sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Como um cão



À noite, Nina Simone atravessa as paredes incomodando os vizinhos. Não sei por que a ouço. Não a ouvia com quem me causou esta dor. Talvez seja porque a dor de Nina tenha mais espanto do que a minha; ela era uma mulher com uma dor insondável; olhos arregalados diante do horror do mundo dizendo frases desconexas, não pedindo nada; nada mais do que exigindo. Eu também não tenho pedido nada – a não ser ao meu amigo que sabe exatamente onde estancar a dor. Ouço Nina Simone e escrevo apenas porque devo vivenciar esta dor para descobrir logo adiante que ela vai se esvair. Talvez Sinnerman seria a música da minha vida, se Mr. Bojangles não me trouxesse toda aquela chuva. Estou atrás daquela que é diferente de Nina. Daquela que gosta de sorrir dias a fio. Estou assim porque tudo veio em um único golpe, como em Kafka que agora releio. Neste deserto, esperei que enterrassem a faca no meu coração e a virassem duas vezes. E vi de olhos arregalados o sangue respingando por todo o tapete que ainda não tenho na minha nova casa. Como um cão. Olho detidamente nos olhos do cão parado diante de mim sem que eu saiba o que fazer com ele. Deixo-o aqui olhando-o para mim com a mesma intensidade? Ou decido que ele não pode comigo? Ou simplesmente deixo-o morder meu calcanhar até os pedaços criarem pus e apodrecerem? Eu não sei. Não tenho frases. Deixei-as todas em algum lugar e agora não encontro a chave. E ainda assim. Vivo a minha sexta-feira da paixão que veio de repente. Mas foi assim mesmo? Ou eu escondi a agonia entre os dentes até que o outro viesse e cravasse uma faca entre eles bem ali onde meu sorriso teve que parar suspenso no ar; como uma promessa que nunca chegaria ao seu fim? Ainda assim procuro caminhar com um discernimento tranqüilo ao encalço de mim mesma. Como Kafka e Nina Simone, não me importo com o horror que encontro pelo caminho. E talvez seja por isso que ela incomoda os vizinhos. Os leques que me abanavam ainda ontem se recusam a abrir. Apodreceram também e eu me sinto debastando todas as fantasias; pierrot em lágrimas. No último carnaval, bêbada sem minhas amigas perceberem, danço ao som de Elba Ramalho e de repente cai sobre mim aquela lembrança de um carnaval muito distante, com Elba também à beira da praia. As lágrimas saltam à minha revelia e eu me agarro nos braços da ruiva e choro todos os carnavais sofridos, embora aquele esteja tão bonito e sem nenhuma dor. É como agora. Sinto a beleza do momento nas frestras da dor. Sinto a beleza e quase a alcanço. Nina diz oh yeah. Meu corpo sente uma falta intemporal, imemorial, que nada tem a ver com a falta de outro corpo. Tem a ver com este horror que Nina Simone infringe aos meus olhos; um horror cheio de delicadeza.
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2 Palavrinhas:

. disse...

Milena, comentaste em meu blog:"Ana, no texto ou na vida, é a nos que devemos enxergar... e bem; porque somos nos que turvamos o olhar quando olhamos para o outro. Vc não acha?". Concordo plenamente Milena, ainda que tenha passado muito tempo focando meu olhar para fora. É só agora que volto meu olhar para o interior e honestamente me assusto com tudo que está aqui dentro. É como se eu tivesse vivido sem mim esse tempo todo e só agora, eu esteja sendo apresentada e esse ser que me coabita. Por isso tantos textos assombrados comigo mesmo, se é que dá para estabelecer um padrão aqui. Comentando no seu texto, eu acho que consigo captar exatamente esse sentimento mesmo sem ouvir a Nina Simone e nem ter lido (que vergonha eu fiz Letras também, rs) o Kafka. Um misto de angústia e tristeza e mesmo assim, você consegue achar a beleza nisso tudo: "Sinto a beleza do momento nas frestras da dor" (tão lindo isso). Obrigado pelas leituras e comentários. A Lú fala tão bem de você que me sinto super mega lisonjeada.

Unknown disse...

....
So I ran to the devil
He was waiting
I ran to the devil he was waiting
I ran to the devil he was waiting
All on that day
...

Ai Ai....

Milena Milena...Me fizeste ouvir sinnerman...Beijos.


Um spiritual sem esperança esse....

....
Lord lord hear me prayin
Lord lord hear me prayin
Lord lord hear me prayin
All on that day
...


Sinnerman you oughta be prayin
Oughta be prayin sinnerman
Oughta be prayin all on that day


Prometeu...e Fausto são meus heróis.

(nem sei se esse post vai ficar cifrado demais)...

Mas...