quinta-feira, 30 de abril de 2009

Ainda Valsa com Bashir


Minha amiga Mari, que me indicou Valsa com Bashir, fez uma bela leitura sobre o filme nos comentários, preenchendo os vazios que eu fui deixando. Resolvi colocar aqui. Não resisti e escrevi um pouco mais depois do texto dela:
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"Milena, sim, concordo que cada memória apresenta buracos! Não é possível reconstruir o vivido, ele busca respostas
nos outros, mas estes também apresentam lembranças incompletas. Mas a impossibilidade da reconstrução, a meu ver, se configura pelo que parece ser o grande tormento: o silenciamento diante do massacre. No final do filme, eles assistem às execuções, aos bombardeios do topo de um prédio! Nós assistimos aos bombardeios pela televisão!! É como se o diretor perguntasse o tempo todo: 'como, por que ficamos em silêncio?' Então, se nada ele fez em termos de ação, houve a inação. Lembra da cena em que aparece a família sendo excutada? Houve um silêncio enquanto um grupo agia na calada da noite! O esquecimento fica inaceitável! Lembra do Fernando Bársena que, apoiado na Hannah Arendt, fala do horror dos campos de concentração? No final do texto, Bársena diz que temos que pensar, discutir aquele horror para que não deixamos que ele volte a acontecer. Rememorar, construir uma memória, mesmo que esfarrapada, do que aconteceu talvez seja a forma que o diretor de Valsa com Bashir encontrou de lutar contra o silenciamento da memória (que esquece), contra o normalização do massacre (a autoridade é avisada do que estava acontecendo, mas volta a dormir). Nesse sentido, as imagens finais, naquele tom azul, funcionam numa fronteira de contradição. A cor remete ao que é irreal, mas o mostrado não permite que se fique nesse lugar do sonho, de um possível acontecido! Os corpos retorcidos, empilhados, aquele choro das mulheres (sempre elas, o que lembra as mães argentinas gritando pelos filhos que desapareceram nos porões da ditadura) nos arrancam desse lugar. Funciona como uma sopapo bem forte!!! É como se dissesse: é proibido esquecer!"
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Sem dúvida, é uma luta contra o silenciamento, contra a normalização da barbárie. É um gesto político. Os artistas têm feito o papel que a História sempre fez de maneira incompleta, uma vez que se baseava em um tipo de "leitura por cima", que se desejava imparcial, mas que resultava em um trabalho conivente com a barbárie. Quando destaquei a mistura do real e do sonho, não era no sentido de diminuir a força dos acontecimentos, mas de enfatizar este olhar de dentro, o olhar da testemunha, em que o horror é sempre muito maior e, por isso, resulta em uma memória esburacada. O fato de existir o filme não diminui a culpa, apenas ajuda a conviver com ela; é o legado da nossa geração e das futuras. O que o filme faz é nos dizer que não podemos esquecer tal legado. A força de um filme como este, ou de um livro que testemunha os horrores da Shoah, ou de um quadro como Guernica, está justamente no fato de não ser um discurso da História. O que eles relatam não é um possível acontecimento (e eu não tive a intenção de afirmar isto); o que relatam é um ponto de vista subjetivo de um acontecimento, mas não menos significativo. Há algo mais forte do que um "estive lá", um "eu vi", um "eu vivi"? Não à toa as testemunhas são a principal arma que o Tribunal Penal Internacionacional dispõe para colocar na cadeia aqueles que cometeram crimes contra a humanidade. Daí vem a beleza trágica de um filme como Valsa com Bashir - no meio de uma guerra, às vezes a única saída é dançar. Dançar conforme a música das metralhadoras. Sobreviver a isto é que é o verdadeiro horror. Touché para Folman.

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Imagem: http://blog.uncovering.org/archives/2009/01/valsa_com_bashir.html

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2 Palavrinhas:

Anônimo disse...

Meu recado virou texto!! Olha, eu concordei em número e gênero com a sua leitura. Não achei que tenha dito que era um possível acontecimento. Acho que o próprio dialogismos com o HQ dá essa impressão inicial; a dificuldade de lembrar, a lembrança subjetiva pode criar a idéia de que estaríamos no campo de possível. Nesse sentido, achei uma puta sacada finalizar com as imagens do massacre. Enfim, realmente um filme fantástico!!! Beijos grandes!

Julio-o-Rocha disse...

Pois vejam, Milena e amiga:

Viver é preciso... e navegar tb. Mas não só navegar, embora cada qual esteja livre para somente lançar as velas ao vento e detinar os seus momentos a ver como a arte vê a "banalização do mal".

Digo que por mais perto de nós existe esta banalização e digo que somos chamados vez em quando para combater o mal e digo que a arte é ou pode ser uma das formas de combater a desmemória e o massacre.

Havido às vezes bem ao nosso lado. Que digo? Havido bem dentro do nosso Departamento de Letras!

Mas não houve ainda arte que veja esse malfeito.

Um xêro,
Eu