terça-feira, 3 de outubro de 2017

A renúncia e o porvir




Na última sexta-feira, o reitor da UFSB renunciou ao cargo. Aproveitando o último ponto de pauta do Conselho Universitário, anunciou seu pedido de exoneração, enviado ao MEC nove dias antes do anúncio à UFSB. Finalizou dizendo que o pedido de renúncia era uma decisão unilateral, sobre o qual não cabia discussão, não sendo, portanto, ponto de pauta. A reunião foi assim encerrada. Esse é o fato.


Entretanto, para tentarmos entender o gesto do reitor, é preciso não nos afastarmos do momento vital da UFSB, que diz respeito a todos/as nós, docentes, técnicos/as e estudantes. É o término do 1º ciclo e ingresso no 2º ciclo, em que estudantes deverão escolher em qual curso continuarão a sua formação. É também o início do calendário do processo de consulta acadêmica para reitoria aprovado há poucos dias pelo Consuni.


Relembrar é sempre bom::: processo iniciado há mais de ano, nos moldes sugeridos pela gestão, com eleição, primeiro, para IHACs e Centros de formação. Em síntese, nenhuma anormalidade no processo que pudesse indicar o gesto do reitor. Entretanto, tanto na sua renúncia feita no Consuni quanto na carta disponível em sua página no Facebook, ele acusa grupos de articularem um golpe e de promoverem um processo ilegítimo. A partir daí, só nos resta perguntar: como pode haver golpe, se não houve um só movimento de pedido de renúncia do reitor feito por quaisquer categorias da UFSB? Nenhuma pressão para ele colocar seu cargo à disposição? Não houve paralisações, não houve petições públicas, não houve publicação de vídeos, não houve textos; nada, absolutamente nada que sequer insinuasse um movimento coletivo de destituição do reitor. Assim, tal afirmação de golpe ofende a nossa inteligência e, sobretudo, nossa autonomia de comunidade acadêmica. Aceitar tal discurso é aceitar sermos submetidos a violências discursivas de todo tipo. Por isso, devemos resistir.


Na primeira vez que ouvi o agora ex-reitor da UFSB, ele já proferia um discurso de intimidação e de acusação, no qual tentava silenciar as primeiras vozes discordantes de suas práticas. Uma de suas falas emblemáticas foi: “Não cabe a ideia de autonomia docente no modelo da UFSB”. E aí está toda a questão: a crença de que o projeto da UFSB é seu e a ele cabem todas as diretrizes. Já faz quase três anos desde esse primeiro discurso, ocorrido no campus Jorge Amado, e nada mudou. O personalismo sempre se configurou como a sua marca, tendo o reitor tomado para si todas as benesses de implantação de um modelo distinto de outras Universidades, a ponto de apresentá-lo como o mais revolucionário modelo que o Brasil jamais conheceu. 


Não deixa de ser uma bela história, em um país tão desprovido de utopias. Quem não quer acreditar em uma universidade revolucionária nos rincões do Brasil? Uma universidade popular cujo objetivo seja oferecer cursos de qualidade para a população mais à margem das grandes oportunidades? Quem não quer acreditar em uma universidade em que não seria preciso escolher de pronto o curso a definir a sua futura profissão? Porém, o que sonham a maioria dos/as jovens do interior do país? O que deseja a comunidade acadêmica, que somos nós, e não apenas uma única pessoa? Não nos foi perguntado. E aí está o grande impasse do projeto personalista.


Foi esta a resposta que nunca foi dada: como lidar com os sonhos dos que querem, prioritariamente, cursar Medicina ou Direito. Ao contrário, para incentivar o maior número possível de entradas na Universidade, disseminou-se a crença de que haveria vagas para todos/as. Estávamos, portanto, diante de um problema administrativo que foi transformado em um problema político unicamente pelo gesto do reitor.  


Pois o que faz o reitor ao se ver diante da obrigação de prestar contas acerca de seu maior “cabo eleitoral”; o que lhe rendeu popularidade entre estudantes, políticos e pesquisadores locais e nacionais, que lhe permitiu dar inúmeras palestras propagando mundo afora que estava criando uma universidade inovadora? Simplesmente, pediu exoneração, sabendo que deixava um problema insolúvel para a atual vice-reitora. Pois se há solução para as vagas de medicinas existentes versus a quantidade de estudantes que cursaram o 1º ciclo com o intuito de cursar medicina, a gestão do reitor Naomar foi incapaz de apresentá-la. Em vez disso, preferiu criar, como em outros momentos de crise, um discurso no qual culpa outros agentes pelo seu retumbante fracasso. 

Devido ao que me ficou claro desde aquele primeiro discurso de intimidação, jamais pensei que diria isso, mas agora digo: era obrigação moral do reitor ter ficado neste momento de crise; ter ficado e resolvido os inúmeros problemas criados pela sua má gestão. Se não teve grandeza para tal, deveria furtar-se de criar um “circo” de factoides, que certamente não está à altura do projeto que ajudou a idealizar. Apontei em tantos lugares, sobretudo diante do reitor, inúmeras práticas que não condiziam com a sua retórica de renovação e desburocratização, sendo próprias de gestões públicas corrompidas: concentração de poder, distribuição indiscriminada de cargos a pessoas sem competência, centralização de recursos, falta de planejamento etc.. Não era a única. O que presenciamos, nos últimos três anos, foi paralisia, inércia e descaso com nossas reivindicações acerca de questões cruciais da Universidade. Apesar de sermos submetidos a um modelo arcaico e perverso de inúmeras reuniões semanais, não se desenvolveu na UFSB nenhum modelo de escuta. Menos ainda de deliberações a partir dessas escutas. 


Basta ver o organograma institucional da UFSB. Na suposta universidade democrática, em que tudo deveria ser discutido coletivamente, há um único órgão deliberativo, que é o Conselho Universitário, até há poucos meses constituído unicamente por membros indicados.  Ao contrário de outras universidades, sob a desculpa de desburocratização, aqui há um esvaziamento de todas as instâncias, numa concentração de poderes espantosa e desonrosa para uma Universidade pública. Nos três campi, congregações e colegiados de cursos não são deliberativos. Todas as decisões precisam ser referendadas pelo Conselho Universitário, cujo poder é ilimitado, uma vez que não existe nenhum outro Conselho intermediário. Tirem daí suas conclusões. 


Também nessa concentração de poderes, a pró-reitoria de gestão acadêmica acumula inúmeras competências funcionais a ponto de se tornar inoperante. É ali que melhor se observa o quanto uma gestão controlada por uma única pessoa pode ser nefasta. A cada mínima discordância, pró-reitores foram sendo afastados no decorrer destes três anos até ser nomeado um sem experiência alguma em gestão pública, mais propício, portanto, a submeter-se a todas as vontades da reitoria. Desse modo, dali não pôde sair nenhuma decisão que resolvesse os inúmeros problemas administrativos da UFSB. Agora, o ex-reitor tenta pôr a culpa na vice-reitoria e na pró-reitoria de administração pelos problemas, quando todos/as que aqui estamos sabemos o quanto as suas formas de controle restringiam as ações. 


Deveria ter um reitor a magnitude exigida pelo seu cargo. Deveria resolver os problemas administrativos da universidade, e não se eximir de tal trabalho, afirmando ser responsável apenas pela concepção das ideias. Nenhuma concepção de educação se constitui sem ser posta à prova nas práticas educacionais. Perguntem a qualquer professor sobre tal relação e será fácil perceber que o contrário não passa de falácias. Ainda e sempre vale o que disse o velho Marx: “De resto, ideias nada podem realizar. Para a realização das ideias são necessários homens que ponham em jogo uma força prática”.  

Não há, portanto, o que temer quanto ao porvir da Universidade. O que há de qualidade na UFSB advém das práticas dos professores/as, técnicos/as e estudantes que trabalham à revelia dos inúmeros desmandos da administração. Nas avaliações do MEC já ocorridas para reconhecimento dos cursos, está dito textualmente: é admirável o intenso trabalho de professores diante da precariedade da universidade: não há bibliotecas, não há laboratórios, não há salas de aula suficientes, porém funcionam Complexos integrados, Colégios Universitários, cursos de pós-graduação e um número elevado de projetos de pesquisa e extensão em parcerias com as comunidades. 


Então, é possível que a renúncia do ex-reitor inaugure o tempo em que o projeto desta Universidade não corre perigo. Não me parecia haver porvir até sexta-feira, pois nenhuma universidade deveria estar à mercê de uma vontade soberana.  É agora que tudo deve começar. Recomeçar. Aqui ninguém quer retirar o que de direito e de distinto já conseguimos fazer existir. O projeto da UFSB é de todos/as nós. Não pertence a uma única pessoa. Um rosto que se diz único, origem e fim de todas as coisas, não pode ser mais do que uma desfiguração da própria ideia de sujeito. 


O momento atual exige de nós um pensamento forte. É a hora e a vez – para pensar em Guimarães Rosa – de pôr à prova as instâncias críticas de pensamento que foram fomentadas desde a Formação geral.  Não é preciso muito. Basta não nos deixarmos ser levados por discursos que não resistem a uma leitura atenta. Basta buscar as incoerências, as fissuras, as brechas, pois está tudo lá a demonstrar a sua fraqueza. É puxar o fio e veremos que não sobra nada. Onde não há o Outro, onde não se aceita o contraditório, a diferença, não cabem sujeitos. Então, sejamos sujeitos! A UFSB é nossa --- com todas as suas contradições e suas lutas por vir. 
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* Painel no campus Sosígenes Costa.

4 Palavrinhas:

Rafa disse...

Milena, bom te ler e bom ler isso. Mais que contemplado, me vi quando você diz "não fui a única". Quase desistimos, mas não, seguimos e começamos um projeto novo, de Pós Graduação, um respiro para nós e, especialmente, para a comunidade. Não recebemos um "muito bem" do gestor, um apoio, uma nota, tivemos nós mesmas/os que escrevê-la. Não foi a única a ser reconhecida, também não fomos. E, sim, agora é eleição! Bora!

Unknown disse...

Sem palavras!

Herbert disse...

Depois de ler o seu texto eu me sinto mais confiante no futuro da UFSB. Tenho menos de quatro meses de instituição e sinto que é um privilégio ter colegas do seu quilate. Força na luta!!!

Angela Garcia disse...

Muito bom, Milena! Quantas motivações tivemos para virmos compor essa universidade e fomos vendo minguar por práticas que não condizem com o discurso. Continuamos na luta por uma universidade, de fato, inclusiva.