quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

no avião

Escrito em 20 de fevereiro

acabei de ver a lua acima das nuvens, e lá embaixo, as luzes e o rio, provavelmente o tietê. puta lua. sim. aquele rio. e aquela vida que passou, e ainda bem que passou, e ainda bem que existiu. última fileira de um avião enorme. sem os pés na terra. destino: fortaleza. família primeira. missão: consulta no sarah kubitschek. a remota hipótese de que lá recupere mais rápido a minha força, que por ora continua longe das minhas pernas. mas para ser sincera, tudo que eu mais quero é que me mandem embora o mais rápido possível de volta para casa. e para minha vida – que vai muito bem, obrigada, apesar da resistência do guillain-barré em me abandonar. como em outras vivências, eu queria encontrar as palavras para dizer como é viver há sete meses com os pés dormentes, com este pouco equilíbrio e esta pouca força que mal sustém minhas pernas. e qual a exata sensação de quentura que me obriga, com ar condicionado ligado, a dormir com os pés fora do lençol. mas não. ainda não encontrei as palavras. porque não quero melodrama. busco palavras secas. queria encontrar a devida distância, algo como mudar de corpo para poder escrever sobre o corpo. e, no entanto, recentemente descobri que me fragilizo quando me exponho ao olhar das pessoas. e aos perigos das calçadas e, percebo agora, dos inúmeros batentes, buracos e desnivelamentos da cidade. tenho que fazer força para não chorar quando alguém, educadamente, estende a mão para me apoiar. ou o contrário, quando sozinha subo a rampa da universidade e me vejo no vidro da porta, aquela figura capenga, com as pernas meio tortas, que mal levanta os pés do chão e precisa caminhar muito devagar. ou quando, como hoje, tenho que agarrar o corrimão com as duas mãos para ter força de subir míseros lances de escada, seja dois, seja dez, seja vinte, que mais não consigo. palavras, quais. ainda há muitas lágrimas. tem isso, mas tem o casulo, a proteção. em casa praticamente esqueço que estou doente. cumpro minhas mínimas promessas. há exatos cinquenta dias trabalho todos os dias até altas horas. depois disso, quero entrar num ritmo mais feliz de vida. um ritmo que me permita namorar todas as noites ao menos uma horinha. um ritmo que me deixe ficar ainda mais ao lado do Poeminha. e das leituras felizes. então não cabe melodrama. há o corpo flácido, desapropriado que está da tal mielina, e isso me assusta um pouco. me faz soltar um “pronto, fudeu, agora tudo desabou de vez”. e sempre há os momentos críticos, como aqueles em que caí. e veio o choro sentido, bem alto, porque assim que é bom. tudo por causa de um reles tapete, ou por causa da imprudência da moça que não fixou direito as borrachas no banheiro da hidroginástica, o que me fez escorregar, bater a testa na parede, e aquela confusão de mãos procurando um apoio que só a cabeça encontrou. ou quando o sobrinho amado esbarrou sem querer em mim e caí feito um saco de batatas em plena rua. mas nada disso é motivo para que eu tenha piedade de mim. nem mesmo o fato de eu ter que me encostar na parede para ficar um minutinho com o Poeminha nos braços. tudo faz parte do contexto desta doença. e qualquer um que a tenha, ou a teve, passa, ou passou, por situações assim e, na maior parte dos casos, por situações bem piores. de fato, não há nenhum oba-oba, nenhum champanhe estourado porque estou viva. duvido que alguém que sinta a enormidade das dores que eu senti, aquelas facas espetando meu corpo no mínimo movimento, faça um oba-oba porque sobreviveu. ao menos, em mim, o que ficou foi uma perplexidade feliz e silenciosa, um agradecimento a seja a quem for. um dia destes, felizinha, aconchegada, num relance da sucessão de acontecimentos que levou a demora no meu diagnóstico, eu disse ao Tatu entre trágica e aliviada: “Tatu, realmente, se assim houver, havia uma força superior me ajudando, porque com tantos erros, como pode ter dado tudo tão certo? como pode eu não ter chegado a um estado mais crítico? como pode eu não ter morrido?”. depois, já deitada, me veio outro pensamento: e por que não dá o nome de Deus a esta força? nem que seja para agradecer a enorme corrente de fé que fez meu nome rodar o Brasil todo em inúmeras igrejas, em inúmeros templos, e fez que até mesmo a minha mana Morg – ela sim, religiosa – ofertar um culto em razão da minha lenta, mas gradual, recuperação? ora, então que exista Deus. que tenha sido ele a tramar para que eu tivesse uma mana Mácia. e que fosse ela a mover céus e terra para que eu fosse tratada. porque, talvez com a figura de Deus, seja mais fácil, para mim, continuar acreditando que estou aqui pra viver bem, pra ser feliz. e para poder ver de tão perto esta lua, aqui, no meio do vazio, a não sei quantos mil pés do chão. e para fazer parte deste vazio, desta fé que todas estas pessoas no avião deve sentir. porque só pode ser fé o que faz com que eu, e todas estas pessoas, aparentem tanta calma, assim, soltas no vazio.
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1 Palavrinhas:

renata penna disse...

porque a gente está, no final das contas, não interessa. importa é estar. força aí, querida! beijo