quarta-feira, 20 de agosto de 2014

mar mar azul azul (paloma vidal)

quanto tempo dura um luto?


o domingo cinza no mar azul de Paloma Vidal (resisti não à facilidade das cores!)... Mar azul é um livro bem bonito. é triste de doer lá no osso. e bem escrito. é intimista na sua narração em primeira pessoa. e tem aquelas parecenças com a literatura contemporânea que eu, leitora "por obrigação" desta literatura, por vezes reclama. e ainda assim, termino pensando que é um daqueles livros que alimenta o oco da existência. todo a serviço da sutileza. 

a epígrafe de Agnés Varda - je me souviens pendant que je vis - é como um corpo que envolve toda a narrativa. lado a lado entre o esquecimento (do pai) e a própria incapacidade de esquecer, a protagonista deste romance escreve. escreve, nas costas dos cadernos deixados pelo pai, o romance que leio no domingo cinza. o "agora" ganha diversas camadas, mesmo que não seja nenhuma novidade tal procedimento. é bonito porque é nesse enfrentamento do presente que a protagonista - septuagenária - transita entre o corpo físico e este impalpável que denominamos passado. 

um passado que está materializado, para o leitor, apenas nas primeiras páginas do romance (e na última) por meio das cenas de duas amigas; a que agora escreve e a que desaparece. todo o resto é memória e tentativa de esquecimento, trespassado pela presença física. é o que há de melhor no livro::: uma circularidade que retoma a cada final dos curtíssimos capítulos o incômodo de um corpo que se deteriora pela velhice. é como se fosse este corpo que, por mais que seja cuidado com esmero por idas detalhadamente descritas a médicos especialistas, se recusa também a ser esquecido. é ele, pois, o que salva. a memória é a doença. e o ter que cuidar do corpo é aquele pouquinho de "descanso" necessário para a sanidade mental. não à toa, numa narrativa toda marcada pelo signo da água, seja na natação que a protagonista sem nome consegue estabelecer algum vínculo com o presente. 

é porque ser o avesso não é mesmo fácil. e o que vemos/ lemos é a mesma história do pai que se foi. é a circularidade terrível da vida. como o pai que a abandonou, e que morreu desmemoriado longe de todos, longe de sua terra, despatriado, esta narradora também caminha para a morte, também escreve em velhos cadernos de outro lugar, num outro lugar. o deslocamento, aqui, a viagem, não gera nenhuma mudança. pelo contrário. longe do seu lugar, longe dos "seus" - que não existem mais -, a luta diária tende a se resumir ao esforço de manter uma certa rotina, por mais que ela também seja repudiada. 

a viagem, assim (a bela viagem onde se encontrou o amor), não leva a lugar algum, não produz nenhuma mudança. é a imobilidade, o estar-só, o que resta de toda uma vida. tem não como não me entristecer com este belo romance. 
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Merci, jesuscristinho, por ter me dado insônia, bom gosto, bom humor, as lágrimas e Nina Simone para embalar tudo isto.       

Para Mariana, que sabe de silêncios.



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