domingo, 5 de outubro de 2008

fragmentos de um discurso amoroso

as marcas se dissipam. um dia acordamos e nos damos conta de que o passado se desinstalou do corpo e o que resta é apenas alguma dor descontínua não pela pessoa que perdemos, mas pelo que se perdeu junto com esta pessoa. é da idéia de amor que sentimos falta. e não da figura do amado, que é sempre menor do que a do amor. há espanto porque custamos a acreditar que o que até ontem feria como uma chaga exposta no sol de 40° foi anestesiada. e com a anestesia veio a cura. talvez outra emoção. outra beleza. ou simplesmente a escrita. porque a escrita é o lugar em que tudo se resolve por si só. a escrita é a encenação de umas tantas cenas que se apagam junto com aquele que se foi agora não apenas espacialmente. sim. fragmentos de um discurso amoroso é o livro mais atípico de Roland Barthes, e isso não é pouco para quem sempre buscou uma outra linguagem para além da linguagem da crítica que o prendia. é meio lendário. ele já personagem dá a entender que fez o livro para se livrar da perda. então escreve "dramaticamente". nem análise nem crítica. o que faz é esmiuçar, detalhar, a figura do enamorado. surge o drama da enunciação – com a sua respiração, os seus retardos, a sua língua. surge um livro inclassificável, que fantasmagoriza Werther, lugares, amigos, livros. já nem sei quantas vezes o li. agora, eu o reli em uma manhã. é estranho, porque nunca leio pela manhã. mas nesta manhã acordei diferente, como se já fosse noite outra vez. quer dizer, me senti diferente e achei bom. sorvi assim as cenas de um amor quase sempre em partida, quase sempre com algum “pontinho no nariz”, quase sempre em espera. apenas quando estamos em estado de diferença podemos admitir que Barthes desvendou toda a mitologia do amor. admiti-lo é admitir a ironia, a descrença, a reiterabilidade, e não a originalidade do amor. porque todo desvendamento é um enfraquecimento. o amor desvendado não é amor. Barthes escreve eu, mas não é um eu psicológico. não se escreve nada por causa da dor ou do amor, ele nos diz. poetas também já disseram. escreve-se pela escrita. por isso, o eu de Barthes – e também o eu daqui – é um eu estrutural. não há desvendamento de nenhum segredo nem desvelamento de subjetividade. há catalogações. e nenhuma catalogação vem apenas de um “eu”. é outra lição de Barthes. quando cataloga uma a uma as figuras do amor, ele nos diz que o amor – e tudo que vem com ele – é uma invenção. a ponto de, ao sentirmos dor, sentirmo-nos também participante de algum filme que já passou, de algum romance que já foi escrito, de alguma música que já tocou.

(um adendo: Toda uma simbologia ligada ao outro na data de ontem. E eu não lembrei. Passei o dia pensando que 4 de outubro era o último dia para enviar uma proposta de comunicação. Até que alguém me lembra. Alguém sempre lembra. O outro nasceu neste dia. Então eu lembro. Lembro do Bar Sarajevo. Do ambiente esfumaçado. Da música, da dança e do primeiro beijo. Lembro. E nada me dói. A lembrança está aqui. Mas nada além disso. Guardo a imagem, mas o imaginário se dissipou. A simbologia está morta. E não há nada além da simbologia. A não ser uma certa melancolia da perda do imaginário. Ainda é Barthes. É por isso que ele é meu escritor essencial. Por isso sempre acho que sou uma invenção dele).

* Foto: encenação de Banquete antropofágico, de Zé Celso, no Sesc.
Categories:

6 Palavrinhas:

Eliz disse...

Que bom este texto... Maravilha... Recordou-me diálogos nossos, especificamente um em frente à estante...

renata penna disse...

nunca li nada, acredita?
já tinha vontade, agora com a tua dica, vou correndo procurar.
bjitos

Anônimo disse...

Milena, parece que as forças cósmicas me trouxeram aqui hoje. (ando postando desvairadamente, mas sem vistar ninguém!!)
Se não se importa, vou colocar agora mesmo seu link no meu post e falar deste texto. Perfeito, excelente!
Barthes não é um dos meus autores preferidos. Fragmentos de um discurso amoroso é um dos meus livros de cabeceira, só isso!!!
Na verdade, já devo ter feito uns dez textos sobre o tema e sempre usando/citando Barthes. Afinal, o enamoramento e suas consequências é parte integrante da minha vida! rs...
Amei!!
Beijocas

Anônimo disse...

Bem, Milena, eu fui um dos piores leitores de Roland Barthes de toda a história da FALE/UFMG, então nem posso comentar...hehehe.

Mas quanto a vinda para essas bandas, como é que você adivinhou que eu recomendaria que o que é da esfera do virtual deve permanecer na esfera do virtual?

De todo modo, penso que será fantástica a possibilidade de nos encontrarmos por aqui.

Um abraço e aguardando contato.

Cecília disse...

Adorei o texto!
De muito bom gosto seu blog.
PS: A Loba indicou e vim conferir!!
Té mais!!!

Canto da Boca disse...

"Transcrita, a palavra evidentemente muda de destinatário, e por isso mesmo de sujeito, pois não há sujeito sem Outro. O corpo, embora sempre presente (não há linguagem sem corpo), cessa de coincidir com a pessoa, ou, para dizer ainda melhor: a personalidade. O imaginário do falante muda de espaço: já não se trata mais de pedido, de apelo; trata-se de instalar, de representar um descontínuo articulado, ou seja, na verdade, uma argumentação."

Só pra interagir contigo, nas leituras de/sobre Barthes, e que meu livro é O Grão da Voz!
Como pessoa idiossincrática que sou, apesar de algumas "verosimelhanças" aqui vislumbradas, especialmente na música e na poética... Vim pelas mãos da Loba (parafrasenado Boaventura de Sousa Santos, no seu livro, Pela mão de Alice - que nesse momento é um dos meus livros de cabeceira), e dizer que voltarei, tão logo encontre um tempinho pra vir aqui te ler com mais calma.
Um beijo.
;)