E são inúmeros os livros que adquiri por causa da livreira mais sensacional que tive o prazer de conhecer. Ela tinha uma livraria que levava seu nome - Rose - e também o dom de adivinhar antecipadamente os desejos dos compradores; influenciada por ela comprei quase tudo do Cortazar. E foi ela quem me deu "Cartas a Milena", de Kafka. Foram dias inteiros deitada no chão da livraria bebendo chá, folheando livros, jogando conversa fora, fazendo novos amigos leitores. Nunca mais me senti tão poderosa como naquela época. E não apenas eu. As manhãs de sábado nunca mais foram as mesmas depois que ela fechou as portas e partiu para a cidade maravilhosa deixando mais comuns, sem a aura de confraria, todos os leitores da cidade à beira do rio Madeira.
Sempre fui viciada em me deixar influenciar pela leitura dos meus amigos. Embora, por mais que tente, eu não consiga lembrar de quem me indicou Graciliano Ramos. Talvez ninguém. Gosto de imaginar que já o amava muito antes de amar os livros. Binho, Alberto e Manu estão presentes em muitos livros. Comecei a ler poesia por indicação do Binho, um poeta músico fascinado pelos irmãos Campos e por Arnaldo Antunes. Essa influência arrefeceu um pouco no doutorado, quando me interessei pelo oposto da poesia

concreta. A poesia de Cacaso, Ana Cristina César e de Leminski ocupam, assim, também minhas prateleiras. A pouca quantidade de poetas como Pessoa, Drummond, Bandeira mostra meu certo "desgosto" pela poesia discursiva. Dostoiévski e Hilda Hilst me lembram, sobretudo, Manu, um aficcionado por esses dois escritores. E foi numa tarde quente, à beira do rio, que Beto Bertagna me falou pela primeira vez de Samuel Beckett. Depois que li sua trilogia, meu gosto literário nunca mais foi o mesmo. Nas livrarias de Paris, comprei tudo dele que encontrei. Eu passava quase todos os dias na Gibert Joseph para ver se tinha algum livro "d'occasion" de Derrida ou de Barthes. Quando não encontrava deles, comprava algum outro. A etiquetinha amarela significava, muitas vezes, o livro novinho pela metade do preço. Ou menos. Marie, minha ruiva, me disse uma vez que as etiquetas eram feias e eu devia retirá-las, mas deixei-as. Elas fazem lembrar das minhas horas em frente às prateleiras à procura delas.
Em Paris, também comecei a comprar livros de artes. Timidamente, claro, devido à grana escassa. Lembro da Adri me dizendo que as pessoas compram os livros introdutórios da Taschen e já saem arrotando conhecimento. Seu ar irônico de quem entende do babado não me deixou arrotar nada. Daí, sempre os leio com um misto de desconfiança e de deleite. Tão baratos, tão bonitos! E por toda parte das estantes, está expresso meu fascínio pela Cosacnaify - as suas edições primorosas enchem os olhos. E o atendimento personalizado me espanta desde que tentei adquirir o livro do Farnese de Andrade e, aconselhada pelo meu orientador de doutorado, pedi um desconto e recebi como resposta a mais improvável das perguntas que já li em um email: "Quanto a senhora acha que pode pagar pelo livro?" Adquiri-o com 50% de desconto.
Foi nesta época do Farnese que comecei a comprar livros sobre cinema, levada pela urgência de entender um pouco mais desta arte que me arrebatou por completo nos dias frios de Campinas e de Paris. Sinto vontade de rir quando lembro das inúmeras horas roubadas dos estudos. Até mesmo "plano de estudo" de filmes eu cheguei a fazer. Como sou dispersa, sempre me fascinou a ideia de adquirir métodos de disciplina. Desde o mestrado, costumo seguir um plano: ler 30 páginas de um livro de ficção antes de começar a estudar. Eu teria lido bem menos sem este "método". Lembro que quando li
A montanha mágica estava em pleno furacão: fazia uma disciplina sobre tradução em Campinas, outra sobre música em São José do Rio Preto, escrevia dois capítulos de um livro, aprendia francês, tentava entender Derrida, seguia meu programa de filmes e viajava quase todos os fins de semana para curtir a vida cultural de Sampa... e, no entanto, seguia diariamente a estadia de Hans Castorp no sanatório onde ele chega saudável e sai morto.
Minha vida acadêmica, aliás, está muito bem representada. A cada disciplina cursada, no mínimo, uma dúzia de livros. Isso desde o mestrado - então tem a fileira estruturalista, da semiótica (todos os livros de Umberto Eco), pós-moderna... toda esta parafernália "teórica". E, claro, tem minha grande paixão: Roland Barthes. Este ocupa um lugar à parte, cercado por uma aura de divinização. Olhar para seus livros às vezes me acalma (quando estou lendo algum); às vezes me deixa nervosa (quando faz tempo que não leio nenhum).
E, por fim, espremendo prateleiras que não cabem mais nada, cheguei à constatação óbvia: só agora adquiro os teóricos nacionais. Li neste semestre boa parte da Formação da Literatura Brasileira, de Antonio Candido, que nunca tinha me interessado. E também li
Revisão de Sousândrade, dos irmãos Campos, a resposta sofisticada dos esquecimentos daquele. E nunca comprei tanta ficção brasileira como agora: com o grupo de literatura contemporânea, e com o desejo de fazer pós-doc nesta área, é a vez dos escritores contemporâneos nacionais. Ainda aqui é a imagem de um amigo que aparece: as indicações do meu amigo Márcio têm sido fundamentais.