quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Pequenas epifanias

Só que os escritores são seres muito cruéis,
estão sempre matando a vida à procura de histórias.
Caio.
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Sono de pesar o olho. E não durmo. Deito ao lado da sobrinha. Leio meu livro. E nada. Lembro então de momentos doces como algodão doce da esquina da infância e venho até ao computador antes que eles me fujam. Borboletas presas pelas asas por alguns segundos. Tantas. Dias absolutamente delicados. Apesar das obrigações em volta, tudo suspenso pela delicadeza. Assim.
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No ônibus, olhando o escuro da lua pela janela, tento lembrar dos filmes a que assisti e não anotei. Me vem inteira A história de Adèle H, de François Truffaut. E eu fico pensando naquele amor que de tudo toma conta até à loucura. E de novo me vem à mente que é a idéia de amor que amamos primeiro. A tal ponto que um dia o objeto de amor passa por nós e não mais reconhecemos - mudos e alheios para algo além da própria dor. É tão bonito isto. Sempre achei Truffaut muito mais gênio do que Godard. Truffaut aparentemente tão simples, conta histórias que parecem desprentensiosas, mas, de repente, vendo o mundo passar lá fora, ou aqui dentro, ela cai como um raio sobre nós, deixando um rastro de beleza.
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E também me vem aos lábios um sorriso ao lembrar de Gelsomina, papel de Giulietta Masina, em La Strada. Lembro de Almodóvar insinuando que, quando visitou a ela e a Felini, percebeu que havia ali uma situação de dominação - ela pequenina e tímida diante do gênio. Ele, severo e pouco sensível. Ora, ela mesma um gênio, será que não sabia? Uma palhacinha triste. Corpo e alma entregues ao ensejo de nos fazer rir e chorar.
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Então, chego aqui na Maneca e tem uma caixa de livros me esperando. Folheio apressadamente vários. Aqueles pesados de tão obrigatórios. Aí leio o primeiro parágrafo da primeira crônica de Pequenas epifanias, de Caio Fernando Abreu. E não o largo mais. Queria que ele me protegesse da minha própria dureza. Do que disse e ouvi de feio nestes dias. Ah, jesuscristinho, estou convicta de que destes dias levarei apenas a delicadeza. Que nenhuma maldade seja suficientemente mais memorável do que estas pequenas epifanias. Não me deixe repetir estas maldades que brotam das nossas bocas como a flor de Pirandello só porque nos pegam distraídas e porque achamos que devemos nos sentir parte das grandes boiadas. Caio doi tanto que me desfalece. Eu fico entre dizer que ele é um grande escritor ou um escritor das infinitas miudezas, o que dá no mesmo. Tão humano que as folhas parecem sangrar. Aí, chego às páginas em que ele também lembra de Truffaut e Gelsomina. E me vem um arrepio - e fico quase tão esotérica quanto Caio, desconfiando destas confluências, destes encontros que parecem acasos, mas bem poderiam ser chamados de milagres, por que não?
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4 Palavrinhas:

Anônimo disse...

Eu, admiradora de Caio, não teria a sua delicadeza para falar dele. Pequenas Epifanias não é o q fica na cabeceira (é o Morangos), mas tem como dizer qual deles é o melhor? Tem autor assim, que te lê e te (re)escreve. Só q com alguma coerência (alguma, pq reduzir caio a corente, não dá né?)
Sempre te leio, Milena, mas hj, com vc falando dele com tanto carinho e reverência, não pude deixar de dizer q sinto o mesmo.

Beijos.

renata penna disse...

não vejo melhor uso para a palavra 'milagre'... =)

Anônimo disse...

fico lembrando a cá, jules e jim, a sereia do mississipi, aquele ali não, a mulher do lado, deixa ver, e vem a certeza de q o melhor de truffaut tem a morte como protagonista

Loba disse...

Ao ocngtrario de vc, acho Godard tão bom qto Truffaut. ou talvez seja uma leve melancolia - estas que me acometem ao lembrar do que significou o cinema novo na minha vida.
Qto a Caio Fernando de Abreu, assino embaixo. Conheci-o há pouco, mas já amo como se fosse sempre!
Beijo, viu?