quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Da ordem da casa

DA ORDEM, DO RITUAL "Quando vou começar um livro, tenho surto de arrumação na casa. Me dá uma fobia de jogar papel fora; de chegar no escritório, arrumar tudo, tirar pó. Deixar tudo organizado, limpinho. Aí, caneta na mão, fico olhando aquela página em branco."
Cristovão Tezza

Agora, tenho uma diarista. O que era para ser alívio, a cada quarta-feira é motivo de angústia. De outros modos, já disse aqui que a casa me pressiona. me impressiona. Eu tenho mania de limpeza, resultado de uma educação rígida em que uma casa mal varrida implicava em varrê-la outra vez e uns pratos não lavados resultavam em uma surra no meio da noite. Ainda tem o agravante de eu ser alérgica, inclusive a poeiras, nestas cidades empoeiradas. O resultado foi a tal mania de limpeza. Mas eu estou enjoada. Continuo com a mania mas não quero mais perder tanto tempo com uma pressão que se repete, impiedosamente, a cada dia. Desejo, talvez, perder o medo das surras - agora para sempre imaginárias. Ou, parando de fazer psicanálise de botequim, desejo simplesmente ler meus livros em paz. Daí, a diarista. Mas se a própria Clarice Lispector se sentia intimidada com as empregadas, imagina eu, vinda de uma gente trabalhadora, explorada, sempre a pedir desculpas pela existência, como são os nordestinos, ou ao menos como são os cearenses da minha linhagem, que, na maioria dos casos, nunca foram empregadores, e sim empregados, embora jamais "empregados domésticos", por ordem da santa senhora das surras noturnas, que sempre repetia que filha dela não era para limpar chão dos outros - já havia chão demais na nossa casa, que ela nunca cansou de alongar seus domínios.

No primeiro dia que a diarista veio, quase pedi desculpas por haver tanta roupa por passar. Se não estou enganada, balbuciei algo como "Da proxima vez, não haverá tanta roupa, é porque acumulou. Eu estive muito ocupada...". No segundo dia, ficamos umas quatro horas de bunda para cima limpando uma cerâmica que eu cometi a barbaridade de colocar cera quando não devia, o que resultou em uma cor que, devendo ser branca, havia se transformado num amarelidão medonho. Eu disse "ficamos". Para mim, pareceu imoral continuar dormindo enquanto alguém ficaria de bunda pra cima sozinha consertando uma barberagem minha. Ela não se fez de rogada e tascou uma frase como: "Eh, quando fazemos uma bobagem, temos que pagar por isso, sofrer por isso". Mordi o lábio para perguntar se ela era protestante ou o mordi para não cair na tentação de insinuar meu ateísmo latente, ou, no melhor dos casos, minha negação absoluta a qualquer idéia de castigo divino. A intimidação se avizinha sempre da timidez. E, naquele momento, era eu a empregada a engolir um desaforo que gostaria de ter dito. Jesuscritinho me perdoe qualquer ofensa, é o que devo ter pensado.

No entanto, eu continuo com fé que, com a alvura da cerâmica devidamente recomposta, logo conseguirei dormir o sono dos justos enquanto outra faz o serviço de casa que eu não quero mais fazer; afinal, parece-me certo procurar alternativas para não gastar tanto tempo com arrumação de casa, sem que isso signifique passar a viver na sujeira, algo que eu tenho certeza de estar além das minhas forças. Uma casa limpa, para mim, é sinônimo de sossego, único modo de poder ler, estudar, escrever. Parece doideira? Mas quem não tem suas doideiras escondidas na manga? Pensar assim me consola. Ao menos, até a próxima semana, quando espero ter coragem de pedir a ela que limpe os vidros da porta e das janelas, enquanto eu folhearei despreocupada algum livro. Por falar em livros, hoje respirei aliviada quando ela disse que a próxima quarta-feira seria para limpá-los. E acrescentou que eu não me preocupasse porque ela tinha as "manhas": limpava prateleira por prateleira, recolocando-os como estavam. Creio que não me mexi. Era sério o risco de me ajoelhar aos seus pés.

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10 Palavrinhas:

Anônimo disse...

que texto delicioso

Rubiane disse...

Mi,

Sabe que me sinto assim. Tenho horror em pensar que exploro alguém que não tem nada mais do que sua força braçal de trabalho. A culpa é dessa nossa sensibilidade que enxerga além da carcaça.
Obrigada Senhor por ela.

Rubi

renata penna disse...

:-)
adorei tuas palavras.
a velha culpa burguesa... :-)
e menina, vc encontrou uma pérola! aqui em casa em dia de limpeza de livros vira tudo uma babel incompreensível que deus me livre...
rs

Anônimo disse...

vc não é mais aquela que foi um dia.vc gastou dias e noites estudando se preparando para ser o que é hoje.vc merece acima de tudo e de todos,se deitar com as pernas pra cima lendo seus deliciosos livros.vc alcançou o olimpo,hoje vc é uma deusa e as deusas não podem ficar limpando chão.vc faz um favor enorme pagando pelos serviços da simples mortal,pois é só o que ela é capaz nessa vida.vc é capaz de fazer muito mais com seu tempo precioso.ACREDITE>bjs

Anônimo disse...

tb acho!!!

Anônimo disse...

Quando meu desktop anunciou o título desse seu texto, desconfiei do que se tratava e vim ler pensando em fazer uma brincadeira, mas mudei de idéia!!!! Se crer-se como deusa (no olimpo!!!)implicar ver a sua diarista como simples mortal capaz de fazer só isso na vida, aqui vai um conselho da sua melhor amiga: dispense-a e volte a limpar sua casa!!! Assim, vc não corre o risco de perder a sensibilidade e a capacidade de acreditar que muitas dessas mortais podem ser deusas. Isso se no requisito "deusa" estiver implicado, dentre as suas muitas qualidades, o fato de vc ter um título de "dotora", ler muito etc. etc.... A perda dessa sensibilidade, sabemos, é muito perigoso para quem ensina. Tal perda nós impõe uma outra crença: a de que os lugares são fixos e normalizados. Acreditar nisso é tão letal que, a meu ver, nem nos discursos dos recados bobos e anônimos dos blogs pode ser encarado com tranquilidade... bjs. Marinalva

Anônimo disse...

castigo divino é diarista

Pips Marshall disse...

Mi, quando terminei de ler, tive vontade de rir, depois me senti solidária e pensei na relação que tenho e tive com as minhas diaristas. Já me senti assim muitas vezes como vc, e lembro que eu mesma limpava cada um dos livros (lembra da antiga biblioteca, que hoje faz compõe outros comodos?)!!
Mas lhe digo uma coisa que aprendi, esse é o "trabalho dela", é assim que ela sustenta a vida dela! Isso não significa dizer que ela não seja uma Deusa, que ela não possa mudar de trabalho e outras coisitas mais! No momento é isso que ela faz da vida. Tratá-la bem, do jeito que vc trata todo mundo que está por perto de vc, esse é o caminho... e sim, sim, muitas vezes fazer as coisas junto com ela, por que não?
Acho que a questão passa pela idéia de que o certos trabalhos são menos nobres que outros (isso é muito greco-romano pro meu gosto)!!!
A minha diarista atual, é mais chic que eu! Chega com seu celular ultima geração, tem um método de arrumação para casa e o mais incrivel, ela não sua. Quando eu termino de arrumar uma casa, estou podre e descabelada e ela está intacta: linda e loira!
Resultado: revoltada eu saio de casa correndo quando ela chega e vou ler na Biblioteca da Universidade ou fazer todas as coisas que preciso fazer na rua, só pra não ficar com inveja da classe dela!
beijos mil!!!
ps- e olha que sou considerada uma sinhazinha!

Lucianne Menoli disse...

belíssimo.

Fabiano Rabelo disse...

"quando entrar, não precisa limpar os pés no tapete, pois a casa anda vazia de passos"

Sarah Pinheiro