segunda-feira, 3 de novembro de 2014

4.0


é fácil não fazer 40 anos. e ao mesmo tempo é de uma inteireza. perdi aos 40 muito de tudo que eu tinha. perdi mesmo a petulância. é tudo que eu tinha aos 20 anos. e que eu tinha aos 30 no mais completo esplendor. agora, talvez me reste apenas o sorriso farto, a gargalhada no segundo inexato que aprendi com meu amigo Rivero. cheguei aos 40 anos com quase todas as marcas e - talvez - justo no momento em que achei que elas tinham desaparecido. quer saber o horror que é uma pessoa, pergunte se ela quase morreu.

o horror de ser uma sobrevivente que escreve bobagens nas longas noites é que isto - esta sobrevivência - acaba virando história. e se a pessoa escreve nas longas noites, mas não é escritora, nem mesmo de mentirinha, a história é quase sempre piegas. como a minha. cada vez que lembro da minha doença - como Barthes devia lembrar de sua tuberculose extemporânea - me vem esta frase cafona::: "eu vi a cara da morte. e ela estava viva". que nada tem de cafona em sua origem, mas que de tanta repetição só pode mesmo hoje ser cafona. mas se a repito, é porque viva é a cara da morte quando ela está muito perto. ou seja, cafona. e agora, esta morte-viva não me deixar sentir a dor que talvez eu devesse sentir. porque agora viva-viva eu não quero sentir dor alguma. porque a dor física, do que me lembro, é tão mais soberana. não é a memória do medo da morte que dói. é a dor do corpo que me fez perder o medo da morte. esta dor é tão mais violenta do que a morte deve ser. porque aí a morte se mostra como finitude daquela dor. "morro, logo deixo de sentir esta dor". é assim que é o guilain-barré::: "morro, deixo de sentir. está de bom tamanho. vivi bem. já li ulisses já li em busca do tempo perdido já morei em paris vou morrer segurando a mão de um amor". "quase posso morrer, se não fosse meu filho". até que, numa manhã, essa dor para de existir. e de novo dá vontade de viver.

e de novo. então, de novo, estou quase sem medo. e quem tiver memória, que lembre.
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e o que me faz  feliz, aos 40 anos? um tanto um tanto. mas digo duas, esta e uma outra - óbvia::: me faz feliz ter um blog. e poder escrever nele um pronome pessoal oblíquo no início da frase. e pode escrever só em minúscula, excetuando o nome de pessoas. e ignorar as vírgulas quando bem entender. me faz feliz, o oblíquo e também as minúsculas e ignorar as vírgulas porque é um exercício de liberdade este escrever para nada, este escrever narcísico que não é exercício algum. é só um escrever.

a óbvia. e me faz feliz Poeminha, que é minha obra. e uma obra inacabada. quase nada sei dele. e quase nada preciso antever, que é também um exercício de aprendizagem. um cuidar do outro que é, primordialmente, um cuidar de si. ontem, eu tive que dizer a ele que estava irritada porque era uma idiota que fazia trabalhos físicos por 10 horas seguidas::: como uma criança triste, dizer: "sabe, filho, quem faz isto com o próprio corpo só pode ser uma idiota". e ouvi-lo responder com um sorriso quase tímido, cabeça do lado:::  "então, mamãe, você deve se deitar aqui juntinho do meu lado que eu vou te cuidar".
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então, me lembrei de outra frase cafona. "eu fui sempre aquela meio poliana, quando não fazia sentido algum ser poliana".
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(o que eu queria dizer naquela noite ao Dariano, e acabei não dizendo, é que esta cidade tirou alguma parte de mim. eu era menos dura com o mundo. e com as pessoas. porque o mundo e as pessoas eram menos duras comigo. antes de vir para cá, eu conhecia muita gente "miolo mole", tão "miolo mole" que dava até susto de ver. e era um miolo mole de alma. eu era a menos miolo mole. só minha melhor amiga não era miolo mole. e a gente brigava feio para não perder a nossa essência. para continuarmos a ser o que éramos:::: o exato oposto. tão oposto que, no meio de tanto miolo mole, ela era a única que me colocava no prumo nas longas manhãs em que acordava enquanto eu dormia das longas noites. eu conhecia gente como o Bado, que inventava uma música em pleno Ibirapuera e não tinha medo de no dia seguinte apresentá-la ao mundo, no mesmo Ibirapuera em que Mano Chao reverenciava esta mesma música que eu havia visto nascer. eu conhecia o frio de Paris e jamais sentia meus olhos gelarem nas manhãs frias. eu acordava as 10h da manhã para as 10h40 ver o sorriso franco do bilheteiro a entregar o único bilhete de cinema daquela manhã. e passava a maior parte do tempo sozinha e quase nunca, quase nunca, a não ser naquele último metrô, eu me sentia sozinha. o que eu queria dizer ao Dariano, e não disse, ou disse, é que eu conhecia pessoas menos endurecidas. mais loucas, mais doces e mais insensatas. mas de um insensato nada perigoso. pessoas que tinham um olhar de viés para o mundo para só olharem as próprias belezas e as belezas do mundo. alguns chamam isso de narcisismo de alienação de alheamento. quanto a mim, chamo de amor. e se há algo que logo sabemos destas pessoas é que nunca temos que pedir perdão. e isto faz toda diferença.
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fazer 40 anos, então, é esta nebulosa (a parte que explicava a nebulosa eu apaguei). das frases mais bestas que disse nestes dias pré-pós-aniversário, nada se equivale a esta. alguém me pergunta se eu estou feliz. e eu digo que sim. a pessoa não acredita muito. e me pergunta por que estou feliz::: e eu digo::: "porque eu não morri, ora". eu poderia acrescentar agora::: "porque estou aqui. e Poeminha dorme tranquilo, enquanto me martirizo com estas dores que não querem me largar".


foto: na feira de San Telmo, em Buenos Aires.

1 Palavrinhas:

Mácia disse...

Mana e sua beleza que irradia e muda as nossas vidas. Eu sempre falo para mudar e ser feliz eu tenho a sorte de possuir a minha sábia irmã. Lembrei muito andando sozinha em Sampa, pois somente você foi capaz de fazer esta transformação. Amo você.