sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Sobre as promessas



Não há nada mais difícil do que desmontar situações estabelecidas.                         Sandor Marai, em De verdade

para 2020, eu prometo --- na tentativa de apanhar os sonhos:

--- ler mais;
--- fazer exercícios regularmente; consequentemente, cuidar mais da saúde;
--- beber menos;
--- gastar menos ainda;
--- estar mais com meus dois homens;
--- ser menos intransigente no trabalho. 
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eu pensava sobre essa lista de boas intenções, enquanto caminhava indolente, no início da noite morna, quando me veio o pensamento de que toda promessa é um sair-de-si. 

eu não preciso fazer promessas do tipo:

--- cuidar mais da casa;
--- ser mais dedicada ao trabalho;
--- ter mais coragem de discordar.

é o contrário. para cumprir a lista de promessas, é preciso abandonar o que constitui a nossa identidade, o ethos, as perfomances visíveis e invisíveis. no meu caso, é preciso desabituar meu corpo do imenso corpo de trabalho e disciplina que adquiri ao longo da vida. e não é pouco::: 45 anos adestrada para em todas as qualidades e defeitos que me compõem, que evidentemente não surgiram todas de uma vez, mas são suficientemente sedimentadas a ponto de parecerem ter assinado pacto de longevidade. 

é verdade que, principalmente nos últimos dois anos, tenho conseguido fazer torções bem significativas em relação a essa identidade - talvez porque eu não me identifique com uma porção de gestos que teimosamente constituem meus dias.
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será preciso um mata-borrão? como borrar isto que sou? como borrar este olhar duro, quase sempre certeiro, sobre o outro? é bem difícil, porque há aí involuntariedade, perspicácia, percepção. ainda assim eu me pego pensando que, neste ano, eu quero olhar menos para o outro. não que eu faça propositalmente. de modo geral, a vida dos outros me interessa quase nada. mas me interessam os gestos, as falas, o modo como a pessoa respira quando fala e revela se ela está nervosa, cansada, em paz, em pose. tenho essa facilidade de radiografar o outro --- de observar o outro como que nu.

mas hoje eu penso que não há outro modo de viver a não ser acatar o modo de vida de cada um que está próximo. e buscar aí alguma beleza, alguma verdade. porque há muita fragilidade nesse momento. todos estamos afetados por modos de vida que não são exatamente os nossos. daí, talvez o desafio quase sempre seja este::: cultuar promessas e vê-las se desfazendo no decorrer do ano, mas restando princípios, centelhas.

mas não é sobre isso. é sobre mim. sobre as injunções. não que as promessas sejam injunções. promessas são uma tentativa de domar o porvir::: eu vou fazer issoeu vou fazer aquilo --- vou fazer o que eu ainda não fizou fiz de modo incipiente. e vou transformar em hábito, modo de vida, estilo, todo dia. por isso, elas resultam quase sempre em nada. porque não há nada mais difícil do que movimentar o que se comporta com um estar-aí.

um pouco do nosso horror diante dos nossos anseios vem da incapacidade de nos retorcer de outro modo que não aquele de todos os dias. como é que alguém que penteia os cabelos todos os dias de um mesmo jeito, de repente, vai fazer diferente? a contrapelo? não é que não tentamos. é que, no momento mesmo que tentamos, vem a dúvida: será que não é melhor deixar como está? é um apego que é diferente do apego do querer-bem. porque deve existir, no mínimo, duas vontades: aquela que condiz com a imagem que fazemos de nós mesmas e aquela que resiste porque é o que fazemos desde sempre.

ou nem é mesmo dúvida. é porque continuar a ser o que somos --- mesmo que não seja o que queremos ou pensamos ser --- não dá trabalho. só dá trabalho de manhã, quando acordamos e vem na mente que é aquilo mesmo::: é mais um dia sem cumprir as promessas.

de tudo que ainda poderia dizer, o que há de mais aparente que ainda pode ser dito:::

aos trancos e barrancos, eu faço caminhadas desde que vim para a Bahia. quando vejo que já faz semanas que não caminho, me chicoteio horrores. Rosabela é minha fiel companheira, que me cobra todas as noites para eu me por em movimento. quando consegue, ela me arrasta pelo calçadão, serelepe, pronta pra latir por qualquer cachorro que passe. parte dos dias, não rola. mas quando me perguntam que exercício faço, respondo sem titubear: eu faço caminhada. e é verdade. jamais poderia dizer isso antes. lá para outubro, nesse mês de tantas promessas que se configura como "meu", eu comecei a fazer pilates. parei em dezembro e retomei agora, ainda nas férias --- a promessa é não parar mais.

não sei quando eu desisti dos cabelos longos ou meio longos, mas hoje não consigo imaginar como é que passei a vida toda com um cabelo que não tinha nada a ver comigo. gosto demais dessa coisa esfiapada, curta, desarrumada, que agora é meu cabelo.

passei boa parte de minha vida usando calças jeans e camisetas. depois, passei para calças jeans folgadas e estranhas. se eu tivesse boa memória, lembraria quando foi que praticamente as abandonei e enchi um guarda-roupa de vestidos, saias e blusas estampadas ---- sei quais foram as razões. e tenho imenso orgulho do que me tornei depois daqueles longos dias tristes --- adquiri um amor pelo meu corpo que transcende  a questão do vestiário. não é fácil abandonar a estética da magreza, que sempre me constituiu. às vezes, sinto um espanto enorme com o que vejo como decadência mesmo da estrutura do corpo, que vai se enchendo de volumes, de pesos, de dobras, mas esse espanto nunca barra a minha disposição de deixar o corpo livre, de amá-lo, de cuidá-lo. dá trabalho, porque a(s) doença(s) faz(em) parte de sua composição, mas eu sigo --- feliz.

nos últimos dois anos, por imposição do tempo, eu tive que largar a casa. Tatupai disse que nem percebeu, porque ele usa do artifício da não-visão para fazer de conta que a casa existe por si só, sem necessidade de mãos humanas para mantê-la limpa e organizada --- mas  a verdade é que já não cuido dela como antes. há recaídas, é vero. e continuo apegada a um senso de organização e de limpeza. e o fato de ter que ter que passar a ignorar um dos seus cômodos trouxe muitas revelações sobre mim ---. seria preciso uma longa reflexão sobre a hospitalidade que talvez não caiba aqui. apesar disso, hoje consegui roubar muito tempo que antes era da casa --- nesse tempo, leio, sobretudo.

sobre as leituras. sem querer voltar a postagem anterior, eu faço uma última promessa::: ler com mais critério, a partir do que estou definindo como objeto de trabalho, sem deixar de lado livros que me fazem um bem danado ler pelo puro prazer de leitura; quase como um roubo, uma insubordinação, um hiato:::

porque talvez seja este meu defeito mais antigo:::: a capacidade de abrir hiatos diante das clareiras do caos. tudo ao meu redor pega fogo e me vem a certeza de que nada me diz respeito. o que me diz respeito são estas promessas sempre a cumprir.
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