não é o mesmo que querer transpor tudo ao seu contrário. não me alinharei nunca àqueles que nas passeatas defendem a volta à ditadura. essa gente classe média que não me representa. e defenderei até sempre um partido como o PT no poder --- falei ontem mesmo:::: "se vocês pensam que esta universidade existiria se um partido como o PT não estivesse no poder, é porque vocês não entendem nada de política". e vou na marcha das vadias, nas paradas gays. sou a favor das cotas. e meu filho não vai se beneficiar delas, porque ele não é neguinho para os padrões brasileiros e eu não vou ter coragem de mantê-lo na escola pública. mas não me peçam para fazer o jogo da substituição. não me peçam para cooperar na instituição de uma nova cultura --- que tenha como premissa o esquecimento das tantas culturas.

um exemplo::: acho mais importante que o neguinho brasileiro leia o branquinho guimarães rosa e o sarará graciliano ramos do que leia os branquinhos agualusa e mia couto. e acharia diferente se o povo soubesse fazer de outro jeito::: colocar tudo junto e misturado. mas só vejo o contrário. uma parte de professores totalmente envergonhada, e outra indignada, quando se fala em ensino da literatura brasileira, da arte brasileira. agora, só pode ser literatura das minorias, arte das minorias. como se nós mesmos não fôssemos uma porra de país que mal sabe o que seja literatura, o que seja arte. que mal sabe quem foi graciliano ramos e guimarães rosa, quem foi hélio oiticica. mas não::: preferem que agora se saiba quem é mia couto e agualusa (incríveis, sem dúvida, mas quem conseguir me provar que a prosa de agualusa vale um dedo da de rosa, juro, como eu digo::: não corto o dedo do meu filho, mas corto o meu). porque estou falando de deslumbre: do momento ímpar de ler grande sertão: veredas e ficar chapada a vida toda a cada vez que lembra. e eu li barroco tropical, do branquinho agualusa, e vi muito mais pretensão do que qualquer outra coisa. fico cansada, juro. e não é nacionalismo. é política de leitura. defendo que se estude literatura brasileira porque somos brasileiros. e também norte-americana, francesa, italiana, africana, japonesa, porque somos brasileiros e precisamos abrir o olho para o resto do mundo. não para um certo mundo. mas para o mundo todo. me ajoelho diante de mia couto como me ajoelho diante de beckett. é mentira ---- me ajoelho mais diante de beckett de dostoiévski de kafka. e que se dane o fato de eles terem nascido na europa branquinha. são neguinhos como eu. 

quero estar no entremeio. por que diabos não posso? por que diabos não posso ser uma mulher que desconfia que sua dor no estômago é do excesso de cerveja e coca-cola que ingere? ou não. e não sou feminista nem defendo uma masculinização, uma europeização do mundo. sou mulher. tenho uma independência emocional que cultivo com orgulho e dedicação. e conheço poucas pessoas que a tem. preciso ser amada por poucas pessoas. e mal me mexo quando me descubro não amada. mas sou mulherzinha também. cuido da casa. lavo a roupa da casa. passo a roupa da casa --- isso significa que quando o tatupai está aqui eu cuido dele. eu dobro as suas camisas e coloco-as na posição de usar no guarda-roupa. mas Poeminha, quando tinha quatro anos, disse espantado: "Papai, mulher cozinha!", porque nunca tinha me visto cozinhar. porque é isso, né? a porra da diferença é isto. é branquinho e neguinho tudo junto e misturado. é tudo cor. é tudo gente. é tudo sentir na pele. e para mim, esta deve ser a política.

(hoje recebi um abraço muito apertado. da moça que fez uns vinte tipos de raios-x do meu corpo. junto com o abraço, ela me disse que desejava que eu ficasse boa. disse que acreditava em Deus, que Deus era a cura. falou abraçada a mim. e eu a abracei fortemente. agradeci com uma grande alegria no coração. não era ali que teria medo do abraço de uma desconhecida. mas não menti::: disse que não era religiosa. mas que agradecia enormemente aquele abraço e aquele desejo que eu melhorasse. e por fim, fiz a reverência de agradecimento: curvei os meus joelhos e disse: "obrigada!". curvei-me àquele desejo diante da diferença. ela tampouco titubeou. abraçou-me mais uma vez).