sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

vide depoimentos

E ter empregadas, chamemo-las de uma vez de criadas,
é uma ofensa à humanidade.

Clarice Lispector, em A descoberta do mundo, p. 37.

Tocando em sentimentos que são meus, percebo que, diferentemente, ninguém fica indiferente. As sensibilidades que afloraram nos depoimentos, creio, têm a ver com a estrutura profunda de desigualdade no Brasil. Não digo do Brasil, mas no Brasil. Isto que chamou de "culpa burguesa" só existe por causa desta desigualdade. Sentimo-nos repetindo com as pessoas que trabalham nas nossas casas um sistema injusto de mais-valia, cuja mão-de-obra vale muito pouco. No fundo, a questão é esta: pagamos uma miséria; mesmo aqueles que pagam o salário mínimo, porque qualquer um que o faz está na condição de saber que viver com um salário mínimo é de uma injustiça sem tamanho.

Rubiane tem razão: que mantenhamos ao menos esta sensibilidade, para não coisificarmos as relações, embora eu saiba do risco de esta virar hipocrisia. Em países mais desenvolvidos, embora seja uma leva de "sem papéis" que fazem estes serviços, a relação é mais igualitária. Na classe média, não existe a figura da "empregada doméstica", uma vez que o salário mínimo é muito alto. Trabalhando para agências, e não diretamente para as pessoas, as diaristas conhecem muito bem seus direitos. Na Casa do Brasil, em Paris, onde eu morei por um ano, eu limpava a parte de cima do guarda-roupa porque existe uma lei que diz que as diaristas só devem limpar o que o seu braço alcança. E se eu não retirasse os lençois, elas não os trocavam, porque tinham a obrigação de deixar os lençois limpos, só se os sujos tivessem retirados da cama. E nada que fosse além dos móveis "catalogados" eram afastados ou retirados do chão, então se eu não colocasse sandálias, livros, bolsas, roupas, em cima da mesa, no dia da faxina, a parte do quarto em que estes objetos se encontravam não era varrida. Tudo no papel, legalizado e cumprido. Aqui, se uma família tem uma empregada, na grande maioria, os filhos não aprendem nem a colocar a roupa no cesto de roupa suja.

Algo de que eu gostava muito (e a maioria dos brasileiros detesta) é a cultura de não-servilidade que existe por lá. Ninguém para colocar as compras nos saquinhos, levar até ao carro, etc.; também não existe a figura dos frentistas. Nem os vendedores são bajuladores (e sim, técnicos, que sabem todas as informações precisas de um produto e nos dizem as vantagens e desvantagens de comprá-lo, mesmo que seja mais barato que um outro similar.) Os brasileiros, mal-acostumados, quando não encontram um bando de serviçais, chamam isto de falta de educação! Eu achava uma maravilha e ia percebendo que estas profissões existem apenas por que se pode pagar uma miséria para quem trabalha nelas. Duvido que um dono de supermercado no Brasil pagasse a empacotadores, se tivesse que pagar um salário mínimo de 1200 euros. Então, até a cultura da servilidade vem desta desigualdade social que corrompe as relações. E não pensem que sou ingênua a ponto de pensar que outras formas de desigualdade não existem por lá. Porém, ao menos, não existem estas, tão à flor da pele. Ninguém pense que pode tratar mal um vendedor, um garçom, um fiscal de ônibus e eles vão baixar a cabeça com medo de serem despedidos. Pelo contrário, eles vão nos dar uns gritos e não se importarem nadinha com nossos gritos histéricos, nossa falta de educação e nossa vontade de sermos servidos - disfarçados malemale por uma simpatia forjada tão própria do brasileiro quando está no estrangeiro, passando a considerar-se o "melhor povo" do mundo.

No Brasil, uma empregada doméstica, que recebe o salário justo, ganha de um a dois salários minimos. Eu, uma profesora universitária federal, ganho cerca de doze salários mínimos e estou naquela faixa de "classe média baixa baixa". Um professor universitário da França ganha entre um a três salários mínimos. E não é classe média baixa, baixa. É intelectual respeitado - que faz sua comida, lava seus pratos e leva seu carrinho ao supermercado para não entupir o mundo com sacolas plásticas. Então, como não ser sensível a estas diferenças? No entanto, eu quero crer como a Mari: nada é estanque. Não existe oportunidade para todos (esta é talvez a mais maléfica das falácias!), mas existem as brechas - um torneiro mecânico vira presidente, uma empregada doméstica vira doutora em lingüística, uma filha de carroceiro se apaixona pelas Letras e também vira doutora, embora de um troço chamado literatura cada vez mais devalorizado, e passa a ganhar em um mês o que seu pai aposentado leva doze meses para ganhar. Isto talvez seja o que ainda nos faz acreditar e nos indignar. É talvez o que explique os depoimentos - compreensivos e conflitantes.
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3 Palavrinhas:

meninamulher disse...

gostei muito do seu blog
um grand bj
vou passar mais vezes
day
souumhomemdepaixoes.zip.net

marcos disse...

Morei um ano e meio em Londres e me vi fazendo toda a faxina do meu apê enquanto lá estava. Lavando e passando minha roupa: me foi um choque.
Têm-se serviçais se podemos pagá-los, mesmo em euros, libras ou reais. Concordo com você que pagamos menos, dado até uma questão cultural, mas esta é a realidade deste nosso mundo.

Entretanto nada justifica a falta de respeito - e isto nada tem a ver com salário ou nível de educação formal. É uma questão de civilidade, cidadania, gentileza, 'genteza'.

Não se atormente de culpa porque não há razão para tal.

Beijodaí.

Anônimo disse...

a sorte existe para todos,porém é o esforço pessoal de cada um o que conta.O que seria da classe operaria se não fossem os patrões.No Brasil passar para o outro lado carrega consigo um grande complexo de culpa,injustificado.Vc merece ser servida na medida em que lutou para conseguir esta situação,sem necessariamente humilhar quem te serve.Basta só compreender e aceitar que todo esforço é recompensado,bjs.Vamos continuar a polemica,rsrsrsr