domingo, 12 de junho de 2016

uma vida meio monalísica - notas de minha vida (a que tenho e a que desejo)













porque tenho trabalhado muito, porque tenho travado lutas bestas, ainda e apesar de tudo, tenho tentado encontrar bons amigos nesta terra estéril. e tenho tentado seguir meu curso. seguir o curso significa tentar respiros.

em algumas manhãs, enquanto meus homens dormem, eu vejo filmes. ou leio livros. ou esqueço a alergia do Poeminha e passo dois dias sem tirar o pó da casa. esse hiato me permite ler várias páginas e me demorar naquilo que seria meu centro se eu pudesse me demorar mais nele.

o silêncio da televisão me faz bem. é estranho, muito estranho. enorme alívio do barulho que vem do mundo. porque o que acalma é a música. ou o silêncio.

tenho ouvido Bjork. muito. comprei o seu penúltimo cd por um preço exorbitante. depois saiu a versão nacional e eu me senti meio estúpida. mas na última vez que fui a Sampa, com o cd nacional em mãos, comparei mentalmente os dois objetos e agradeci a minha insanidade. é tão bonito e tão complexo o objeto-cd da Bjork na sua versão primeira! reconheço Björk desde sempre --- como uma voz que me toca, que me diz um tanto.

nesta semana, Tunga morreu. minha amiga Rosana me perguntou quem era Tunga. e eu chorei de novo. como um dia pensei sobre Farnese de Andrade, penso que todos deveriam conhecer a obra de Tunga. e que eu deveria conhecer mais profundamente. o que é o mesmo que dizer/ desejar que a arte ocupasse um lugar mais constante em minha vida. e na de todos. e isso poderia ser o modo de escaparmos das misérias do mundo.

dia desses, num momento de ira interna, eu disse que minha vida era uma piada. ou eu fazia isso. ou aquilo. e nenhuma das duas opções me eram satisfatórias. se eu tivesse tido a sorte de essa frase estúpida ter sido flagrada por quem estivesse disposto a ouvi-la, eu teria sentado e chorado. como nem sempre a chance vem, eu continuei furiosamente estendendo roupas no varal. estender roupas no varal como quem estoca todas as frustrações.

mas eu tenho a sorte de ser meu próprio exército. e ter uma liberdade interna rara; talvez muito rara. li Matteo perdeu o emprego de um fôlego só. quando terminei, eram 10h da manhã. e Poeminha ainda dormia ao meu lado. e queria registrar isto::: olhei para ele, agarrei bem forte e disse: "filho, você não tem ideia de como meu amor por você é grande". e adormeci às 10h da manhã, pensando em Aline, a moça linda que amo desde antes, que havia me indicado o livro, naquele momento em que ela me disse que fotografar era tão estranho. e eu lhe disse que, sim, sabia de tudo isso, mas que amava fotografar desde antes que fotografar fosse estranho.

perdi-me durante uma manhã inteira depois de receber umas mensagens de Laura Erber. imersa em suas indicações. à noite, encontrei outra Laura e disse: "endoideci um pouco hoje. e foi bom". e bebemos umas para comemorar as loucuras maravilhas diárias. Laura Erber é a escritora sobre a qual estou escrevendo um texto. --- o texto até agora tem dez páginas. e gosto do texto que ora escrevo. mas ele nada diz do que há de essencial na sua obra. são texturas. e me veio uma ideia absurda::: eu não quero surpreender a escritora; talvez, aqueles que a leem. pois nossos mundos de leitura não se encontram. e como posso conhecer uma obra sem conhecer o que a sustenta? é o que ainda não respondi nas dez páginas que por ora escrevi.

o carteiro me acorda logo cedo. desço meio grogue. e ele já está com a desculpa pronta::: "desculpe, milena, não é para você. é porque sempre que é livro, penso que é para você". tenho vontade de abraçá-lo.

convocam para que eu fale na semana de acolhimento na universidade. e eu, exército sozinha no campo minado, digo: digo que estou de luto. e na luta. contra o golpe. e que agora temos a prova de que não há grandeza em nós quando a história nos convoca. sinto uma solidão terrível, embora esteja com uma blusa que me faz parecer meio riponga. 

talvez por isso lembrei dia desses dos meus tempos de quase hippie --- quando era acolhida pelas praias de Natal, naquele tempo tão distante. por incrível que pareça, eu era mais presa do que hoje. era mais severa. é de Natal a única lembrança vívida de um grande desejo de morrer. depois daquilo, sofri vez ou outra por causa de outro - aquele outro que escolhemos para viver a dois -, mas nunca mais me deixei sucumbir. 

há menos de dois anos, sofri outra dor intensa. perdi não apenas algumas ilusões. e parte do amor que havia em mim. mas também crenças. e isso foi o pior. sofri sozinha e chorei muitas e muitas vezes. com um ódio gigante por estar chorando. criei uma casca de arrogância e proteção que somente as noites embriagadas, à vista dos outros, deixavam entrever o meu grande desespero. mas a lembrança de promessas arrancou de mim um tanto de coisas ruins que poderiam ter ficado estocadas - o que eu não queria de modo algum. e encontrei um cuidado de si em mim que cheira a vaidade. mas é puro amor. um gastar de tempo que me dá amor-próprio. e a certeza de que tudo está em nós. ninguém pode fazer por nós o que podemos fazer mais e melhor.

passei a amar Hirokazu Koreeda quase por acaso. ele e suas crianças. acho que fui uma de suas crianças, sobreviventes dos adultos. sei que é bonito. porque esta é minha luta diária::: "lembre, lembre, lembre de como era quando era preciso levantar a cabeça para olhar para os adultos". //// e eu lembro. e dói muito.  e ao mesmo tempo dá uma alegria imensa esse poder de lembrar. talvez seja por isso que, ainda que eu não lhe dê tempo suficiente, seja tão fácil enlaçar o Poeminha e falar de amor.

a estética de Koreeda obriga-nos a baixar os olhos, agora que tudo é adulteza.

já tive alguns gatos em minha vida. mas foi com Nina que passei a entender o verdadeiro sentido de ter um animal de estimação. o cuidado que isso exige. e o bem que faz ter um bicho sempre do seu lado. é um não estar sozinha de uma potência incrível e inesperada para mim. 

dia desses, minha irmã Morg me disse que causa a ela muito espanto a minha pouca fé. porque, para ela, minha vida é um milagre. ser uma sobrevivente, tão à beira da morte durante toda a infância e na vida adulta com o guillain-barré. e eu lhe disse o que penso desde sempre:::: acredito numa força. tenho fé. o que não acredito são nas religiões. se eu tivesse a certeza de que os que estão lá são bons, eu acolheria uma religião. já me senti acolhida em duas religiões, mas não o suficiente para suspender todas as suas enormes contradições, e é essa descrença que é confundida com não fé. Poeminha me perguntou dia desses porque não rezo. e antes de responder, eu amaldiçoei mil vez a sua escola. e menti para ele::: "não rezo porque não me é necessário". porque eu rezo. mas as razões por que rezo nada dizem respeito a qualquer religião.

Tatupai e eu temos diferenças irreconciliáveis. às vezes, pergunto-me porque nos amamos. e essa pergunta por si só já dá um alívio grande. saber do amor é sempre uma claridão no meio do escuro. eu gosto da integridade. e queria tirar com um sopro todo aprisionamento que há. porque amo bastante.

acho que é muito fácil plantar o ódio. --- escorpiana que sou, tenho ódios. mas são ódios fugazes. tão ligeiros que quando dou por mim já nem tenho notícias deles em mim. a ruminação dura o tempo de uma faxina. 

eu tenho muito orgulho de cuidar da minha casa. de ser eu a cuidar de tudo. mas me causa muita exasperação. demanda tempo, muito tempo. e há dias que eu mesma me espanto::: "qual será a mão silenciosa e imperativa que me impõe tanta disciplina na arrumação da casa?". eu passo roupas sete horas seguidas. ninguém entende um gesto deste. às vezes, quando estou muito irritada com as pessoas que me criticam por fazer isso, vejo aí um enorme preconceito de classe. como se eu, professora universitária, não pudesse assim fazer --- um trabalho relegado para a ralé do salário mínimo ou nem isso. por outro lado, eu mesma acho absurda essa disciplina. talvez por isso, criei a técnica de passar roupa assistindo a filmes. sim, isso exige técnica. 

e adoro o frio. e não tem nada a ver com a experiência de Paris. e a experiência de Sampa. tem a ver com o ser ruminante que sou --- acabei de dizer isso a minha amiga Ro.  o frio é um útero para quem pensa o tempo todo. e sim, eu penso o tempo todo. eu me analiso, analiso minha vida, a dos outros ao meu redor, repasso as cenas cotidianas, meus gestos, os meus não-gestos, o que eu queria fazer, o que eu não consigo fazer de jeito nenhum, o que eu juro que conseguirei e que não passo nem raspando; toda essa ebulição causa também muita exasperação, mas uma grande intensidade. é por esse pensar contínuo que faço mil tentativas - o tempo todo. até há dois anos, achava que nada me passava despercebido. foi uma das crenças que perdi. mas esta perda - apenas esta - foi muito boa. 

ser a mãe de Poeminha não é nada fácil. e é de longe a experiência mais poderosa de minha vida. é um teste. como pode? como se alguma força para além do explicável o tivesse colocado na minha vida. para testar minhas teorias. e eu ganho várias, modéstia às favas. mas por vezes perco no essencial. ele e seu universo feminino. agora, ele quer se apoderar do meu guarda-roupa, à mostra de seus olhos, aberto que é. e me pede o que - para meu espanto - me pareceu até agora ser o mais difícil. e joga na minha cara a frase que eu lhe ajudei a construir: "eu não me importo". e numa noite linda, rodeado de confiança, surgiu diante de nós, com uma linda fantasia de princesa, tiara na cabeça. e estava tão tão tão lindo e tão inteiro. com a frase que é minha e que eu lhe doei. 

porque não se importar com a tirania dos outros é a maior libertação que se pode aprender.
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(o título vem do documentário Tarja branca, a que assisti - do início ao fim - com o coração na mão. e as fotos foram tiradas em tantos momentos. em alguns, eu estava irremediavelmente bêbada --- o olhar torto, mas cheio de poesia. e são sem filtro algum. pq o único programa que eu sabia unicamente intensificar as cores sumiu do notebook). 




 



  


  

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