O contorno das pessoas e das coisas perdia a nitidez, tudo se tornava desfocado, até os sons pareciam mais abafados. O mundo, quando eu o via sem óculos, perdia a aspereza. Ficava tão suave e macio quanto um travesseiro fofo no qual encostava o rosto e terminava por adormecer.
- Está sonhando com o quê, Filomena? – papai me perguntava. – Você deveria pôr os óculos.
Eu obedecia e tudo retomava a rigidez e a precisão costumeiras. De óculos, eu via o mundo tal como ele era. Não podia mais sonhar.(MODIANO, Patrick. Filomena Firmeza)
Poeminha, encontramos nos seus livros as palavras que eu não
saberia lhe dizer. Pois tenho que confessar:::: doeu bem aqui no
ponto mais sensível do coração quando seu pai me telefonou e me anunciou que
você precisaria usar óculos. Filho, filho, impossível não ter ido muito, muito
longe. Tão longe quanto é aquele lugar onde uma menina de seis anos pôs os óculos
pela primeira vez e sentiu realmente que o mundo existia. Ao contrário de
Filomena, toda a minha poesia de infância está na descoberta de um mundo
nítido. Lembro com muita certeza das nuvens. Saber de sua existência, aos seis
anos de idade, ao pôr os óculos, Poeminha, mudou a minha vida. Porque aos seis
anos, talvez, eu já fosse uma leitora. E naquela época, me parece hoje, era
tudo que eu tinha de meu.
Faz 34 anos que uso óculos, Poeminha. E você, quatro dias. Tenho longas histórias tristes, filho. E o
medo de vê-las repetidas em você me fez logo pensar numa necessidade que eu não havia pensado para mim: seria comprar dois óculos – e
os mais bonitos que achamos. E que plural, filho. Desde o início eu e o Tatupai
confiamos a você a escolha. E você vai
lá, filho, e escolhe os óculos mais fodas que eu havia achado. E sabe, Poeminha, eu escolhi passar a vida
atrás dos óculos. Quando pude escolher, já não sabia como fazer. Quase nunca
usei as chamadas lentes de contato. Comprei uma atrás da outra, quando pude, e
uma atrás da outra, vi-as apodrecerem sem uso. E nunca cogitei fazer nenhuma
operação corretiva. e acho, filho, que é por que nunca tive coragem de retirar
esta prótese que me mostrou as nuvens.
Esta sua mãe, que tem uma vaidade toda
particular, usa um óculos de cada vez. E até que ele descasque, risque, borre. Tão
dada a coleções, jamais colecionei óculos. A cada vez, cada um, trato-o sem
cuidado, mas com toda reverência. Uma vez, Poeminha, num tempo muito distante,
não sei como, uma das pernas de meus óculos quebrou. E foram vários dias a ver o mundo embaçado. Até que eu tive a ideia de ir
lá, no fundo da gaveta, e ficar só um pouco com aqueles óculos de uma perna só.
Só um pouco sentir a nitidez do mundo. Não sei qual foi o movimento, mas os
óculos caíram na beira da calçada daquela casa cor-de-rosa e uma das lentes
quebrou. Como sofri, Poeminha! Como dizer àquelas pessoas que os óculos, agora,
sim, eram uma prótese inútil. Tive medo de ser repreendida. Chorei. Senti como um grande castigo – precisar de óculos – e eles terem me
traído por duas vezes. E agora? Como iria dizer que eu era a culpada de eles
terem quebrado – e por duas vezes? Não lembro o que aconteceu depois. Ficou apenas este saber de não saber viver sem óculos.
E lembrando agora, desta história triste, não vou lhe dizer
que você pode quebrar quantos óculos quiser. Vou lhe dizer que, sim, é bom que
existam óculos. Que como nós eles são tão frágeis. E que, embora não sejam
gente, são um pedaço de nós. Mas você pode escolher deixá-los de lado. Fazer outras
escolhas que não as minhas. E que, sim, Poeminha, quando um acidente ocorrer,
não hesite em me dizer::: eu faço o que for preciso, mas jamais lhe deixarei um
dia a mais sem a possibilidade da nitidez. Para que como Filomena você possa
escolher ficar sem ela – a nitidez – a hora que quiser.
Posso lhe garantir:::: é bom. Não tiro os óculos para
dançar, como Filomena, mas tiro-os em tão poucos momentos::: para dormir,
tomar banho e fazer amor. Nos três, quanto mais os olhos se fecham
involuntariamente, mais bonito é. Acredite.
E acredite ainda mais:::: você ficou lindo de óculos.
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