sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Adriane Hernandez - o reencontro


Adriane foi embora num fim de dia chuvoso e triste = azul quase cinza. Eu triste pra cacete. As coisas acontecendo e eu já sentindo a sua falta. A chuva é fria em Paris. Eu, ela e Mari correndo na chuva sentimos isso. Sem abrigo por perto. Subimos na torre Eiffel horas antes de ela partir. Dri tem medo de altura. Suas pinturas são azuis. Seus objetos também. O pão é "amarelo queimado" como todo pão. E branco por dentro. Por duas vezes, vi-os pela tela: ela a me dizer. Prateleiras com mãos humanas entre pães = as mãos da sua mãe. Massa de pão parecendo nuvem carregada de água "mas tem peso". Telas (gigantes, ela me diz) de banheiros meio disformes = o azul se apossando dela como imperativo. E não deve ser difícil uma arte do azul? Picasso, na sua fase azul, é de uma tristeza de escorrer lágrima. O quadro do Soutine que mais me abisma é azul e "amarelo queimado" no centro. Le poulet plumé. O azul da Dri é delicado. Não me parece de dor, a não ser aqui e ali. É uma memória do azul = associações que nos leva a outros objetos, outros tempos. A toalha da mesa que não pode ser separada do pão = a vida nos pequenos gestos [comer pão na mesa preparada para o café da manhã]. Quando vivi isso mesmo? É aí que habita a dor da obra da Dri. Em quem olha. Vestígios do que não se tem ou se viveu ou se perdeu ou se guardou. Indícios, ela me diz. E tem o corpo, isto que sente. Dri embrulhada em papel de pão. O corpo amarelo, como todo corpo, dentro do papel de pão. A sensualidade do pão, o horizonte no pão, o pão onde não se imagina. Este inesperado da delicadeza das pequenas coisas é o que mais me encanta na Dri artista, amiga, pessoa, gente, mulher. Azul e branco sobre azul e branco nas mãos de luva. A mão amarela escondida pela luva azul e branco em cima da toalha de mesa azul e branco. Quadrados. Migalhas. Momentos tomando conta. Me vêm agora estes lampejos, estas frases sem sentido. Sou um azul de saudade num dia branco nesta cidade cinza.



eu não encontrava Adriane desde esse dia triste e chuvoso em Paris. nestes anos todos, guardei-a em mim --- uma Dri que eu amei em Paris. reencontrei-a no fim de semana passado em sua Porto Alegre. e constatei com alegria e emoção que havia guardado muito dela dentro de mim. eu, desmemoriada, guardei em mim suas frases inclassificáveis. seriam agridoces, se não fosse sua voz delicada a proferi-las. uma mistura de zombaria e cuidado que imprime um saber que gruda. foi assim que Dri me levou pela mão em muitos lugares de Paris. como artista, como estudiosa das Artes, como ser que sabe o valor do silêncio, Dri sempre me emocionou.

Dri é lenta. não é a minha lentidão, que, de fato, é uma incapacidade de ser prática. Sua lentidão é um modo de estar no mundo. e cuidar de seu tempo com o peso e a beleza que a vida pede. Dri gargalhou quando me viu. gargalhava e me olhava com seu olhar inteiro. gargalhamos juntas. nunca havia acontecido algo assim comigo::: gargalhar pelo encontro - abraçar abraçar e gargalhar gargalhar. nunca vou esquecer. mais um gesto que ela me imprime.

conversamos tanto tanto tanto. e agora, ainda acho que foi pouco. dormimos sempre depois das 3h da manhã. mesmo quando falamos de nossas dores, de nossos tantos impasses institucionais, me senti na presença da delicadeza. já no avião, de volta para casa, me deu vontade grande de chorar. e chorei --- me veio o pensamento de não ter me enganado durante todos esses anos. A Dri que eu havia conhecido não era apenas uma figura de meu imaginário. ela é o que eu havia imaginado todos esses anos. ir nos seus lugares em Porto Alegre, conhecer alguns de seus alunos bonitos, estar no ateliê que ela dá aula, ver a exposição da qual ela é a curadora, assistir ao espetáculo de Chico, seu namorado, e ter a certeza de que me apaixonaria também por ele, tal como sou apaixonada por ela; bebermos muitas cervejas artesanais juntas, irmos ao MARGS e ela soltar meia dúzia daquelas frases inclassificáveis; provocá-la para me mostrar seus livros favoritos na sua biblioteca (e ela aceitar o desafio e me dizer por muito tempo o que faz com cada texto que apresenta aos estudantes) --- tudo isso me deixou viva e feliz. 
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também vi a nova fase de seu trabalho --- isso de ver e ouvir::: Dri ali, me explicando cada traço. a ideia de camadas, do aleatório, da construção de uma linguagem - o azul o azul o azul. passarinhos. verde. uma cor de assalto. visão e invenção. --- todas as noites deviam ser tão belas como esta.

hoje, reli parte de Palomar, de Italo Calvino, um dos livros sobre o qual ela me falou apaixonadamente. e me senti de novo em sua presença. e de novo, fiquei feliz --- prometo que não passarão mais dez anos para nos reencontrarmos. qualquer dia volto com Poeminha pela mão. para que ele conheça a sua delicadeza. e seu olhar que pergunta. e responde.          

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