sexta-feira, 21 de novembro de 2008

à memória de may b


(para quem quiser situar o que me parece insituável, eu aconselho a ler antes o post anterior, que está logo aí embaixo)

meu amigo me deixou ali sem esconder o espanto ao saber que eu ia ao subúrbio de paris para assistir a um espetáculo de dança. achava um absurdo tanto tempo despendido. mesmo assim saiu gritando para eu não esquecer a chave. era imprescindível usar a chave. para mim, imprescindível ver o espetáculo. era may b, de maguy marin, inspirado em beckett. de tudo que vi no ano beckett em paris, foi este espetáculo que quebrou as minhas pernas. todo mundo sabe que eu sinto dores quando algo me arrebata. e ainda assim posso dizer que com may b o arrebatamento foi inominável, para usar uma palavra do vocabulário de beckett. não foi a mesma angústia que senti ao assistir a bandonéon, de pina bausch, causada em grande parte pela tristeza infinda daqueles dias. em may b, foi uma angústia de quem se sentiu lado a lado de beckett, como se eu tivesse me transportado para um mundo insuportável. foi a leitora de beckett que foi ao inferno naquele teatro. todas as personagens dançaram sobre mim. aqueles seres sonâmbulos, enfileirados, arrastando seus pés, naquele lugar sombrio, fechado, claustrofóbico, atingiu não apenas a mim. éramos todos fantasmas habitando o mesmo espaço. eu me arrastei como eles. e diante do pére lachaise, duas horas depois de findo o espetáculo, embora soubesse que ele me esperava, sentei para olhar os corvos. e olhando os corvos o mundo todo se fechou sobre mim. eu era ali uma alma penada perdida na noite de poucas luzes. muito tempo depois, girei a chave na fechadura. eu nunca tinha tido a chave da casa de alguém que me esperava. e que me esperava com uma certa imagem – a de quem sorria com a espontaneidade desejada. logo naquela noite em que eu era tudo, menos a vitrine que eu tinha cuidadosamente construído para ser eu. eu não podia, naquele momento, ser a vitrine. eu me pressentia como uma grande víscera exposta de onde se podia ver cada putrefação. e mesmo assim eu girei a chave. ele não me disse nada quando me viu. sentou ali ao meu lado até beckett ir embora, envolvendo-me em um silêncio cheio de palavras. depois serviu o jantar. havia vinho sobre a mesa. e música na vitrola. muito tempo depois ele me disse que aquele choro que não compreendeu era a mais bela tradução de minha pessoa. e que tinha aprendido naquela noite a traduzir um estrangeiro sem o estereótipo. até hoje o verbo traduire me espanta. o que ele diz de mim e daquelas vísceras expostas? talvez por isso eu guarde em mim aquela noite como um dom. eu a chamo noite may b. e assim, carregada de memória, desta memória que nos tatua, assisti a umwelt, também de maguy marin, no SESC pinheiros, na véspera do meu aniversário. e talvez por não ter mais a chave, que deixei lá em uma manhã de frio quando fechei para sempre as cortinas de tecido cru, enlouqueci um pouco no decorrer da noite, de uma loucura feliz. havia fantasmas demais em mim. mas eles dançavam - uma dança louca.
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5 Palavrinhas:

Anônimo disse...

Milena,
Como vc virou uma presença constante no meu alarme de textos novos, voltei ao seu blog!!!Gostei desse último texto!!! Ele mantém uma relação âmbigua e produtiva com o "real"!!! Isso é ótimo!!!Já vi muitas Milenas nascerem!!! Fiquei com a impressão que aqui pode estar sendo germinado mais uma!!! Ficionalizaçao de si, parece que vc está caminhando para isso de de modo bastante interessante!!! Marinalva

Anônimo disse...

Ps. fiquei pensando que sua mémoria do outro espetáculo e, sobretudo, a memória do Becket, fez com que vc visse o espetáculo de um modo muito diferente do que eu vi. No meu caso, saltou de imediato a influência da etologia e, infelizmente, isso me incomodou o tempo todo!!! Gostei, mas fiquei refutando essa presença....

Cristina Soares disse...

ok, ok, ok, eu não sei quem é Becket. Mas fikei com muito medo dessa reação provocada emquem assiste. Com muito medo !!! Estou com medo até agora...

renata penna disse...

affee!
consigo pensar em poucos privilegiados como estar em Paris no ano Beckett... água na boca!

Anônimo disse...

Lá vc fala do espetáculo externo. Aqui, do seu interno, que tb é espetacular. É bom saber se descrever assim sem medo de mostrar o sentir. E estas minúsculas ignorando os pontos finais dão a devida importância ao que fica por detrás do pensamento.
Belissimo texto, moça!
Beijãozão