domingo, 7 de setembro de 2014

a parte que falta


Poeminha já nasceu com sua minibiblioteca. este sentimento de "posse" já produziu muitos gestos bonitos. um dia, quando era ainda bem pequeno, num gesto espontâneo de mostrar o quarto dele ao nosso amigo Iremar, disparou: "aqui é meu quarto; e estes são meus brinquedos,  e aqui são meus livros. olhe: meus livros". em outro momento, já soltou, com ar de reprovação: "mamãe, por que o meu livro está aqui na sua biblioteca? tem que ficar no meu quarto!". e saiu batendo o pé com o livro embaixo do braço.  e volta e meia diz: "mamãe, meu sono precisa de uma história". já é um leitor, sem ainda saber ler. 

e ontem à noite, como sua leitora, tive mais uma vez o intenso prazer de poder observá-lo enquanto se apaixonava por um livro. trata-se de A parte que falta, de Shel Silverstein. no curso de formação que ministro para orientadores de professores da alfabetização, sempre insisto no fato de que nunca, de fato, sabemos o que vai disparar na criança o amor por um livro. porém, a busca por livros de qualidade deve ser do adulto. vejo muitas mães comprando livros de péssima qualidade somente porque são de capas duras e coloridos. e seria uma conversa muito longa se fosse falar aqui de parte dos livros de ficção distribuídos nas escolas. por isso, insisto que a pesquisa - de uma mãe, de um professor - deve ser também movida pela curiosidade e pelo amor aos livros. o que não impedem os equívocos, claro. já errei bastante. houve livros que eu achei que iriam "abafar" e o interesse não passou da primeira leitura.

e quando sei que acertei em cheio na escolha? primeiro, o olho brilha. não há imagem mais chavão, eu sei. mas quem já não viu um brilho no olho? que se segue a um movimento de corpo, a uma atenção redobrada, a um sorriso de espanto? e no nosso caso, a um aconchego ainda maior - pois quando Poeminha quer chegar mais perto ainda do livro, chega mais perto de mim. ontem, foi um pouco diferente. ele agarrou o livro. folheou antes mesmo que eu terminasse de ler. olhou olhou. e me mandou continuar a ler. e enquanto eu lia, disparava uma porção de perguntas. uma mais difícil que a outra.

"Por que ele está procurando?
"Por que ele deixou a parte sozinha?
"Por que ele segurou tão forte?
"Porque continuou procurando se já tinha achado? 
"Por que não deu certo?"
"Por que? Por que?"

foi preciso ouvir o Poeminha disparar estas perguntas uma atrás da outra para entender o "indireto" barthesiano. e toda aquela conversa de que a grande literatura é a que suscita mais perguntas do que respostas. 
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A parte que falta é mesmo um livro espantoso. com seu traçado simples, suas frases curtas, num domínio absoluto da folha em branco, Silverstein trata de questões tão complexas quanto a solidão, a busca por um outro, o abandono, as escolhas e suas consequências. o início é já uma bordoada: "Faltava-lhe uma parte. E ele não era feliz". esse modo seco de dizer, sem nenhuma modulação para o "faz-de-conta", não diminui em nada a delicadeza e a força do que é dito e mostrado. também fiquei maravilhada. assim, grávida de perguntas também. soube não o que dizer ao Poeminha. lembro que disse que a vida às vezes é assim. e que mesmo assim é bem bonita. ou por isso, é bem bonita. e agarrei-o bem forte para que ele se convencesse.  E, por fim, ele disse: "mamãe, gostei demais"". 

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da próxima vez que algum adulto me disser que não lê certos livros para uma criança, ou não diz certas coisas espinhosas, ou eu vou xingar, como algumas vezes dá vontade, ou vou mandá-lo ler este livro para uma criança.   

       

1 Palavrinhas:

Joice Joy disse...

O mundo das crianças tem muito a nos ensinar, porque quando passamos por ele, não o entendíamos pois éramos jovens de mais para compreendê-lo. Agora adultos é o momento de extrair a compreensão do por que? por que? e por que? Aqueles porquês que sempre pairaram em nossa imaginação pueril, mas, como quase sempre, não havia uma criança-adulta para saciar nossa sede de respostas, que na verdade, tais "respostas" só nos dariam mais asas à livre imaginação infantil. Não foi mero acaso que Cristo afirmou que precisamos voltar a ser meninos se quisermos herdar um futuro verdadeiro.....