terça-feira, 8 de dezembro de 2015

O "aqui" de Marcelo Rubens Paiva



nunca li muitos livros sobre a segunda guerra mundial. ou sobre as ditaduras latino-americanas. então, no imaginário da comparação, posso quase nada. por isso, só quero dizer que sofri aos borbotões lendo Ainda estou aqui, de Marcelo Rubens Paiva. e como penso que todo livro deve sempre envergar um pouco mais nossa coluna, dando-nos um sentido de real que nada tem a ver com uma relação direta (como quando lemos Kafka e o seu mundo de irrealidades é mais palpável do que qualquer outro imediato), celebro aqui a alegria de tê-lo lido no que agora já é fim de ano e nos vem esse sentimento de fim de festa. e de recomeço de uma outra. 

Marcelo Rubens Paiva, sem nenhuma autocomiseração, nos faz vivenciar dois lutos: aquele que teve início com a tortura e morte de seu pai, o deputado Rubens Paiva, e o que vivencia no momento em que escreve, quando acompanha o desenvolvimento do Alzheimer em sua mãe, Eunice Paiva. são dois lutos distintos, mas que nos dão a medida da dor das infinitas perdas. ele traça um perfil comovente daquela responsável pelo título do livro, que, nos lampejos de lucidez, repete: "Ainda estou aqui". Estar presente e ausente, estar ausente e presente são dois modos de convivência com o luto a ser sempre rechaçado para que a vida possa existir. é o que nos sugere o livro. o luto sem fim do pai e o luto por etapas da mãe reforçam o caráter de testemunho de Marcelo Paiva, que narra em primeira pessoa a história de dois outros; não quaisquer dois, mas os seus progenitores. um que "desaparece" repentinamente e uma que "desaparece" aos poucos.  essas desaparições são formas de presença. nesse sentido, ser um sobrevivente é uma forma de aprender a conjugar diversas maneiras de se relacionar com as tantas mortes.

sua mãe ainda está viva. mas o "aqui" de agora não tem mais a força de sua presença antes soberana. por isso, o presente e o passado coabitam no livro, num tempo subjetivo e histórico, que reorganiza as percepções, reforça as perguntas, realça o absurdo de uma ditadura militar nos confins do mundo que desorganiza mundos inteiros. daí por que dentre todos os trechos de documentos inseridos no livro seja o depoimento de um dos acusados de tortura (Riscala Corbage) o mais terrível, o mais insólito, o mais canhestro. é nesse momento que o documento mais parece com uma farsa, no sentido da potência de registrar o horror e suas causas. pois não há causa. o torturador não tem a mínima ideia dos sentidos da tortura. é preciso que seja o outro que o diga. no caso, é Marcelo quem nos diz ---.   

Eunice, como tantas vezes disse Marcelo, é a heroína do livro. uma mulher que sai da condição de dona de casa classe média dos anos 1960 para uma profissional respeitada e admirada. uma mulher que nunca chorou em público, que manteve sempre a envergadura certa para as exigências. mas é uma heroína do nosso tempo. uma heroína sem ilusões que sucumbe quando era a hora de descansar de seu próprio luto de viúva. uma heroína sem memórias, que perde a sua memória para uma doença que mal se sabe as causas,  quando a sua história é toda entrançada na memória viva de um passado recente. e o autor é aquele que vive reiteradas vezes a morte viva da mãe. e dá a ela a voz da literatura, assina por ela a língua da literatura. dilacerante demais.
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